O solavanco da carruagem era bastante suave, a diferença entre andar com ela numa estrada terrosa e uma estrada de tijolos bem nivelada era gigantesca.
Acostumado a balançar o tempo inteiro e levantar com a bunda dolorida no final da estrada, o leopardo das balas se remexeu automaticamente por costume, se espreguiçando novamente no banco acolchoado carmesim da elegante carruagem oficial. O interior era tão luxuoso e confortável quanto sua imaginação sobre os ricaços entregava.
- Huff... merda... – ele suspira.
- É tão ruim assim ir conversar com o reitor, chefia? – perguntou o jaqueta sentado no banco a sua frente, um aliado confiável, de braços cruzados e bastante curioso sobre como a mente de alguém tão confiante quanto Nishi poderia se mostrar tão desagradado.
- Claro, que é. Aquele cara é um nobre do pior tipo, - reclamou o leopardo, ajeitando seu chapéu coco na cabeça, abriu seu sobretudo ainda mais o espalhando pelo acento e estendendo os braços em cima dele – ele tem uns olhos malucos que parecem olhar direto pra sua alma quando fala com ele, e você consegue até ver o nojo que ele tem com as pessoas em volta, mas ele nunca deixa transparecer muito, é sempre de uma forma beeeeeem sutil. Porra, não sei como o Ganda de todos nós é o que mais aguenta ficar com ele. Ele não leva realmente as nossas decisões a sério mesmo nós sendo tecnicamente iguais no contrato, parece que se esforça pra falar nossa língua, como se fossemos crianças. Psicopata do caralho, não consigo nem imaginar quantas orgias ele não deve fazer pela semana naquela mansão gigante dele. Arf... o mundo é muito injusto. Queria ter nascido nobre também.
- Se fosse, você deveria ser muito pior que ele no final, não é, chefia? – brincou o jaqueta.
- Hahahaha, é, não posso falar nada mesmo, no lugar dele, eu nadaria pelado por aí mijando na cara das pessoas. Ah, chegamos...
Com um leve solavanco a carruagem parou na estrada, o cocheiro desceu e abriu a porta para que o leopardo e seu vice saíssem para o solo nivelado de tijolos claros outra vez, sendo atingido pelo calor confortável do sol. Do outro lado a sua frente, estavam os portões negros de grades de cobre separando a rua aberta e branca da elite de Culleir para a estrada que cortava o jardim imenso da mansão branca do reitor. Uma leve espetada de inveja atingiu o peito do leopardo e com um sorriso falso no rosto ele seguiu até os portões guardados por um par de soldados da guarda da cidade com seus elmos dourados e baionetas nas mãos.
- Yo yo! Sou eu, o leopardo das balas, vim para a reunião com seu chefe, se me derem licença. – Avisa casualmente ele, com as mãos nos bolsos e mantendo uma postura torta, desleixada, sem nenhum respeito.
Reconhecendo o visitante, os guardas acenam e abrem lentamente o portão para que a trupe entrasse.
E enquanto isso, dentro da mansão novamente, no mesmo escritório que visitamos, o reitor continuava lá, já sabendo que o momento de sua reunião se aproximava, por isso, deixou há algum tempo de admirar a visão da sua cidade no horizonte e passou a administrar alguns documentos de permissões para a exportação de produtos. Nada muito demorado ou trabalhoso, já que trabalhar demais era para os cães.
Então tranquilamente seguiu com a assinatura dos documentos, a após mais alguns minutos, sua empregada de uniforme vermelho e castanho entrou com uma pira de chá nas mãos, sob uma chaleira fumegante com chá, ela se aproximou elegantemente até a mesa do reitor com cada um de seus movimentos controlados, em seguida dela, uma segunda empregada de nível mais elevado, mostrado por seu xale branco em volta dos ombros, entrou, parando há alguns metros em frente à mesa. A primeira empregada se instalou ao lado dela e aproximou a xícara branca na mesa até a borda junto a pia, onde inclinou a chaleira de cerâmica e começou a preenchê-la outra vez.
- Vossa senhoria, - ditou a segunda empregada – venho informar que o leopardo das balas acabou de entrar no território da mansão.
- Oh, então ele já chegou... até que enfim... – murmura o reitor, com um sorriso desdenhoso.
E no meio do caminho, ao terminar de preencher a xícara com a quantidade exata de conteúdo, ela começou a levantar a chaleira, porém, acidentalmente, uma gota boba escapa da tromba do objeto, apenas por um descuido mínimo de sua parte, e a gota acaba caindo na mesa.
Apenas uma gota, quase não fazendo qualquer barulho ao se espatifar na superfície de madeira.
E mesmo assim, naquele segundo sem tirar nem pôr, a mão firme do reitor agarrou o rosto inteiro da empregada, sem tempo de terminar de esbugalhar os olhos de surpresa, e com violência, ele puxou a cabeça inteira da jovem na direção da quina da mesa, e violentamente bateu o crânio dela contra ele causando um estalo audível.
Soltando a cabeça da jovem, deixou-a desmaiar no piso com uma linha de sangue escorrendo da testa e os olhos ainda esbugalhados de surpresa, paralisada.
- Por favor, Minn, peça para que esta aqui seja mais cuidadosa e que limpe perfeitamente a mesa depois que acordar, certo? – ele educadamente diz, adicionando a última página de contrato a pilha de papel ao lado, sem tirar o sorriso agradável do rosto.
A empregada acena imediatamente, surpresa e assustada com o evento repentino.
De humor alterado, o reitor se levanta da mesa e caminha até a porta, passando pela empregada e saindo do escritório.
O ar puro que fluía da janela para a sala anterior sumiu para o ar parado cheio de odor de carpete varrido e madeira encerada que dominava aquela mansão. Não era ruim, mas precisava de um toque maior de incensos para se tornar a um nível mais elegante que merecia. Anotou mentalmente que deveria mandar comprar mais incensos e espalhá-los pela casa.
Cantarolante, ele caminhou até a escadaria central e desceu até o salão do primeiro andar que ficava entre as quatro alas da mansão elegante. E se dirigiu até o corredor oeste, que o levou a um par de portas abertas para a sala de jantar desnecessariamente grande, em volta de uma mesa com suporte para vinte pessoas e naquele horário, já estava cheia de comida sendo servida por empregadas que vinham das portas ligadas a cozinha na parede leste da sala.
E quando chegou, o lugar não estava vazio apenas esperando por ele, as empregadas serviam a mesa para o garoto esfomeado que se afundava nos pratos finos da casa com certa etiqueta.
- Oh, Jhon, já está aqui, não esperava que acordasse tão cedo. – comentou o reitor, do outro extremo da mesa.
- Sim, tio Vindra, de repente deu uma vontade tremenda de levantar cedo. – comentou o garoto, sorrindo animadamente.
- Ótimo! Um dia produtivo começa com uma manhã bem ativa. Aliás, falando nisso, meu mensageiro já chegou na cidade com a carta de seus pais. – Comenta o reitor, sendo servido com um prato por outra empregada.
- Devem ter pedido pra me fazer voltar imediatamente, não é?
- Basicamente sim. Haha, meus primos conseguem ser insistentes num nível absurdo.
- Me desculpe pelo problema...
- Não se preocupe, fique o tempo que quiser, Jhon, de qualquer jeito, essa cidade é minha, não tem muito que eles possam tentar por aqui. – Ele concluiu.
- Bem, obrigado de novo. Mas... sem querer ser insistente... será que eu poderia pelo menos alugar uma carruagem e...
- Jhon, - cortou o reitor, experimentando com seu garfo um pedaço do bife de seu prato – não precisa ser apressado, já disse que a cidade pode ser perigosa as vezes. Assim que eu conseguir disponibilizar parte da guarda para acompanhá-lo, eu prometo que poderá deixar a cidade sem esbarrar com gente dos meus primos.
- Sim, me desculpe. Obrigado por tudo, Tio Vindra.
- Não há de que.
Resoluto, mas bastante insatisfeito internamente, o garoto volta a comer em silêncio, com a pressa queimando sua mente.
E após a refeição longa, propositalmente para deixar seu “convidado” esperando, o reitor levanta e segue em direção a sala de visitas no segundo andar.
Uma pequena sala em proporção a mansão, mas que se apresentava tão elegante quanto o resto, com os papeis de parede floridos, o carpete branco com padrões fractais preto e dourados e a mobília carmesim de dois sofás e uma poltrona no centro, próximas a lareira na parede leste. E num dos sofás, deselegantemente esparramado sobre ele, estava o leopardo das balas, longe de ser o favorito do reitor, que por sinal, odiava a presença de todos.
- Oh! Olá, senhor reitor! – cumprimentou desleixado o leopardo.
Observando bem de humor mais baixo, viu que o vagabundo havia deixado algumas manchas de suas botas pretas no carpete. Ele segurou seu sorriso cordial até se sentar na poltrona em frente ao leopardo e cruzar as pernas.
- Poderia pelo menos ter trocado de calçado, não acha? – apontou o reitor, tentando parecer casual.
- Não acho que o senhor gostaria de desperdiçar um bom calçado de sua casa comigo, vossa senhoria. – Retrucou ele, ajeitando os pequenos óculos escuros no rosto, sorrindo largamente.
- Preferiria isso a ter meu carpete sujo de terra... – devolveu o reitor, acrescentando em seu tom uma dose de veneno. – Bem, deixe pra lá. Então, senhor Nizi...
- Nishi.
- Tanto faz, ouvi por aí que seus amigos andaram tendo algumas confusões pela cidade... ao ponto de ocupar o senhor Ganda de vir hoje. Está tudo bem com vocês?
- Nah! Não é nada. O irmão do leopardo do martelo se meteu numa briga de bar e apanhou um pouquinho, isso é tudo. Nada que tenha de se preocupar. – Conta ele.
- Ótimo, fico feliz que está tudo sob controle. Não gosto de amanhecer ouvindo rumores de briga de cães fazendo barulho na minha cidade.
“Vai se fuder, nobre imundo, o único cão aqui é você!”.
- Reforçando, nada para se preocupar, senhor reitor. – Sorriu largamente o leopardo.
- Bem, vamos direto aos negócios então. Tem algumas mudanças que quero fazer em relação ao fluxo externo de importações de mercadorias.
- Ah, fala dos ataques aos comboios?
- Gosto de ser um pouco mais sutil, senhor Nici.
“Ele tá errando de propósito...”, pensou com irritação.
- Certo, certo. Bem, segundo as instruções está tudo certo quanto a atacar apenas os brasões de empresas rivais vindas de fora. Por acaso há mais algum aliado novo que devemos evitar?
- Não, não é apenas sobre isso. Tem uma nova onda de avanços no transporte de mercadorias crescendo, e ainda não sei se ele tende a nos atrapalhar ou ajudar. Sinto que os avanços estão deixando as coisas seguras demais, se é que me entende.
- Hoho, nem consigo imaginar como seria se comboios de carroças blindadas virassem moda por aí. – comentou Nishi, reclinando no sofá.
- O que estou pensando pode ser bem menos sutil que apenas carroças blindadas. Venho recebendo informações de que a capital e a escola de Damao vem desenvolvendo uma forma extremamente eficaz e segura de transporte. Mas podemos conversar sobre isso com mais detalhes depois. Tem algo mais urgente que podemos discutir agora.
- Certo, certo, manda aí, chefia.
O reitor se reclinou na poltrona, afiando seu olhar e sorrindo no limite entre cortesia e ódio contra o leopardo folgado.
- Tem um assassinato que eu gostaria de encomendar...
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