A Biblioteca Central estava como sempre esteve e como uma biblioteca deveria estar durante a semana de provas e trabalhos: lotadíssima. As mesas de estudo individuais eram raríssimas e somente as de estudo em grupo estavam disponíveis. Os livros eram quase que constantemente passados das prateleiras para as mãos dos alunos e trocados entre eles – sob os olhares julgadores da bibliotecária.
Na medida que os bibliotecários organizavam os livros devolvidos e registravam os novos alunos que chegavam aos montes, a biblioteca permanecia constantemente lotada.
Apesar da movimentação, o silêncio ainda imperava – mesmo que eventuais sussurros ressoavam bem baixinhos – já que o bibliotecário-chefe era rígido com ruídos desnecessários.
Na área de estudo-debate – no salão próximo da seção de livros sobre magia de cura – o barulho era um pouco mais expressivo, mas nada que ultrapassasse o limite. Os alunos, uns desesperados e outros nem tanto, estavam atentos às suas leituras, mas nenhum aluno conseguia superar o professor que estava devorando uma pilha de livros numa mesinha mais afastada do centro. Embora sua postura fosse de concentração, seus olhos transbordavam inquietação e confusão como se não entendesse o que quer que as linhas estavam tentando dizer.
Um garoto – que parecia ser um estudante – passou pela porta e, como o caminho estreito para ele passar estava um bocado apertado, tropeçou na terceira cadeira que encontrou no caminho. Ele carregava vários livros (uma pilha notável deles, na verdade) sobre plantas invocáveis de magia de luz e seus queridos livros acabaram atrapalhando a sua visão e ações. Eram tantos livros que a atenção do professor se fixou nele, já prevendo a queda de alguns dos livros e a repreensão feroz do bibliotecário-chefe que apareceria que nem assombração.
E não demorou muito até que o primeiro livro da pilha ameaçou cair no chão...
... ainda bem que o professor pegou o livro antes que de fato caísse.
A pessoa agradeceu imensamente, mas quando seus olhares se encontraram... o professor imediatamente reconheceu aqueles olhos róseos e seus cabelos verdes acinzentados. E a pessoa o reconheceu de volta, logicamente.
“Você?” Mine perguntou, confuso, porque tinha visto o outro professor na sala comunal dos professores mais cedo.
“Sim, eu mesmo,” Addai bufou. “Agora não me incomode,” e colocou o livro que havia caído no topo da pilha que Mine estava carregando.
Mine franziu a testa confuso e bufou. “Então tá... te vejo por aí.”
Quando seu tutor passou do lado de Addai, este percebeu que os dedos daquela criatura pareciam pedir misericórdia e lutavam bravamente para segurar aquela pilha alta de livros. O pior era que alguns dos livros pareciam já ameaçar novas quedas e fazerem barulhos desnecessários, perturbando a frágil paz.
Então, Addai impacientemente começou a pegar alguns livros de Mine. “Se você não aguenta...” ele começou a dizer enquanto tirava o terceiro livro da pilha, “... não inventa de carregar tudo de uma vez só.”
Mine, agora com um pouco mais de campo de visão disponível, fitou sua dor de cabeça diária em forma de humano tosco e franziu o nariz. “Como se você se importasse deles caírem no chão,” Mine resmungou e tentou pegar os livros de volta, mas Addai desviou. “Ei, me devolve.”
“Não depois de você achar um lugar pra sentar,” Addai pegou mais um livro da pilha maior e colocou em seus braços. “Onde você vai se sentar?” perguntou e Mine parecia não entender o que estava acontecendo, mas, cansado do jeito que estava, o melhor era ir na onda.
Mine piscou e sentiu a fadiga pegar em seus dedos. “Não sei,” começou e apoiou a pilha restante em sua perna, tentando não a derrubar. “Todas as mesas estão ocupadas... então provavelmente vou me sentar no canto ali entre as prateleiras... hm... tipo...” seus olhos ávidos e fatigados procuraram por algo na paisagem atrás de Addai, “ah, ali mesmo,” acenou com a cabeça em direção a um canto ligeiramente escuro entre as prateleiras de anatomia e patologias.
O lugar não era muito salubre.
A iluminação? Precaríssima.
O chão? Parecia ter sido pisoteado o dia todo e tinha poeira para tudo que era lado.
Alguma coisa positiva? Só o fato de estar disponível mesmo, porque de resto... se bem que nem isso o lugar era bom, já que os pontos negativos conseguiam se sobressair sem muito esforço.
“Ali???” Addai exasperou, mas conteve de dizer isso muito alto.
Mine, de alguma forma, parecia ofendido pela cara de desgosto de Addai.
“Você nem liga! Olha, me dê esses livros e você fica livre de mim, ok?” Mine começou a caminhar para o canto – onde ele secretamente costumava sentar-se para ler fanfics quando era um universitário.
Percebendo que o outro professor não havia o seguido, Mine estranhou e virou-se confuso para Addai, que estava lá no mesmo lugar e sem mover um centímetro.
“Ei, você vai ficar aí pra sempre?” Mine perguntou, apoiando novamente a pilha em suas pernas.
Addai parecia reticente. Seus olhos, sempre afiados, pareciam um pouco mais serenos e mansos. Ele fitou Mine e colocou os livros que estava carregando na mesa que usava.
“Sente-se comigo. O chão tá sujo e frio e, ah, faz mal pra visão se ler no escuro,” Addai disse, já organizando a mesa para Mine sentar-se.
Agora Mine que estava reticente. Ele parou e fitou seu colega, que acabou de se sentar. Addai bufou e revirou os olhos para seu livro, “ignorando” a presença de Mine.
“Venha antes que eu mude de ideia,” Addai bufou novamente, virando a página que acabara de ler.
Mine se aproximou lentamente e colocou sua pilha de livros na mesa, sentindo seus braços regozijar-se de um merecido alívio. Ele fitou Addai – que evitou contato visual – e sentou-se. “Obrigado,” Mine disse, sem muito pensar ou adicionar temperos ruins em sua entonação.
Sua voz era calma e doce. Addai lentamente o fitou e percebeu que um sorriso bem pequenino estava formado no canto da boca de seu tutor, que começou a arrumar seus livros por ordem de leitura. Aquele sorriso foi logo alargando-se até formar um sorriso de satisfação e alívio.
“Pare de sentar no chão como um mendigo,” Addai bufou novamente e pegou outro livro.
Mine lia, vigorosamente, seu livro de “Invocação e Condensação de Flores,” anotando as informações mais importantes, adicionando desenhos e projeções que deveriam ser alcançadas com as invocações. As flores que desenhou eram muito detalhadas – graças às tantas vezes que Lydia corrigia seus desenhos de plantas – e anotou algumas prováveis variações que queria testar, adicionando tons de tinta azul para contrastar com a tinta preta e cinza. Uma verdadeira obra-prima.
Addai, por outro lado, estava começando a ficar impaciente porque não conseguia processar as informações do livro que estava lendo. Tal livro tinha como título “Variações Energéticas – Mortis” e tratava de variações energéticas no corpo de cadáveres que sofreram mortes por feitiços de miasma e outras energias mais complexas como o raríssimo “caos” ou a energia “neutra”, que eram mais difíceis de serem conjuradas e administradas.
Quando Mine foi para as prateleiras atrás de Addai para pegar um exemplar de “Herbologia Descomplicada”, ele viu a inquietação nos olhos do outro professor e acabou lendo algumas linhas do livro de Addai. Lógico que ele não ficou parado igual uma assombração atrás de Addai, já que ele pegou um banquinho de aparência duvidosamente frágil e sentou-se nele, bem próximo de seu colega.
“Esse livro é difícil,” Mine sussurrou, alto o suficiente para que Addai começasse a se irritar um pouco mais. “Você tem que ler um outro para entender este,” adicionou ao passar o dedo no papel e sentir a textura das páginas.
“Qual livro?” Addai perguntou impacientemente e fechou o livro (quase nos dedos de Mine), logo esfregando as sobrancelhas para tentar aliviar o estresse.
“É da seção de Medicina Mágica. Li uma vez para o curso de exorcismo,” Mine explicou e reabriu a página que Addai tinha fechado. “Não fica bravo com essa coisinha fácil.”
É isto.
Simplesmente isto.
Addai já começou a arrumar suas coisas, pressentindo aquela formidável dor de cabeça que pega a testa inteirinha.
“Eu já aguentei você o suficiente por hoje. Estou vazando,” Addai pegou sua mochila e antes de se levantar...
“Presta atenção,” Mine agarrou o queixo de Addai e virou-o para encarar o livro. Addai mal teve tempo de resmungar ou sequer protestar, já que Mine começou a ditar o que lia. “Então, aqui diz que a energia flui, certo? Mas, na verdade, ela fica estagnada no corpo como todo feitiço dessa mesma natureza faz. Ela meio que fica infundida no corpo. Então, o corpo do defunto não pode ser tratado com miasma, nem com a extração que você domina.”
Addai piscou algumas vezes e parecia ter compreendido alguma coisa. “Hmm...,” ele murmurou. E, realmente, ele havia entendido alguma coisa.
“Quando aqui diz que dá pra usar duas ou mais técnicas é pra evitar que você seja contaminado, tanto por fatores biológicos quanto energéticos,” Mine finalizou o tópico, “entendeu?”
“Hm hm,” Addai assentiu afirmativamente.
“Quer ajuda? Eu sou seu tutor afinal de contas,” Mine sorriu.
A avidez de ajudar brilhava nos olhos de Mine tal qual uma concha brilhando sob o sol. Involuntariamente, um sorriso começou a ser desenhado no rosto de Addai, mas ele pegou a borracha mais próxima para apagá-lo... pelo menos a boa parte dele.
“Vai, não seja tímido,” Mine riu baixinho, em tom de provocação.
Addai ainda o fitava e, depois de dois ou três segundos, decidiu-se. “Eu quero sua ajuda se... se isso não te incomodar muito, claro.”
“Você já me incomoda,” Mine riu novamente, “mas isso... isso não é nada comparado ao seu mau comportamento,” brincou e Addai bufou, quase que numa risada.
Bom, o banquinho de aparência duvidosa realmente não foi feito para alguém se sentar, talvez para aguentar uma certa quantidade de livros, chegando, no máximo, uns dez quilos. Erm... Mine certamente tinha muito mais que dez quilos, então as pernas do banquinho quebraram, começando pelas de suporte traseiro. Já com as perninhas começando a virar para trás e seus braços tentando se segurar na mesa para não se esborrachar no chão, Mine começou a aceitar seu destino de ser expulso da biblioteca pelo barulho que ia fazer.
Mas quando menos esperava, Addai o segurou pela cintura e algo parecido com fumaça segurou o banco para não fazer muito barulho. Seu colega não parecia muito feliz, na verdade, ele estava com os olhos arregalados de espanto!
“Você... Você quase nos colocou em apuros!!” Addai exasperou-se, quase em silêncio e com adrenalina percorrendo intensamente por todo seu corpo.
E o quê Mine fez? “Pfffffff” Mine riu baixinho.
Addai o encarou, confuso e, ao mesmo tempo, irritado. “O que é tão engraçado?! Isso não é engraçado!” Addai estressou-se, ainda quase mudo.
“Nada... é só que... a sua cara...” Mine continuou rindo, tentando recuperar a sua fala. “Ok, ok... agora me ajude antes que eu caia de novo,” ele acabou num sorriso descontraído.
Aquilo parecia feitiçaria. Addai se questionava como que o fundo conseguiu mudar tanto. Antes tudo estava normal, luzes normais e ambientação clássica da biblioteca (meia-luz com luminárias em cada mesa, bem aconchegante) e, de repente... o que raios era aquilo atrás de Mine? Flores? Uma luz rosa?!
De alguma forma... até que não era ruim.
Addai ficou parado, sentindo seu rosto pinicar involuntariamente e, de alguma forma, ele sentia que estava ficando ligeiramente mais morno, principalmente em suas bochechas... e o fundo mudava novamente, como se o pífio fio de racionalidade tentasse acender as luzes e desfazer aquele filtro estranho. Que feitiçaria era aquela?!
Pensando bem, o sorriso daquele tutor arrogante era... cativante?
As bochechas de Mine estavam um pouco coradas e seus olhos sorriam exatamente do mesmo jeito que sua boca fazia o rascunho, e- Addai não tinha tempo para isso e ele não queria abrir as páginas daquele livro nem um pouquinho.
Mine? Cativante? É sério isso?
“Tenha cuidado da próxima vez,” Addai resmungou e Mine conseguiu equilíbrio suficiente para que seu colega o soltasse em segurança. “Vá pegar sua cadeira e venha. Depois eu conserto esse banquinho mequetrefe com um feitiço.”
“Ok, ok... Só vou fechar meus livros e anotações. Enquanto isso, anote suas dúvidas que eu vou lembrando de algumas coisas aqui,” Mine disse e, novamente, aquele leve e descontraído sorriso esboçou no rosto de Addai, por mais que bem leve e quase imperceptível.
Mas sua encarada não era tão imperceptível.
“Já já vai abrir um buraco em mim de tanto que você me encara,” Mine caçoou, colocando uma folha de papel nas mãos de um Addai desconcertado. “Anote suas dúvidas. Vou pegar alguns livros pra você.”
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