O gramado terminou e deu lugar ao grande círculo de chão artificial de tijolos feitos pelo homem, e as primeiras casas soltas na fronteira da cidade se levantaram contra a estepe, iniciando o território da cidade e ponto comercial da região, Culleir.
O garoto ficou impressionado com o que via, já que era a primeira vez que observava aquele tipo de arquitetura e aquela imensa aglomeração de construções humanas, muito diferente da tribo em que vivia no meio de uma floresta interminável.
A maioria das casas eram de dois andares e feitas de pedras, com telhados cobertos de telhas castanhas formando grandes sombreiros, tinham o formato paralelepípede e portas e janelas com colunas arqueadas as flanqueando, o chão de tijolos estava limpo como nunca, e o fluxo humano crescia a cada instante, aos poucos, o ar limpo atmosférico da planície estava dando lugar ao ar vivo de uma cidade. Em pouco tempo, os grandes prédios arqueados com domos pontudos em seu topo cobriam o espaço que ainda parecia estar presente na cidade, e o fluxo de pessoas, animais e outras carroças movidas a elefantes anões aumentou drasticamente.
- Wow! Olha isso!
- Porque parece tão surpreso? – questionou Timmi, observando os grandes olhos de Fyrr brilhando de curiosidade.
- Bem, nas cidades em que eu ia, não entrávamos tanto assim dentro delas...
E a carroça continuou seguindo pelas estradas turbulentas enquanto ele devorava aquela visão quase caindo da janela da carroça, em pé sobre os caixotes de mercadorias do seu “salvador”. As pessoas em sua maioria se vestiam como Timmi e seu pai, e os elefantes variam nos padrões e cores dos véus ornamentais que vestiam, com o passar do tempo, barracas de comida de rua começaram a aparecer e um cheiro apimentado chegou ao nariz da raposa, o fazendo babar sem parar, a comida era tão colorida e vibrante que pareciam jóias comestíveis.
Eles passaram da zona onde a fumaça dos fogões de rua tostando alimentos rápidos se eleva numa coluna de odores temperados para voltarem a uma parte menos agitada em fluxo humano, mas com a mesma quantidade de carroças, prédios acinzentados e escurecidos pelo desgaste do tempo. O cheiro de estrume de elefante e mijo começou a dar lugar ao cheiro anterior, e não foi muito agradável à raposa, que observava a região apenas com a força de sua curiosidade. Quando a carroça entrou num beco mais estreito, tudo o que ele passou a ver eram as grandes paredes das construções, até o carroceiro estacionar em frente um prédio largo, com um domo principal no centro e dois outros menores flanqueando as colunas que sustentavam o teto e a construção, com várias janelas arqueadas e uma entrada que poderia ser digna de um palácio se fosse maior e de uma madeira mais polida e preservada, ao invés da rudimentar madeira velha e desgastada.
- Chegamos, Timmi! Traga Fyrr e vamos juntos esvaziar a traseira!
- Sim pai!
- Deixe que eu ajudo, senhor. – pediu ele.
- Não, não, Fyrr, você ainda pode estar cansado depois do que passou, deixe que eu e meu filho cuidemos disso, afinal, somos comerciantes também.
“Bem, se você pediu, quem sou eu pra recusar?”, sorriu o garoto.
Ambos o homem e o garoto começaram a descarregar os caixotes da carroça para a calçada do prédio, Fyrr admirou a construção mais um momento, impressionado em quão grande uma casa poderia ser. O carroceiro chamou um outro adolescente que saiu pelas portas altas da entrada e o fez desatar as cordas de condução do elefante e o levar para o outro lado da construção, enquanto isso, outros garotos chegaram e começaram a pegar os caixotes e acompanhar o primeiro adolescente. Timmi e seu pai pegaram cada um um dos sacos de grãos que acompanhavam os caixotes juntos na carroça e entraram no prédio com o garoto atrás deles.
O ar mudou lá dentro.
A pouca luz que entrava pelo par de janelas arqueadas flanqueando a fachada davam um tom cinzento à atmosfera, tão cinzenta quanto lá fora. Havia uma leve movimentação de poeira vagando no ar monótono do ambiente silencioso. Eles estavam caminhando numa espécie de recepção, um hall aberto e espaçoso, com um balcão na parede norte na frente um painel de madeira com chaves e documentos grudados nele. O piso de madeira varrido estalava com seus passos lentos, alguns vasos de plantas enfeitavam o ambiente chato tentando fracassadamente colorir o lugar. Duas escadas flanqueavam o salão dos dois lados e o teto de laje era bastante alto para uma simples construção de estalagem.
- Nós ficamos nesta estalagem como casa e como armazém para as nossas mercadorias, então não se preocupe com sua estadia, pode ficar o tempo que quiser até encontrarmos sua família. Timmi, você poderia chamar a senhorita no balcão e pedir para ela um quarto de cortesia? – disse o carroceiro.
Fyrr olhou na direção que o homem apontou e viu uma jovem garota de vestido rosado e um xale em volta dos ombros sorrindo para eles, talvez esperando para atendê-los, um outro jovem varria o chão em que os três haviam acabado de passar, era um local aparentemente mais cuidadoso que a média.
- Ok! – disse inocentemente o seu filho.
- Pegar um quarto de reserva? Foi o que acabou de dizer, Leonir? – exclamou uma voz idosa e ruidosa, olhando naquela direção, a raposa ouviu e viu uma senhora descer a escadaria direita fazendo barulho com sua bengala e seus tamancos de couro surrados.
O carroceiro travou na posição em que segurava o saco com os dois braços no lugar, suando frio.
A senhora lentamente se aproximou encarando Leonir com olhos de águia, que passou para o seu filho, igualmente tenso no lugar, e depois para Fyrr, que respondia aqueles olhos velhos e espertos de forma diferente.
- Se-senhora Hurd! Achei que estaria descansando a esta hora... como está sua saúde hoje? – diz forçadamente gentil o homem.
- Huh... não se mexa, Leonir.
A velha caminhou até eles com sua bengala até estar há um metro de distância dele, e repentinamente, ela pressionou o cabo da bengala contra a face do carroceiro incisiva.
- Que história é essa de pegar um quarto de cortesia, einh? Leonir? Você e seu filho mal conseguem o suficiente pra sobreviver e você me vem com essa história de ajudar os outros de novo?
- Se-senhora Hurd! Você não entende... o garoto... ele teve todo o comboio de sua família atacado pelos saqueadores... ele vagou sozinho um dia inteiro pelas estepes podendo ser atacado por carniceiros ou outros animais selvagens... – lamuriou o homem.
- Ah, é? - ela desdenhosamente desvia o olhar do homem e retira sua bengala suja de terra da cara dele para vagar até Fyrr, logo atrás do homem e seu filho, agora o fitando de cima.
- Muito boa tarde, senhora, meu nome é Fyrr, - comprimentou ele, se curvando ligeiramente para a idosa que o encarava de cima, tinha os cabelos grisalhos presos num coque firme e um vestido rosado sobre um xalé branco e bordado, com olhos velhos perscrutantes, tão bons quanto os deles – por favor, não fique brava com o senhor Leonir, ele me ajudou quando pensei que ia morrer depois dos saqueadores, eu prometo que meus pais vão poder pagar de volta por qualquer coisa que ele faça.
- Que gentil e educado, garoto, - ela o questionou sem mudar sua expressão neutra – seus pais ensinaram etiqueta muito bem a você, não?
- Educação é algo que eles sempre me disseram pra ter com os adultos, senhora, principalmente os mais velhos.
- Que docinho, - ela diz com desdém – você é bem singular também, você é daqui, meu bem?
“Que observadora, einh?”. Ele pensa com sarcasmo, talvez todo aquele cuidado fosse irritante, significava que não era a primeira vez que o carroceiro era enganado.
- Sou meio kristano por parte de mãe, por isso tenho cabelos e olhos claros... senhora...
Foi uma pequena aposta, a mulher o encarou por um segundo longo e desconfortável sob o olhar despropositadamente nervoso de Leonir neles. Mas quer ela tenha percebido ser mentira ou não, sorriu enigmaticamente para Fyrr, que não se abalou nem por um segundo em seu olhar, já que para contar uma boa mentira, é necessário você mesmo acreditar nela no momento.
- Que curioso, não vejo um faz tempo, mas você é tão branco que não tinha como não ser do oeste. Bem, já que você teve sorte de ter sido ajudado por esse estúpido aqui que sequer ligou pra própria segurança, deixe-me tomar responsabilidade por isso até encontrarmos seus responsáveis, por acaso... eles ainda estão vivos?
- Senhora Hurd! Que crueldade perguntar isso a uma criança! – reclamou Leonir, logo em seguida se encolhendo sob o olhar duro dela.
- Bem, talvez tenha sido um pouco insensível, mas garoto, se por acaso quer reencontrar sua família, vai ter de nos ajudar também, então descanse o quanto puder e junte forças agora para amanhã procurarmos por eles, certo?
O olhar duro mas gentil da idosa e a confiança que sua presença passava não era pouca coisa, ela era uma mulher forte e difícil de enganar, o tipo de pessoa que seria contraproducente contar uma mentira e bastante confiável. Pelo olhar que o carroceiro e os outros funcionários que observavam a cena de suas áreas apontavam, ela era o alicerce deles ali. Colocando isso bem em mente, o garoto apertou propositalmente as barras da capa e pressionou os lábios com força, caindo o olhar e respondendo com fraqueza. Uma calma atuação.
- Sim, senhora... vou tentar...
Ela fungou e então diminuiu a tensão da atmosfera, se virando ao seu empregado que há pouco varria o ambiente.
- Vamos, ajude o senhor Leonir com seu carregamento e leve-os para um quarto de cortesia. Você! – ela aponta sua bengala para a garota no balcão – prepare um dos quartos vagos e divida o preço com o quarto de solteiro do senhor Leonir, sem lucro eu não fico!
- Sim senhora!
- Huff, muito obrigado, senhora Hurd...
- Não me agradeça ainda, Leonir, eu só parcelei essa sua nova dívida, sinceramente...
E resmungando, a idosa dona da estalagem voltou a subir as escadas com a ajuda de outro de seus empregados.
- Não se preocupe com o temperamento forte dela, Fyrr, a senhora Hurd é uma pessoa muito boa.
- Eu vi, não se preocupe, não me assustei, obrigado por sua ajuda, senhor Leonir! – responde docemente.
O empregado jovem pegou o saco de grãos de Timmi e os dois garotos acompanharam os homens até os fundos da estalagem, onde estavam armazenados todos os sacos de grãos e caixotes de mercadorias de todos os mercantes que repousavam na estalagem, então os três foram até o balcão, em que a garota já os esperava com a chave do novo quarto nas mãos. Com um sorriso de satisfação no rosto Leonir o leva pelas escadas até o corredor onde estavam os quartos.
O cheiro de madeira conservada impregnava o lugar, mas não era um cheiro ruim, o lugar era iluminado suavemente pela janela no final do corredor, a atmosfera continuava com um tom descolorido, mas agora, com os sorrisos de satisfação do carroceiro e de Fyrr, não parecia mais tão sem graça. Leonir guiou-os até o último quarto, que abriu rapidamente com a chave. Um quarto simples, grande o suficiente para um homem adulto habitar, havia uma cama de palha com uma almofada de penas que cheirava a feno novo, coberta com lençóis coloridos de padrão fractal em amarelo. O resto da mobília se resumia a um divã pequeno de duas gavetas onde uma jarra de cerâmica pousava, e uma pequena mesa com uma vela para a iluminação à noite. Uma janela na parede em frente a porta deixava a luz solar clara da tarde entrar.
Fyrr entrou timidamente e sentou na cama testando a tenacidade do colchão, era boa o suficiente.
- Pode rolar a vontade, Fyrr. Vamos deixar você passar a noite aqui ou quanto tempo for necessário até encontrarmos seus pais!
- Obrigado de novo, senhor Leonir!
- Não precisa agradecer, meu pequeno... uma criança jamais deveria passar pelo que você passou... esse mundo já foi mais amigável antes. – ele olhou suavemente para o alto, mais etéreo, pegando Fyrr de surpresa, ele não parecia o tipo de pessoa que vagava por coisas muito além dele – ah... desculpe-me, não quero dizer nada com isso. Em pouco tempo irá anoitecer, então vou deixar Timmi aqui com você, tudo bem com isso, Fyrr?
- Sim senhor, não tenho mais medo de dormir sozinho, sou um garoto crescido. – ele responde, estufando o peito.
- Hahahaha, que garoto corajoso.
E com um sorriso enrugado o carroceiro observou as crianças com um bom resquício de simpatia.
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