- Hmmmmmmmmm!
A comida não era lá dá mais especial, ainda assim, era bom ter coisa para encher o estômago, era assim que se sentia. Há pouco tempo um dos empregados havia trazido comida para Fyrr e Timmi que terminavam de preparar o quarto para o garoto. Havia mel e molhos variados em pequenos recipientes de cerâmica de variadas cores dispostas ao redor de uma bandeja com pares de forma para eles mergulharem, uma jarra com mel, e acompanhamentos como potes de frutas em conserva e geleias.
Com gosto a raposa mergulhou os pães em todo tipo de recheio que considerou possível e desmanchou a massa em sua boca, soltando pequenos gemidos de prazer. Em sua tribo, a comida costumava ser boa, mas bem diferente, sem muito sabor em destaque e organizada em pequenas embalagens com nichos simétricos para depositar principalmente o arroz e os acompanhamentos de peixes mal passados e vegetais cozidos.
Um prato feito para ser saudável, não apetitoso, diferente daquele que estava comendo, era tudo tão colorido e cheio de sabores fortes que sua língua fazia malabarismos dentro da boca, babando pela próxima mordida com um sabor diferente. Timmi olhou extasiado aquilo, vendo seu colega de quarto temporário acabar sozinho com uma das jarras de suco e suspirar de alívio ao terminar. Depois arrotando despreocupadamente.
- Caramba! Que comida boa! A cozinheira daqui tá de parabéns!
- Você tem um apetite e tanto... – comentou o garoto, o fitando de cima a baixo enquanto mordiscava timidamente o pão.
A capa havia sido posta para lavar junto ao quimono avermelhado simples de Fyrr, que acabou vestindo uma roupa semelhante a do filho do carroceiro, mas ainda usava na cabeça um turbante em forma de um capuz para ocultar suas orelhas sobressalentes de raposa, e apesar de perigoso, ocultar a cauda por debaixo na cauda do nó do véu que amarrou na cintura foi uma tática que estava dando certo.
- Cara, você não tem ideia de como a comida da minha família é sem graça. Só peixe e verduras, eu estava comendo grama e nem sabia. Nunca mais volto a comer só aquilo!
E ele arrota outra vez cortando sua frase.
- Hahahaha, você é engraçado. Mas seus pais não te dão nem um tira gosto de vez em quando? Que estranho...
- Eles têm essa frescura de que eu tenho que me alimentar bem e ser saudável, blá blá blá.
- Não devia falar assim dos seus pais, Fyrr, eles devem estar preocupados com você agora. – diz Timmi.
Ele vagamente observa a escuridão da noite por cima da janela do quarto, o brilho das estrelas estava forte naqueles últimos dias. Por um lado era agradável, mas por outro, lhe dava a lembrança de bons dias que não voltariam mais.
- Relaxa. Tenho certeza que eles estão bem. Sempre fui muito sortudo, acho que puxei isso deles, logo logo vou estar viajando de novo com eles e tudo vai ficar bem.
- Que bom que pensa assim, meu pai vive dizendo pra mim sempre sorrir e pensar que as coisas vão ficar boas. Mas não é sempre tão fácil pra mim. Você parece com ele. – desabafou o garoto.
- É mesmo. Ele me pareceu um adulto bem simpático. Acho que você teve sorte de ser filho dele, meu pai sempre foi meio rígido. – comentou a raposa, abocanhando mais um pão.
- Bem... ele ficou assim depois que minha mãe morreu.
“Ei! Por que você começou esse papo pesado do nada?”, engolindo em seco, Fyrr pega preguiçosamente a jarra vazia e desvia o olhar do garoto cabisbaixo encarando a comida, sem graça.
- Nossa, meus pêsames... aposto que ela era uma pessoa maravilhosa.
- Não sei, eu não me lembro muito dela, eu era muito pequeno pra entender, mas eu lembro do meu pai começar a ser mais positivo daí, ele sempre trás uma pessoa diferente aqui que precisava de alguma ajuda, uma vez ele até quase foi enganado por um cara que queria roubar as mercadorias dele, sorte que a senhora Hurd foi gentil de se livrar do trombadinha por ele... acho que ele às vezes leva isso a sério demais...
“Eu que o diga, enrolar ele foi fácil demais...”.
- Bem, os deuses podem ver isso e fazer ele muito feliz daqui pra frente, o brahm’ma da ordem está sempre disposto a recompensar, não é? – desconversou ele.
- Não sei... – comentou Timmi, olhando de lado com uma suave alteração no tom – Quando nós rezamos pra minha mãe quando estava doente da febre vermelha, eles não pareciam estar escutando...
“Credo...”.
- Bem... às vezes as coisas que queremos que aconteça não é o melhor... não sei, meus pais falam que tudo de ruim que acontece com a gente também têm um motivo, mesmo que não pareça.
- Seus pais são do credo da ordem? – perguntou ele.
- Hmmm às vezes rezávamos para o brahm’ma da ordem, mas também para o do caos e da criação. Sabe, por precaução.
- E eles atendiam suas orações?
- Não sei, ficamos mais confortados com o passar do tempo, isso conta?
- Deve contar... – murmurou o garoto.
Uma criança sozinha com seu pai, que enfrentou uma perda desde cedo e está crescendo aos trancos e barrancos cercado por um mundo competitivo. Observando os olhos recaídos de Timmi a raposa percebia bem o tipo de ambiente que influenciava tanto ele como as pessoas do lugar, mas ainda não era suficiente. Para concluir sua missão, ele precisaria de informações, e estas informações só poderiam ser conseguidas com um certo nível de confiança, se o filho do mercador havia se disposto a se abrir tão significativamente para ele apenas tentando aliviar um pouco sua frustração, devia ser um bom momento para arriscar, e ele o fez, pegando sua jarra na bandeja na mesa onde ambos jantavam sob a luz das duas velas presentes.
- Onde seu pai vai procurar pelos meus pais? Não tenho certeza se vou poder saber ajudar com o que sei.
- Hã? Acho que na alfândega... talvez... – aquilo soou hesitante, a feição do garoto ficou mais pesada e seu olhar desviou para a janela outra vez, mas ele não parecia estar admirando as estrelas agora, o que poderia ser?
- Ah! Então tem uma alfândega aqui... – comentou mais positivamente – com certeza meus pais podem ir pedir ajuda por lá. Sem falar que de lá eles podem reclamar dos homens que nos atacaram, bem, não acho que se reclamar com eles fosse o suficiente o meu comboio teria sido atacado, a guarda aqui não é das mais eficientes, não é?
- Não.. não é... – hesitante outra vez, Timmi baixou o olhar por segundos silenciosos sob os olhos artificialmente confusos da raposa, que não o dava espaço para recuar.
- O que foi? Ela é tão ruim assim? Eles são do tipo que ficam bebendo o tempo todo até levarem uma coça dos mais altos?
- Não, não é isso... olha... eu não quero ser um portador de más notícias, mas, se seus pais forem mesmo para a alfândega, eles podem estar em perigo. – disse Timmi seriamente.
- O que? Como?
A alfândega é a base de comunicação da guarda de uma cidade, além de um importante correio para enviar cartas para outras cidades, também funcionando como o cartório principal, um lugar assim é o número um em foco de segurança da guarda local, o que diabos deveria ter de perigoso ali?
- Olha, Fyrr, essa cidade, ela é mais perigosa do que parece. Você não notou quando estávamos vindo pra cá?
- Não, o que?
O ar repentinamente mudou para algo pesado. Mas a informação recebida era boa, uma alfândega era o maior centro de informação de uma região, se havia um lugar onde ele poderia descobrir onde e como chegar à floresta Mahatma, era lá onde ele deveria procurar. Disfarçando ao máximo sua curiosidade, ele continuou atiçando o desejo alerta de Timmi com seu tom confuso e inocente.
- Você não percebeu? Não tinha nenhum soldado andando nas ruas, nenhum marchando ou parado na frente dos prédios, ao invéz deles, tem esses caras de jaquetas pretas... são eles quem mandam na cidade de verdade... e eles dominaram completamente a alfândega também, eu tenho certeza. Os adultos daqui vivem escondendo isso das crianças, mas eu percebo, toda semana eles aparecem aqui pra pegar um dinheiro que dizem ser pela segurança que eles fazem, mas sei que é mentira, todo mundo fica com medo quando vê um deles, e todo mundo disfarça... e eles estão pela cidade toda...
- Caramba... eles são bandidos? Eles invadiram a cidade e sequestraram tudo? – era uma pergunta idiota, bandidos não dominam cidades, eles invadem e saqueiam, geralmente, depois de uma noite intensa numa batalha mortal contra a guarda local, foi isso que ele aprendeu nas aulas em sua tribo, manter uma cidade grande como Culleir era impossível pra degenerados vindos das estepes, e a guarda nunca em hipótese alguma deixaria uma gangue perigosa rondando por aí e extorquindo mercadores e donos de estabelecimentos. Haviam alguma coisa muito errada acontecendo na cidade, mas a tensão precisava ser atiçada.
- Não... eu acho que são coisa pior... ninguém fala pra mim o que está acontecendo, mas todo mundo nas ruas, nas casas, estão sempre com medo, eu consigo sentir...
Clang
A porta se abre chamando a atenção dos dois garotos, e virando naquela direção, veem o senhor Leonir entrando com um belo sorriso no rosto.
- Oh, estou interrompendo?
- Não, senhor Leonir, estávamos terminando de comer. – exclamou alegremente Fyrr.
- Que bom, você já parece muito mais vivo e enérgico do que antes, Fyrr, fico feliz por isso. – ele diz, se aproximando da mesa.
- Não, sou eu quem agradeço, senhor.
- Bem, Fyrr, não quero atiçar você por muito tempo, então, só vim te fazer algumas perguntas rápidas para poder encontrar seus pais. Sei que não é uma boa hora e não queria atrapalhar seu sono, mas...
- Tudo bem, senhor Leonir, - cortou o garoto – eu entendo, e tá tudo bem, sei que meus pais vão estar bem e que vai encontrá-los bem rápido.
- Hahaha, que maravilha! – o homem exclamou, levantando o peito em satisfação, tanto admirando a força que o garoto tinha quando sua ingenuidade duvidosa – É por isso que gosto tanto de crianças, sempre conseguem ficar por cima dos problemas como se eles nem existissem, arr... que saudade dessa época...
- Pai! Não divague!
- Oh! Certo! Me desculpem. Fyrr, quais são os nomes dos seus pais? E você lembra se o comboio possuía algum brasão comercial ou símbolo reconhecível?
- HMMMM...- Fingindo pensar, em poucos segundos divagando, a raposa encara o homem outra vez – Meu pai se chama Tisilge e minha mãe se chama Kan, tinha um brasão na carruagem principal do comboio, mas eu não lembro o que era, parecia um pássaro...
- Certo, uma mulher kristana chamada Kan e um homem chamado Tsilge. Obrigado pelo esforço, Fyrr. Juro que amanhã ainda pela manhã vou trazer seus pais até você outra vez!
- Acredito em você, senhor Leonir! – cumprimentou de volta.
Timmi sorri observando a cena. Vendo aquele sorriso sincero que seu pai mostrava ao ajudar as pessoas, e do fundo do coração, pela milésima vez em sua curta vida de mais de uma década, alimentou a esperança de que o brahm’ma guardava algo de bom em seus futuros.
Após mais divagações fúteis, o carroceiro saiu com a bandeja e os pratos com sobras dos molhos e deixou as crianças sozinhas outra vez, Timmi apagou as velas enquanto Fyrr foi o primeiro a levantar e ir para a cama, limpo e de roupa nova. Ele se esparramou preguiçosamente nela, tirando um suspiro de alívio de Timmi, que deitou logo em seguida e começou a roncar sonoramente.
Assim a noite passou, o céu clareou seu tom até o cinza pálido antes do amanhecer, e as persianas permitiram que a luz começasse a iluminar o pequeno quarto de cortesia onde duas crianças estavam hospedadas, mas quando elas alcançaram as camas, uma delas estava vazia.
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