Mas não havia tempo para notar isso, já que o som dos ossos do lacaio sendo esmagada logo deu lugar ao som de passos rápidos vindos logo de trás. O terceiro lacaio se aproximou sordidamente e atacou o bêbado por cima com um golpe direto igual seu chefe com seu bastão, usando seus sentidos rápidos, o jovem se agachou mais alguns centímetros aumentando o espaço entre o ataque e levantou sua espada atrás do braço, estocando o terceiro lacaio embaixo da axila, e ao mesmo tempo, a clava tenebrosa do gigante se aproximava numa diagonal crescente almejando acertar todo o seu corpo num golpe derradeiro. Com toda a sua força Dokkan rangia os dentes em fúria colocando ela em seu golpe. Sem tempo para desviar, a única escolha que teve foi arremessar o lacaio na direção da clava.
O corpo pesado do lacaio do bastão foi violentamente jogado para o teto do bar pela clava, e com tempo o suficiente, o jovem desvia para trás com passos rápidos, e mais que satisfeito, aquela era sua chance de ouro.
Com a clava acertando um alvo mais próximo do que calculou, a força pressionou o gigante para trás, retirando parte de seu equilíbrio, então o jovem respirou fundo, se inclinou numa posição de saque e agarrou a espada com as duas mãos. Numa velocidade de piscar de olhos ele avançou na direção de Dokkan ainda tentando recuperar o equilíbrio, mas sem sucesso, e só pôde ver o homem que veio amputar os braços e pernas entrar no alcance de ataque de sua espada bem abaixo do centro de gravidade dele, e então... estocar sua espada até a metade entre as suas pernas.
Antes da dor atravessar a camada de adrenalina que entorpece seus sentidos, e antes que pudesse se equilibrar outra vez e mover um músculo, ele olhou com horror a sua virilha sangrar com força.
Recuperando seu equilíbrio ele travou no lugar, e a dor apareceu de forma suave até explodir de uma só vez.
- Aaaaaaaaaarrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrreeeeeeeeeeeeeeeeeeeehhhhhhh!!!!!!!!!
Sem cerimônia nenhum o jovem retirou a espada da virilha do gigante e a balançou no ar, limpando o sangue preso na lâmina, o sangue jorrou com mais violência da virilha ferida de Dokkan, e ele caiu ajoelhado com a boca espumando e olhos virados segurando a hemorragia entre as pernas.
- Eca, sangue de pinto... hic! – murmurou o bêbado.
Olhando em volta o lugar estava uma bagunça, uma mesa ao leste estava completamente destruída, e bem ao lado havia um cara de jaqueta preta caído de barriga com sangue escorrendo pelo piso e se acumulando numa poça, outro estava esparramado no chão com o tronco torto e esmagado, em volta de uma bomba de sangue, o terceiro havia se esparramado no teto antes de quicar e cair bem ao lado do último lacaio que assistiu tudo embasbacado há distância, segurando seu canivete e tremendo as pernas.
O jovem olhou na direção do barman, que observava incrédulo toda a cena, quase transformando a xícara que polia em pó.
- Que merda... isso virou uma zorra...
Thumb
Dokkan cai no piso, pesadamente.
O bêbado se vira e caminha na direção do último lacaio, completamente travado no lugar, apenas orando para todas as divindades de todos os brahm’mas para salvá-lo, e para sua sorte, o jovem apenas passa por ele, parando por um segundo de costas, logo a frente.
- Fala pros seus chefes que quem fez a festa aqui fui eu. É bom eu ainda ver esse bar inteiro quando passar por aqui, maluco...
E com essas palavras ele saiu pelas portas dobradiças.
“Mas... mas o que foi tudo isso?”, se questionou o último da trupe de pé.
Aquele foi um dia e tanto.
E por causa disso, mais dias cheios viriam pela frente.
- Hã? Fyrr? Fyrr?
Por mais que olhasse em volta, passasse a mão pelos lençois bem arrumados na cama ou que observasse os arredores em busca de restos de comidas, portas de divã desarrumadas ou qualquer outro sinal de que outra criança já esteve ali, ele não encontrava.
“Pra onde ele foi? Droga!”.
Praguejando silenciosamente, ele saltou da cama sem por seu véu e abriu com ignorância a porta, não havia ninguém no corredor além de outro inquilino saindo de seu quarto para ir até o armazém da estalagem. Ele olhou o garoto agitado por um segundo antes de ignorá-lo. Então Timmi correu com suor de nervoso escorrendo pelo seu rosto. Ainda era cedo. Era comum para filhos de comerciantes acordarem tão cedo para ajudar seus pais, mas mesmo que estivesse ansioso pelo desjejum do dia, não era algo que trazia bons pensamentos acordar e o garoto por quem era responsável estar sumido. Descendo a escada com pressa, ele logo chegou na recepção, arfante.
Em um segundo, sua atenção se voltou para a região em volta, e foi quando percebeu que a atmosfera estava mais pesada que o normal. A moça que estava sempre no balcão fora substituída por um dos garotos que ajudavam no armazém, e outro deles estava varrendo monotonamente a parte leste do salão. Todos com uma face incerta no rosto, mesmo com a senhora Hurd estando lá. Porque além deles, eles estavam lá também.
Três homens altos de calças largas e botas de couro nas panturrilhas, turbantes cinzas e uma jaqueta preta com um símbolo bastante infâme de um leopardo de olhos vermelhos rugindo.
O jaqueta de barbicha tomava a frente da conversa, tentando oprimir a idosa com sua presença ameaçadora, mas como sempre, a senhora Hurd conseguia mesmo diante deles manter sua postura firme.
- Bem, bem, já faz algum tempo, senhora Hurd... com andam os negócios? - ele diz com desdém.
- Andam estagnadas, mas pelo menos venho conseguindo mais confiança entre os comerciantes que apreciam armazenar seus produtos, eu deveria agradecer a proteção de vocês, senhores? – ela retruca, incisiva.
- Hahahahaha! Sempre com uma língua afiada, não é mesmo? Gosto disso, me lembra a minha avó do interior, ela era sempre marrenta com os netos.
- Se você está aqui me cobrando mais uma semana, ela não deve ter sido marrenta o suficiente com eles.
- Há! Realmente parecia com ela, ela detestava ser interrompida ou questionada, e sempre que isso acontecia, nos enchia de cascudos, mas sabe de uma coisa, senhora Hurd? – ele diz, se aproximando mais um passo na direção da senhora.
Timmi e os dois garotos aumentaram a tensão em seus olhares, suando friamente, pois aqueles homens não tinham respeito real ou piedade pelos outros, eles sabiam, Timmi instintivamente sabia, e ela também sabia.
- Nós já crescemos há muito tempo, e desenvolvemos nossa própria maneira de pensar. Não temos mais idade de aceitar os cascudos ignorantes das nossas avós, agora que escolhemos nossos próprios caminhos, certo? – ele continuou, aproximando ainda mais seu rosto sórdido ao dela.
Mas sem se abalar, ela respondeu seu olhar a altura. Mostrar coragem diante deles era apenas estupidez, e ela não tinha força real para pará-los ou se proteger, mas o orgulho era tudo o que tinha, isso é algo que ela aprendeu há muito tempo no passado, mesmo que não tenha forças para lutar contra os males da humanidade, jamais fraqueje dentre eles, mostre que pelo menos sua força de vontade não foi quebrada e eles a respeitarão, ou no mínimo, verão que não há uma conquista fácil aqui.
E cedendo a esta lógica, o jaqueta sorriu indiferente, se afastando da idosa.
- Certo, rapazes, acompanhe-os até a tesouraria para o pagamento semanal da proteção. – diz ela por fim, aliviando um pouco a tensão no ar.
- Obrigado pela agilidade, minha senhora.
Então o jovem que varria a sala largou a vassoura na parede vermelha e o levou à porta dos fundos com os outros dois jaquetas da trupe. A atmosfera pesada desabou completamente dando lugar a uma calmaria depressiva.
- Senhora Hurd...
- Hã... Timmi, já está acordado? – ela questionou, percebendo a aproximação tímida da criança. Pesava em seu peito ter que ver algo assim sendo presenciado por ele, mas se manteve firme mesmo assim, era necessário, as crianças não podiam se sentir desesperadas, elas precisavam sentir que havia um futuro, esse era o dever dos adultos.
- O papai...
- Ele saiu há algum tempo para a alfândega.
- A alfândega... – ele murmura de volta.
Sim, era de partir o coração, ele sequer confiava que seu pai poderia retornar inteiro depois de fazer algo tão humano quanto ajudar outra pessoa necessitada. Mas não havia mais como impedir isso, Leonir era um coração mole, e isso era raro na cidade atualmente, raro como uma pedra preciosa, mas frágil.
- Relaxe, garoto, logo logo ele vai voltar pra te mimar o dia inteiro.
- Não, tudo bem, eu sei, mas tem outra coisa, você viu Fyrr por aqui? parece que ele sumiu do quarto.
- O que? – não, ela saberia se a criança passasse por ali, e mesmo que não, era incomum para isso acontecer. Às pressas se virou para o garoto no balcão e o questionou. – Ei! Você viu se a criança que Leonir trouxe ontem foi a cozinha ou qualquer outro lugar?
Ele balançou a cabeça, o que deixou ambos notavelmente preocupados, alguma coisa estava fora de ordem.
“Mas que diabos... ele não pode ter simplesmente saído pra cidade, certo?”.
(...)
Ar puro e uma brisa quente, era tudo o que ele precisava naquele momento.
Cercado de transeuntes nas abertas ruas de tijolos, a raposa cantarolava apreciando a sua primeira vista de uma cidade humana. Era ainda maior do que em sua imaginação quando os velhos lhes ensinavam sobre elas, e os desenhos nos pergaminhos eram feios demais para se comparar. Claro, tinha uma parte desagradável, como o cheiro acumulado de terra, bosta de elefante, mijos de cães, e humanos também, somados aos odores das barracas de comidas de rua que assavam alimentos rápidos variados e coloridos, mas mesmo com tudo isso, o barulho de comerciantes gritando para que os clientes vissem suas tapeçarias em lojas abertas, ou dos pais gritando com os filhos para não se afastarem, ou dos donos que passavam guiando seus elefantes com uma corda de condução na mão pela rua tornavam aquele caos bastante exótico.
Ao lado, várias lojas de cerâmicas e peças de enfeite caseiros dominavam as ruas, e por onde ele olhasse, dentro daquele imenso corredor emparelhado por altos prédios de três andares, e do outro, armazens abertos onde carroças estacionam na calçada formavam uma longa linha que atrapalhava o tráfego.
“Ahhhh! Então isso é uma cidade, que legal...”, pensou ele, emocionado com a sensação de ter seus sentidos super estimulados simultaneamente com a bagunça de sons e cores.
Mas apesar da variedade que via, uma coisa continuava a mesma. Os prédios continuavam cinzentos e o chão mantinha manchas de terra e fuligem nele, aumentando o escurecimento do ambiente, muitas pessoas ali vestiam roupas quase desbotadas, visivelmente mais simples que a que ele vestia no momento. E o ar agitado do centro era forte, mas ainda assim, assim como na estalagem, as pessoas pareciam mais retraídas, realmente alguma coisa estava acontecendo, ele precisava descobrir.
Caminhando vagante, com passos em falso, acabou passando por uma barraca que lhe chamou a atenção, com sombreiro colorido em cores vermelhas e uma fumaça que saia do forno portátil com um delicioso cheiro de fritura, chegando mais perto e observando por cima do balcão, viu que uma amostra variada de pães fresquinhos estava disponível ali.
- Waaaa! Eu moço!
O homem alto e robusto de camisa branca com suspensórios baixou a cabeça, cuidado para não derrubar o chapéu branco que usava, e sorriu docemente para a raposa animada.
- Oh, quer um de meus sanduíches, criança? Seus pais estão por aqui?
- Hã? Não, meus pais me deixaram dar uma volta por aqui, ei moço, quanto é um dos sanduíches?
- Hohoho, apenas duas moedas de prata, meu querido.
- Huuuh, não tem como você vender fiado pra um lindo garotinho kristano?
- Hohoho... – riu levemente o padeiro, se afastando – se manda daqui antes que eu te dê uns cascudos, moleque!
- Que cara chato...
- Hunf! É cada uma...
E ele se virou outra vez no banco, de olho na sua carne fritando, enquanto com o canto dos olhos semi-cerrados via a criança ousada se afastar.
Estava focado em seu trabalho como um bom cozinheiro, tanto que não percebeu um pequeno animal do tamanho de um gato saltar para cima do estoque e abocanhar um dos pães, se afastando rapidamente oculto pelo lado cego do padeiro, e a pequena raposa de pelos claros se afastou correndo até virar na próxima esquina, entrando num beco afastado.
Lá, ele voltou a sua forma humana e pegou o pão de mel na mão. Saindo esguio do beco, mordiscando seu lanche.
- Eu realmente ia te pagar depois, otário.
E caminhando outra vez, esgueiramente, a criança subiu numa calçada elevada num dos estabelecimentos no fim da rua central e observou as ruas mais uma vez, agora sentado e ponderando tudo o que conseguiu ver até o momento.
“É, tem alguma coisa errada nessa cidade. A guarda não estava em lugar nenhum, mas eles realmente andam por aqui, um ou dois gatos pingados circulando pelas ruas, todos de jaquetas escuras... as pessoas tinham medo quando os viam passar. Que estranho...”.
Suspirando, olhou para o céu limpo e azul, que do ponto de vista daquela cidade coberta de medo, parecia mais cinza que o normal.
”Acho que vou dar uma olhada na alfândega...”.
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