Alguns quilômetros para o nordeste, nós passamos por uma bela vista aérea dos prédios de estalagens, armazéns e centros de comércio público e algumas colunas de fumaças de panificações entre outras indústrias dentro da cidade, até chegarmos em ruas mais limpas, com estradas num tom mais claro, original de sua tonalidade que não foi ofuscada pelo contínuo tráfego animal e humano, uma rua mais elegante também. As casas eram maiores e mais arqueadas, com uma estrutura de mármore branco e cercadas por um jardim fabuloso e vibrante. Então nós chegamos até a última parte desta rua e paramos em frente ao maior de todos os jardins, tão grande quanto um parque público, cheio dos mais variados canteiros de flores de várias partes do país, e no centro dele, onde algumas estradas artificiais de rochas brancas se encontravam, estava um pequeno palácio de mármore branco com domos dourados no pico e pequenas torres cardeais.
Agora viajaremos até a sacada no centro da fachada da construção, onde havia uma grande e bela janela aberta, com as persianas dançando pela brisa fresca distante do fedor da cidade e encontrando o interior com odores fortes de incensos caros perfumando o ar dentro.
A janela dava a um escritório elegante e tão grande quanto uma pequena casa humilde em algum vilarejo distante.
Contra a direção da janela havia uma porta de carvalho, do outro lado dela, estava um corredor, e neste momento ele não está completamente silencioso como geralmente está. Sons de passos estavam ecoando por ele no chão de madeira polida, o som feito por botas brancas elegantes num uniforme branco militar. Quem os causava eram dois soldados de elite da guarda. O homem de maior patente tomava a frente, sua expressão serena e confiante enquanto se aproximava da entrada do escritório, com uma das mãos sempre segurando a banha presa na sua cinta do lado direito.
Atrás dele vinha seu tenente, impassível assim como seu comandante, seguia até a porta de carvalho. Parando em frente a ela ele bateu duas vezes com suas mãos enluvadas e esperou pela mensagem.
- Pode entrar. – disse uma voz cantarolante, descontraída que ao mesmo tempo direta.
Sem cerimônia, o homem de cabelos castanhos alisados e olhos claros entrou com seu tenente no escritório. Ao lado da mesa, em frente a janela aberta da sacada, um homem de estatura mediana vestido finamente em branco e marrom estava de costas apreciando a vista e o toque do vento.
- Vossa senhoria. – Cumprimentou o comandante com suas tenente, se curvando ligeiramente.
- Oh, é você, Amta. E então? Como andam as coisas? – pergunta cantarolante o homem. Seus cabelos ondulados e claros caiam pelo seu rosto jovial, com uma barba curta no queixo lhe dando uma aparência adulta e firme, enquanto seus olhos verdes pareciam infantis, um sorriso alegre acompanhando.
- Está tudo certo como de costume, vossa senhoria. Venho apenas informar sobre um incidente envolvendo um dos membros da trupe dos leopardos. – disse o comandante. Impassível.
- Oh. Eles estão fazendo algum movimento estranho? – pergunta o reitor, sem perder o tom cantarolante da voz, mas se virando para encarar a vista mais uma vez, de mãos nas costas, postura ereta e sólida.
- Não, vossa senhoria. Dokkan, o responsável pela guarda e controle da alfandega, acabou ferido depois de uma briga em um bar...
- Ohh, aquele brutamontes? Isso é inesperado, - comentou o reitor, se divertindo – mas com aquela atitude medíocre dele já era de se esperar que algo assim fosse acontecer.
- Por isso, fui informado de que a trupe agirá de forma diferente hoje. O leopardo do giro irá verificar a causa do incidente e não poderá vir vê-lo hoje como de costume, o leopardo das balas virá em seu lugar, e eles prometeram que logo o leopardo do martelo irá retornar a segurança da alfandega.
- Huh... – o reitor finalmente se vira e encara diretamente seus subordinados, com um sorriso cínico no rosto – Parece que hoje eles estão se divertindo bastante. Acho que a calmaria dos últimos anos deixou eles meio moles. Por favor, Comandante Amta, espalhe a guarda em volta da área e fique de olho no movimento do resto da trupe. Não quero mais saber de incidentes estranhos acontecendo por aí, certo?
- Sim, vossa senhoria. – Curvou-se o comandante.
- Certo, vá trabalhar.
Bruscamente dispensado, o comandante se virou e saiu com seu tenente, outra vez caminhando apressado pelo corredor estreito.
E um suspiro cansado saiu de seus ábios.
- Comandante, está bem? – perguntou seu tenente.
- Sim, Minno, está tudo bem.
Uma mentira boba e óbvia, nada estava bem há anos, desde que este novo reitor substituiu o último. Ele não era grande coisa, mas o atual conseguiu superá-lo e muito no quesito de periculosidade. Ele não se importava com a cidade em si, ele não via as pessoas que habitavam as casas e estalagens ou que trabalhavam o dia inteiro em fábricas de Manu faturação como sequer humanos, essa parte já era previsível vinda de alguém do calibre de nobreza qual ele vinha, mas este homem... ele potencializava essa visão ao extremo.
Desde que chegou, as pessoas da cidade se tornaram apenas números que precisavam ser alimentados ou apagados conforme suas vontades. Economicamente houve sim um real aumento da economia e produção, mas a um custo extremamente alto, alto demais. Ele trouxe com ele uma aliança perigosa com a trupe dos leopardos, e uma mais perigosa ainda por trás das cenas. Mesmo que não houvesse provas, Amta sabia o que se passava. As pessoas não tinham mais o direito de viver, apenas a sobrevivência era minimamente garantida, suas vidas eram voltadas apenas a comer, produzir, cagar e morrer, tudo para um crescimento artificial e doentio através de acordos sombrios e muita pressão por baixo dos panos.
Era enjoativo.
- Huh!
Quase sem perceber o comandante chegou ao fim do corredor onde se cruzava com outro, perdido em seus pensamentos não percebeu a outra pessoa entrando e se aproximando. Dando um passo para trás, ele encara o garoto de cabelos loiro-pálidos se afastando educadamente e se curvando.
- Me desculpe, senhor comandante! Não o vi passando! – desculpou-se timidamente.
- Tudo bem, eu quem estava distraído, senhor Jhon. – Desculpou-se o comandante.
- Não, me desculpe-me. Mas... sabe dizer se meu tio está no escritório? – perguntou gentilmente.
- Sim, a vossa senhoria está lá. E está de bom humor, eu diria. Se quiser ir vê-lo, deve ser uma boa hora.
- Ainda bem, então, nos vemos logo, Comandante Amta. – diz o garoto, seguindo pelo corredor até o escritório.
A diferença entre os dois era tão destoante que chegava a ser bizarro, um sobrinho educado e puro com o mesmo sangue de um tio eficazmente frio e egocêntrico. Como algo assim era possível? Afastando os pensamentos novamente, o comandante se voltou para o caminho a seguir e continuou caminhando, agora mais focado em seu objetivo secundário disfarçado com sua mais nova ordem dada.
- Tenente Minno, sabe se ele já chegou na cidade?
- Recebi a confirmação por um dos patrulheiros. Sim, ele já está aqui.
- Certo... vamos torcer para que esteja no lugar indicado por agora. – o comandante murmura, cerrando o punho livre.
Uma pequena chama de esperança se acendeu agora que a ajuda externa que procurava chegou... mesmo que demorasse meses, mesmo que tivesse de sacrificar a própria cabeça para vencer esta guerra, agora ele tinha armas para se revoltar.
Não era mais uma questão de poder, agora era uma questão de tempo. Ele já percebera há muito tempo que não podia continuar seguindo cegamente as ordens do novo reitor se isso colocasse a cidade em perigo. Sua função era protegê-la de tudo, mesmo que fosse do próprio reitor dela. E se tivesse de derrubá-lo e cair junto para salvá-la ele faria. Por isso se tornou comandante.
Por isso se tornou um mago espadachim em nome de Krista. E ele deixou isso bem claro em seu olhar obstinado.
- Ei Hory, você já comeu carne de cachorro? – perguntou o homem de meia idade.
- Einh? Que merda é essa? – retrucou ele.
Ambos se deleitavam com um almoço apimentado acompanhado de cerveja num bar popular daquela área. Estava cheio e bastante agitado, com burburinhos de conversas paralelas em todos os lados e garçonetes de vestidos escuros levando pratos e grandes copos de cerveja espumante para todos os lados. Um par de bardos tocavam uma música ambiente relaxante com seus instrumentos de corda.
- Sabe, eu já comi uma vez, e ela deixou bem claro uma teoria que eu já tinha. Não dá pra comer carne de animais carnívoros, geralmente elas são duras e fibrosas, e não tem um gosto bom. Se bem que aquele kebab estava entupido de molhos e pimenta, mas ainda dava pra perceber que era tudo um disfarce daquela carne ruim.
- E você sabia que era carne de cachorro?
- Mais ou menos, eu sabia que não era carne de um animal comum porque aquela região não tinha pastos nem nada do tipo. E era uma cidade bem pobre. Ainda bem que não foi carne de elefante, não queria ter sido amaldiçoado por Lli.
- Você ainda tem essas superstições?
- Não é superstição, garoto. Você vai perceber depois de entrar na associação que esse mundo está cheio de coisas estranhas...
As portas dobráveis da entrada estalaram quando dois novos fregueses entraram. Mas estes eram especiais. Tão especiais que chamaram a atenção de alguns dos fregueses que terminavam seus almoços, chamando apressados as garçonetes para pagar pela refeição depois de uma olhada. Outros começaram a engolir todo o resto da cerveja nos copos de uma só vez com pressa para sair. O homem de meia idade e seu companheiro perceberam a mudança brusca na atmosfera e cessaram a conversa temporariamente, encarando com indiferença seu prato. Enquanto isso, o som dos passos de botas se aproximou da mesa em que os dois estavam, e o som do êxodo dos presentes começou a aumentar lentamente.
- Olha só, você não mudou nada, Kaian. – disse o comandante com um sorriso nostálgico.
- Huh...
O homem de meia idade suspirou e olhou para cima, para o homem de branco que os fitava de pé ao lado da mesa com seu tenente, e sorriu de volta.
- Eu poderia dizer a mesma coisa, Amta. Continua com a mesma cara de parede de sempre.
- Haha. – O comandante então começou a sentar com seu último semblante de alegria, até enviar um olhar decisivo para o barman.
Em resposta, o dono do estabelecimento acenou para uma das garçonetes que fosse fechar a entrada do lugar, que já estava praticamente vazio a não ser eles.
O clima mudou de alegre para sério, e agora a atmosfera estava neutra outra vez, levemente manchada pela alegria do reencontro entre velhos amigos, mas ainda assim, incerta.
- E aí? Como está a sua discípula? Você continua firme em seus treinos, Minno? – questionou Kaian.
- Sim, senhor Kaian. Mas o comandante também vem dando duro em seus treinos atualmente. – A tenente responde, rigidamente.
- Ela já alcançou o terceiro círculo, se você quer saber. – Se gabou o comandante, desdenhoso.
- Olha só, meus parabéns, você fica cada vez melhor toda vez que nos encontramos. – Elogiou o homem de meia idade.
- E esse garoto é o discípulo do qual me falou? – apontou animadamente o comandante.
- Sim, é ele mesmo.
- Prazer, sou Hory Manoir, senhor comandante. – Se apresentou ele.
- Que educado, tem certeza de que é discípulo de Kaian?
- Vai se ferrar, bastardo, eu também seu ser um doce quando quero, e então? O que vamos conversar aqui que precisou fazer o dono do restaurante ter prejuízo?
- Bem... primeiro... que tal colocarmos a conversa em dia?
- Bem, é uma boa ideia, haha...
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