Dokkan, oh, Dokkan, depois de uma noite inteira ele continuou dormindo em cima do leito com a virilha enfaixada. E seu irmão continuou da manhã até o momento chorando por ele, relembrando de sua infância. Desde essa época ambos eram bem mais altos que a maioria das crianças, e mais fortes também, bem mais. Sempre foram extremamente unidos, e graças a isso, eles tinham facilidade em roubar as frutas e galinhas dos vizinhos, assim como importunavam as outras crianças para fazer o trabalho deles.
Dokkan sempre foi mais cabeça quente, mas seu irmão sempre o defendeu acima de tudo, afinal, esperou e desejou pelo seu nascimento por dois anos até tê-lo, pior que qualquer surra bem dada era a solidão de ser filho único. Com o tempo ambos foram crescendo e alcançando tamanhos descomunais, e com isso, a pequena vila em que cresceram foi ficando pequena demais para eles, e conforme cresciam, o ódio dos moradores por eles foi crescendo junto até estourar, num dia em que ambos bêbados espancaram um dos anciões da vila.
Em fúria, a guarda nacional foi chamada e eles se viram obrigados a fugir juntos. Mesmo tendo perdido uma casa e virado viajantes errantes, não perderam o costume de usar sua força para se saírem por cima, assim começaram sua vida de saqueadores, até serem encontrados por Ganda, quem os convidou para se tornar discípulo de um mago, e este viu potencial em Hikkan, um potencial que o tornou no mago de segundo círculo que é hoje. Mas não em Dokkan, e isso mudou tudo. Ambos se juntaram a Ganda e os outros tempos depois para formar a trupe dos leopardos, mas agora, Hikkan era quem estava por cima, ambos não eram mais uma dupla imbatível para os outros da trupe, que colocaram Dokkan como subordinado de seu irmão, e o tornaram o leopardo do martelo. Mas para Hikkan, nada tinha mudado, seu irmão continuava um igual para ele como sempre.
Mesmo agora, vê-lo ferido daquele jeito era muito pior que ver toda a trupe massacrada.
Agora, era a chance de Hikkan mostrar a todos o peso que seu irmão tinha na trupe, e ele provaria isso colocando seu dever abaixo do seu desejo de vingança.
Rangendo os dentes e descobrindo o rosto, ele deixou as últimas lágrimas caírem de seus olhos injetados de raiva e se virou bufando feito touro da maca, assustando seus subordinados próximos, que deveriam ficar de olho nele por ordem de Ganda. Mas no final das contas, nada podiam fazer para impedi-lo.
- Eu vou... trucidar esse arrombado! – exclamou o gigante.
- Senhor Hikkan... o senhor Ganda pediu que... – tentou argumentar o lacaio.
- FODA-SE!
E depois do rugido, o gigante disparou da sala, quase quebrando a saída por onde passou, e tudo o que os jaquetas puderam fazer era olhar impotentes ele cometer mais um grande erro.
E Ganda, do outro lado, também não poderia fazer nada pela distância e sua falta de perspicácia quanto a como agir com seu companheiro de longa data, mesmo o conhecendo há anos. Ele percorria o corredor antes da sala de jogos, parando em frente as portas duplas de entrada, onde um jaqueta mensageiro o esperava.
- E então? Estão todos aí?
O jaqueta travou no lugar, suando frio antes de ter de responder, e rezando por pelo menos o mais ponderado da trupe estar falando com ele.
- Não, senhor, o senhor Nishi saiu há algum tempo para a casa do reitor...
- Porra, esqueci da reunião, que mal hora...
- O senhor Hikkan ainda não voltou até aqui como prometido também...
- O que?
O jaqueta pulou de susto antes de continuar.
- Mas... o senhor Emdu ainda está presente, senhor Ganda!
- Mas que merda... – ele murmura, contraindo sua face de raiva.
Rudemente abre as portas vermelhas e entra na sala cheia de odor de incenso e fumaça de cigarro, Emdu estava no mesmo lugar que anteriormente, jogando xadrez com seu subordinado, e mais alguns jaquetas jogavam em mesas de bilhar em volta, até que enrijeceram observando o leopardo do giro entrar apressadamente.
- Emdu! Vou precisar que você movimente suas equipes! – ele exclama, se aproximando do leopardo qual estava fazendo seu próximo movimento no jogo, sem olhar para seu aliado.
- Por que? O que foi agora?
- Eu verifiquei os corpos da equipe de Dokkan, e os ferimentos que mataram eles não são pouca coisa, o cara que fez é um exímio espadachim, e até pode ser um mago espadachim, se tivermos azar.
- Caramba. Estou impressionado... e xeque e mate! – ele diz, indiferente – E então, o que você concluiu?
- Tenho dois palpites. Se tivermos azar, acho que o tal vagabundo pode ser algum mago errante que estava passando e Dokkan o subestimou. Dependendo do temperamento dele, ele pode só ignorar e ir embora ou ficar puto e fazer mais alguma confusão por aqui.
- Ele já teria feito alguma desde a noite passada se esse fosse o caso. Qual o segundo?
- Ele pode ser algum agente externo, seja da guarda nacional, de algum comerciante rival de alguém daqui ou mesmo de alguma família nobre, todos os casos seriam muito ruins. Sua missão pode ser espionar, mas alguma coisa deu errado, pode ter sido chamar nossa atenção eliminando ele ou pode ser algum tipo de ataque indireto. Seja o que for, precisamos encontrar esse cara e...
- Senhor!
O jaqueta de antes entra com um outro par de jaquetas arfantes e suados de uma longa corrida até ali.
- O que foi agora? – exclama Ganda surpreeendido, encarando os jaquetas.
- Mais notícias. Três dos nossos se esbarraram com o vagabundo, eles estavam em um grupo de sete e encontraram ele em um beco perdido com uma criança, os dois eram espadachins poderosos, e a criança estava carregando uma espada azul estranha que parecia um instrumento mágico!
- Que!? O que aconteceu com os sete?
- Três deles foram mortos pelo espadachim no beco, a criança conseguiu decepar um braço e uma perna de um deles e o derrubou, e outro teve o pé espetado, os dois estão no templo junto com o resto, e eles disseram que a criança também era bem forte ou até mais que o vagabundo.
- Que?! Mas que porra tá acontecendo hoje?
- É, Ganda... bem que eu percebi que a nossa sorte vem sendo boa demais nos últimos anos... – comenta Emdu enquanto reorganizava o tabuleiro.
Seu aliado o fita extasiado.
- Então move essa bunda daí e movimenta seu grupo pra procurar por eles, eu vou movimentar o meu e o de Hikkan também...
- O que planeja?
- Agora que eles são dois e sabemos que um tem pelo menos um instrumento mágico, sabemos que não são pessoas comuns. Depois de localizar eles, vou ter de neutralizar.
- Você vai fazer isso? Mas se fizermos muita baderna procurando, eles vão fugir. – Questionou o homem, ajeitando seus óculos mais uma vez e encarando o tabuleiro, pronto para começar uma última partida.
- Eles estão fazendo muita confusão pra quem está tentando se esconder... estão chamando nossa atenção, e conseguiram ela. Antes, vou atrás de Hikkan e fazer ele...
- Hãnn... senhor... – murmurou temeroso o jaqueta.
- Ah não... – gemeu o leopardo do giro, prevendo o que ouviria – O que vem agora?
- É sobre o senhor Hikkan... ele deixou o templo completamente puto da vida, e não sabemos para onde está indo...
(...)
Aos poucos, a clientela retornava, e os bardos, que antes haviam mutado completamente suas presenças, estavam tocando uma melodia clara outra vez. As garçonetes voltavam a sua tarefa enérgica de atender e entregar os pedidos variados das mesas que se enchiam outra vez.
Mas a atmosfera em volta da mesa onde Hory e Kaian estavam havia mudado permanentemente desde a saída do comandante e seu tenente minutos atrás. Ambos ficaram em silêncio terminando seus pratos, depois que as garçonetes o haviam levado, só restavam dois copos de cerveja morna que não tinham mais desejo de beber.
- E então... o que acha? - pergunta Kaian, após o silêncio.
- O que?
- Perguntei se vai aceitar esse pedido.
- Achei que estava te devendo uma. – questionou o garoto.
- E está. Mas não sou eu quem estou te cobrando um favor, eu estou fazendo um pelo meu velho amigo. Se quer vir comigo ou não, faça por vontade própria.
- Voce... é um desgraçado mesmo, einh? – riu o garoto.
- Sim, eu não sou do tipo que desperdiça oportunidades assim.
- Então... é verdade que eu posso fazer a inscrição sozinho?
- E isso importa?
- Não... não mais... mas você sabe que eu tenho um objetivo bem maior que isso, não sabe?
- Hory, é bom que você saiba o caminho que irá seguir, mas não pode achar que vai estar sempre percorrendo uma linha reta até ele.
- Tá dizendo que eu vou precisar fazer desvios as vezes que podem me ajudar?
- É, mais ou menos isso. Sabe que eu não manjo de filosofia.
- Tsk, então... ainda não sei. Isso não tem nada a ver comigo.
- Engraçado, lembro que até pouco tempo atrás, era você quem passava por uma coisa parecida. E você estava do lado que estava pedindo por ajuda. – Alfinetou seu mestre.
E o garoto se pegou olhando profundamente para seu prato. Refletindo sobre todas as memórias ruins que o trouxeram até ali. Até que seu pensamento foi interrompido bruscamente junto com o de todos presentes.
Interrompidos pelo estrondo das portas dobradiças sendo derrubadas. Com um movimento brusco elas foram arrombadas e uma delas foi arrancada das trancas, caindo no chão, estalante.
E quando todos os olhos curiosos dos clientes se voltaram na direção do estrondo, eles viram toda a luz que vinha de fora ser coberta pelo corpo imenso de um gigante de dois metros de altura.
- Eeeeeeeeeeeei!
Gritou Hikkan, rangendo os dentes e fungando o ar, com veias saltando do rosto e do pescoço esticado, engolindo a cena do restaurante cheio com os olhos. O atendente no balcão estava já entrando em pânico travado atrás dele, assim como as garçonetes, que suavam frio sem saber o que fazer, não havia outra saída além da dos fundos ao lado da estante atrás do balcão, e não havia como todos saírem por ela tão rápido. Sem perceber, estavam presos com um gato numa gaiola de ratos.
- Seu desgraçado! VOCÊ ESTÁ AÍ, NÃO É?! CACHACEIRO IMUNDO!
As garçonetes suspiravam de medo, derrubando as bandejas de cerveja, temendo o que viria depois dos gritos desconexos do leopardo louco. Hikkan já era bastante conhecido por sua cabeça quente, mas no estado em que estava, era imprevisível.
Hikkan, o leopardo do martelo, era um demolidor de prédios, apesar de fazer anos que não se via um acesso de raiva dele na cidade, nunca era tarde para se rever velhos eventos.
- ANDA! APAREÇA!
Mais suspiros de susto eram arrancados a cada novo grito de frase sem significado, e todos aumentavam ainda mais a tensão presa nelas quanto mais passos ele dava para dentro do restaurante, e entrando, era mais visivel em suas costas a marca que despertava medo em toda a cidade de Culleir, uma sombra que cobria o seu futuro e ameaçava devora-lo com uma bocarra cheia de dentes de um leopardo.
- Ei! Cabeça de bolha...
Guiado pela voz desafiadora, o leopardo virou a cabeça até ela, onde procurou por um momento o dono daquela voz, quase babando de ânsia por encontrar seu alvo a todo custo, mesmo sem saber onde estava. E o dono da voz terminou o resto de sua bebida com um último gole, sob o olhar sorridente de seu mestre, já imaginando de relance o que estava prestes a acontecer.
Ele levantou e encarou o leopardo com desprezo, e Hikkan ao vê-lo se apresentar, focou totalmente sua atenção nele ao ponto de se cegar pela raiva.
- Você! Você é o vagabundo que CASTROU MEU IRMÃOZINHO?! – grita ele.
- Não, infelizmente não. – diz Hory, se aproximando lentamente com passos barulhentos até o leopardo, pomposo, de mãos nos bolsos – Mas acho que eu simpatizo com esse cara...
Ele parou em frente ao gigante, encolhido e curvando com o rosto caindo em cima do jovem, espumando de raiva e veias saltando pela cabeça inteira. Com um sorriso de confiança, Hory devolve aquele olhar com todo o deboche que tinha.
- Gente como você não devia estar se reproduzindo por aí, gorila...
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