Estava parado no hall de entrada de uma casa de classe media alta. A minha esquerda tinha um quadro abstrato em tons de laranja, a direita, um chaveiro pendurado à altura dos olhos e, bem na minha frente, estavam parados os meus dois novos irmãos.
A garota – um palmo menor que eu – tinha os cabelos castanhos claros soltos, caindo em cachos por seus ombros. Algumas sardas pontuavam seu nariz, dando a ela uma aparência infantil, e seus olhos amendoados me olhavam com desconfiança, combinando com os braços cruzados em baixo do busto pequeno. Usava uma calça jeans azul que lhe marcava os quadris e uma blusa baby look lilás da Arte na Rua.
– Esse é o Léo. – Disse apontando com a cabeça o garotinho pequeno ao seu lado. Ele tinha o cabelo castanho escuro liso cortado em formato de tigela e seus olhos eram grandes e verdes. Estava vestido com uma camiseta pólo azul marinho e um macacão de jeans azul claro por cima. – E eu sou Alana. Bem vindo à família.
– Jesse... – Me apresentei e tentei um sorriso, que não saiu lá muito verdadeiro, para Léo.
– Na ficha que mamãe me deu estava escrito Jessé. – Eu olhei para ela. Sua expressão estava neutra, mas podia sentir a hostilidade em suas palavras.
– Os irmãos mais velhos não deviam ganhar um pouco mais de respeito? – Repliquei com um sorriso afetado.
– Sou um ano mais velha que você.
Antes de conseguir sequer recuperar minha fala para construir uma resposta, Alma entrou pela porta atrás de mim, carregando sua bolsa em uma mão e um embrulho na outra.
– Oh! – Disse ela ao analisar na cena. – Vejo que já se conheceram. – continuou enquanto se dirigia ao que supunha ser a cozinha. – Ana, porque não leva Jesse para ver o quarto enquanto eu-
Não ouvi o final da frase. Tinha começado a subir a escada assim que ouvi a menção do meu novo dormitório. Possuía plena capacidade de encontrá-lo sozinho. Tudo o que tinha de fazer era farejar o aposento menos utilizado. Nem precisaria incomodar Hound por isso. Ele já estava adormecido por algumas horas e o silencio que deixava em minha cabeça era reconfortante.
Não demorou muito para estar em pé na porta de um cômodo quadrado, pintado de azul claro. Estava mobiliado com uma cama a um canto, forrada com uma colcha de desenhos geométricos verdes e um travesseiro combinando, uma escrivaninha com uma cadeira debaixo da janela, um grande armário branco e uma estante para livros vazia na parede oposta.
Um momento depois Alana parou atrás de mim sem fazer ruído. Mas era difícil me pegar desprevenido. Léo passou correndo pelo meu lado, esbarrando na mala que esqueci estar carregando, subiu na cama e se sentou virado para mim.
– Você gostou? – Ele disse entusiasmado. – Eu ajudei a escolher as cores!
– Ficou legal. – Disse sorrindo para o pequeno. – Acho que você e eu vamos nos dar muito bem. Diferente dessa aqui atrás. – Apontei com o dedão a garota que ainda não havia se pronunciado.
Adiantei-me para a cama e passei a despejar os meus poucos pertences ao lado do menino.
– Como percebeu que estava ali?
Olhei para uma Alana emburrada encostada no batente da porta.
– Porque? Queria me dar um susto? – Léo começou a rir, o que só a fez se zangar ainda mais.
– Vem. – Ela chamou o pequeno. – Vamos ajudar a mamãe. – E se virando para mim, antes de sair pela porta, completou – Depois que terminar aí, desça. Minha mãe comprou um bolo de boas vindas.
– Eu sei.
Me olhou estranho.
– Sou um demônio, não sabia? – Soltei de repente, fazendo ela levantar uma sobrancelha. – Eu estava lá com ela quando comprou o bolo. – terminei suspirando.
Ela foi embora pelo corredor sem se dignar a responder mais nada.
– Desde quando nos tornamos tão sinceros garoto?
Quem ocupava minha cama agora era um enorme wolfhound vermelho sangue, que olhava para mim zombeteiro. “E lá se foi o meu sossego.”
– Esta acordado há quanto tempo? – Perguntei enquanto levava um pequeno monte de roupas para o armário.
– Desde o “Minha mãe comprou um bolo”. – Hound respondeu com uma imitação mal feita da voz de Alana. – E então? O que o fez confessar tão depressa?
– Só tive vontade de falar, talvez assusta-la um pouco – Respondi a contra gosto enquanto enfileirava minhas meias em uma das prateleiras da estante. – Não tinha porque mentir, nunca acreditariam mesmo.
– Sabe que, tecnicamente, o demônio aqui sou eu, certo? – Disse enquanto se fazia mais confortável em meu novo travesseiro. – Não é por nada não, mas acho que não é ai que se guardam as meias...
– Eu sei. – Franzi o cenho. – Mas não tenho mais nada para por ai e essas prateleiras vazias já estão me dando nos nervos! Preferiria não ter móvel nenhum. Como as pessoas aguentam deixar esses espaços vazios inutilizados, tomando pó? – Respondi desviando da cara de "você é um cara estranho" que Hound lançava em minha direção. Como se ele fosse muito melhor.
– Posso emprestar minhas coisas se quiser. – Me sobressaltei com a nova voz e, olhando para baixo, dei de cara com a expressão curiosa de Léo. – Com quem estava falando?
Virei quase automaticamente para o cachorro gigantesco esparramado em minha nova cama.
– Ta tudo bem. – O garoto continuou antes que pudesse responder – Também já tive um amigo imaginário. – e Hound se pôs a gargalhar.
– Quem dera fosse só imaginação. – Resmunguei para mim mesmo. – Não era para estar ajudando a sua mãe?
– Eu estava. – Ele deu de ombros e foi se sentar, inocentemente, ao lado do demônio.– Mas acho que mais atrapalho que ajudo... Por isso mamãe mandou ajudar você. – E deu um sorriso de duzentos watts. Por cima do ombro dele, eu podia ver o cão se dobrando de rir. O que me incomodou um pouco.
– Olha… Obrigado, de verdade, – Disse apoiando minhas costas na parede. – mas tenho pouca coisa e, como pode ver, já terminei.
– Mas ainda tem meias na sua prateleira. – Hound caiu da cama e se contorceu no chão. Se não soubesse que seria em vão, teria tido esperanças que morresse de tanto rir. Tentei ignorá-lo, mas meu humor já tinha ido por água abaixo.
– E o que você sugere? – Perguntei olhando o garotinho que sacudia as pernas para cima e para baixo. Ele pulou da cama e me arrastou para fora do quarto, sem sequer ter notado o tom sarcástico que usei na pergunta.
– Esse aqui é o meu quarto. – Disse parando em frente à porta mais afastada da escada, no lado oposto do corredor. Empurrou-a e me puxou para dentro. O quarto dele, diferente do meu, estava amontoado de coisas pelos cantos e era pintado de verde água bem claro. Tinha uns pares de tênis e meias jogados ao pé da cama, que estava situada abaixo da janela. A minha frente papéis, cadernos, livros e um estojo empilhados dividiam o espaço de uma escrivaninha com alguns soldadinhos de plástico. Havia também um baú aberto cheio de tranqueiras, brinquedos e, pelo que eu pude distinguir, algumas roupas. Na mesma parede da porta pela qual entrei ficava um armário branco quase igual ao meu, pois suas portas estavam lotadas de imagens de super-heróis, onde Léo estava enfiado até a cintura.
– Precisa de ajuda? – Disse me aproximando. Léo resmungou uma resposta, mas o som acabou abafado pelas roupas a sua volta. – Hein?
– Segura isso! – Repetiu ele, saindo um instante da confusão do armário para me entregar a caixa de um jogo de tabuleiro.
O garoto demorou uns dez minutos para achar o que queria, dentro dos quais tive que segurar mais umas cinco caixas de jogos diversos enquanto ouvia os comentários sarcásticos do cão do inferno ao meu lado. Ele me mostrou, orgulhoso, uma caixa meio antiga de Playmobil e indicou que colocasse os jogos que estava segurando no chão para que pudesse pegar a nova aquisição.
O desenho estampado na tampa mostrava um grande picadeiro com elefantes, leões e palhaços. Eu lembrava de ter visto um desses em uma vitrine quando era pequeno. Hound tinha me convencido a surrupiá-lo da loja, já que não tinha dinheiro, e fui pego em flagrante pelo cara que cuidava do estacionamento. Acho que tinha sido a única vez que furtei algo que não fosse comida. Me senti culpado, que meu estomago virava só de lembrar do acontecido, uma sensação muito parecida com a que estava sentindo naquele momento, junto ao gosto amargo que sempre aparecia em minha boca quando entro em situações desconfortáveis.
– E então fechamos as portas! – Ouvi Hound dizer.
– O que? – Falei sem pensar e Léo resmungou em resposta.
– Estava dizendo que podíamos empurrá-lo para dentro do armário e trancá-lo ali! – Respondeu o demônio entusiasmado, olhando para o local onde Léo se debruçava por entre as roupas penduradas para guardar seus jogos. Fiz cara feia para o cachorro.
– Tudo pronto! – Disse Léo fechando as portas e virando para me olhar.
Hound voltou a rir e foi quando percebi uma gosma verde grudada no cabelo tigelinha do garoto. Devo ter ficado encarando, pois Léo logo levantou a mão para apalpar a cabeça com uma cara de confusão que logo se tornou de nojo e, um momento depois, decepção.
– Não! Minha Geleca! – Gemeu ele, tentando desprender o produto do cabelo. – Achei que tinha perdido!
– Acho que é melhor lavar. – Eu tentava me concentrar no menino à na minha frente, mas Hound estava tornando tudo muito difícil.
– Mas ai eu vou perder toda ela! – Ele gemeu com voz de choro.
– Bom, você sempre pode comprar outra depois, não é? – Eu estava me sentindo constrangido. Nunca estive em uma situação assim antes. Claro, já havia feito muita gente chorar antes, até gritar por suas mães. Mas aquilo era diferente e não sabia o que fazer.
Leo pareceu ficar perturbado e Hound começou a rir ainda mais alto. Olhei feio para o cachorro e agarrei o pulso do pequeno, arrastando-o para o banheiro.
– Olha, – Fui falando enquanto andava. – primeiro vamos lavar isso do seu cabelo. Ai damos um jeito de comprar outra para você.
– Mamãe não vai querer comprar outra pra mim! – Ele choramingou enquanto subia em um banquinho de plástico para enfiar a cabeça na pia. – Ela vai dizer que foi minha culpa por não guardar direito!
– E não foi? – Soltei sem pensar, e ganhei o principio de choro gemido por isso – Eu mesmo compro outra para você, então! – Corrigi apressado, enquanto me encostava no batente da porta – Só não chore, certo? – “Ou o culpado aqui serei eu.” Completei em minha mente.
Ele abriu a torneira e ficou parado com a cabeça no fluxo de água por um instante, virou seu rosto vermelho para mim e me encarou por umas duas batidas de coração.
– Me ajuda? – Ele gemeu de novo baixinho, me deixando sem saber como reagir.
Percebi que ainda segurava a caixa com minha mão esquerda e dei um giro, procurando um lugar para colocá-la. Abaixei a tampa do vaso sanitário, que fiava ao lado da pia, e coloquei o brinquedo em cima.
Virei-me para Léo, que ainda me encarava, e arregacei as mangas da minha blusa até os cotovelos. Estava usando calça jeans azul marinho, toda desbotada, e uma blusa de manga comprida e gola olímpica preta meio batida. Nada que não pudesse molhar.
Aproximei minhas mãos da cabeça do menino, receoso. Não é que não soubesse o que fazer. Só não sabia por onde começar. Peguei uma mecha, grudada pela gosma verde, e passei a desfiar embaixo da água quente da torneira. “Até que não é tão difícil afinal.” Um sorriso espontâneo surgiu em meu rosto.
– Oh! Que linda cena fraternal! – Zombou Hound – Eu só queria ver a cara do moleque, se ele soubesse que tem um monstro lavando a cabeça dele. – E meu sorriso desapareceu, fazendo o cão gargalhar novamente. Olhei irritado para ele. – O que? – Fez cara de inocente. – É a mais pura verdade. Se todos aqui sequer desconfiassem do que você é, o resultado não iria ser muito diferente do que aconteceu com os seus pais de verdade.
Hound sorriu para mim. Parecia apenas um sorriso sábio, mas sabia o que ele queria. Que eu fosse embora. Que desistisse logo de tentar criar laços com humanos. Fiquei olhando para ele, imaginando se estava certo ou não. Desde que aceitara dividir meu corpo com um demônio, minha relação com as pessoas normais não tinha sido o que se podia chamar de amigável.
– Jesse! – Léo gritou, me tirando do devaneio. – A caixa!
Olhei para a embalagem do Playmobil em cima do vaso. Uma poça tinha se formado no papelão. O tempo todo em que estive parado, olhando para o Hound, a água estava escorrendo pelo meu cotovelo e caindo na tampa.
– Merda! – Xinguei. Virei-me para pegar uma toalha, molhando todo o chão no processo, e xinguei ainda mais. – Xingar não é algo legal, não faça isso! – Emendei, lembrando da presença da criança. Me agachei em frente a privada e tentei desfazer o estrago que causara no brinquedo.
Ouvi um risinho baixo e virei para Hound. O cão olhava para mim divertido, mas sem a malícia que geralmente eu enxergava em seus olhos, e indicou com a cabeça para que olhasse o menino na pia. Léo estava tentando não rir, sem muito sucesso. Ele olhou para mim, levantei minhas sobrancelhas em uma pergunta muda, e desatou a rir. Senti os cantos da boca se torcerem em um sorriso e, de repente, estávamos os dois gargalhando. Eu olhei para a careta confusa de Hound e ri mais ainda. Também não sabia bem porque estava rindo, mas estava gostando. Há muito tempo não me sentia daquele modo.
Minha gargalhada morreu. A última vez que havia, de fato, rido daquele jeito foi quando minha mãe saiu do hospital, um pouco antes de me largar em um orfanato e desaparecer da face da Terra. Talvez Hound estivesse certo sobre não poder me encaixar tendo a alma vendida. Certa vez, não muito depois da minha primeira tentativa de fuga do orfanato, ele me perguntara se estava arrependido de ter feito o contrato.
– Às vezes. – Lembro de ter respondido. – Mas acho que ia me arrepender bem mais se não tivesse. – Devia ter uns sete anos na época.
Olhei para a caixa que estava em minhas mãos. “Mesmo se nada disso der certo no final... Será que vale a tentativa?” E decidi “Família diferente… Mais chances do final também ser.”. Quando estivesse sozinho com demônio, em meu novo quarto, contaria minha decisão.
Olhei nos olhos de Hound e percebi que me encarava com uma seriedade diferente. Já havia percebido nosso novo rumo.
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