Se metade do que os anciões lhe diziam dos dragões fossem verdade, então ele estava muito mais que morto.
O dragão de escamas azuis o furou com o olhar de cima, taciturno, silencioso, e ponderado. Ele cruzou suas patas dobradas na frente do peito como um grande felino e não tirou os olhos aterrorizantes da raposa até o fim.
Naquela montanha, naquela câmara, naquele dia chuvoso, um dragão imponente e uma pequena criança raposa se encararam.
Dois olhos estavam cheios de terror, e outros dois olhos estavam desdenhosos.
- Faz tempo que não vejo uma raposa ardilosa como você, criança. – zombou o dragão. Mantendo o ar de ponderamento. Como um idoso repreendendo o neto.
Algo que a raposa conhecia muito bem, e que de certo modo lhe despertou uma pequena esperança de escapar com vida.
- Me desculpe! Senhor dragão! Eu não ia levar nada! Eu juro! Estava apenas tentando fugir da chuva! – Exclamou ele, se encolhendo dentro da capa.
- Claro, aposto que também tentou pegar no punhal para tentar se proteger das gotas quando saísse, não é? – Zombou o dragão.
- Eu...
- Cale-se. Eu não tenho muita paciência com raposas. Agora fale, quantos de vocês tem lá fora, e o que querem neste salão? Vou saber se estiver mentindo. E se mentir, vou incinerar sua perna esquerda. – disse ele, sem mudar em nada de sua expressão.
Enquanto o garoto lhe devolvia um olhar de horror tentou com o resto de consciência responder qualquer coisa, mas as palavras não lhe saíram da garganta, entaladas pelo medo, respirando pesadamente e suando mais que normalmente seria possível com o frio da câmara ele tentou se concentrar, controlar a respiração, e juntando algumas forças que lhe sobravam, respondeu.
- Só eu... Só há... Eu...
Era sufocante, estranho, aquela emoção que ele raramente sentia, um medo profundo de congelar ossos, não parecia sua, mas sim algo projetado em sua mente, e até o momento, seus olhos não desgrudavam do dragão, talvez pela criatura ser tão imponente e poderosa, ou talvez...
O dragão o perscrutou com os olhos por um segundo antes de aliviar minimamente sua expressão.
- Está mesmo apenas tentando fugir da chuva?
- Sim...
A respiração pesada da raposa passou a ser a única coisa audível claramente na câmara. O silêncio tenso sufocou-o por vários segundos, até que o dragão suavizou mais uma vez.
- Que falta de sorte, então apenas teve o azar de trombar numa das entradas para este salão?
- Você não vai me incinerar? – Exclamou o garoto, num tom mais desesperador do que ele queria, e talvez mais alto também, algo que poderia ter provocado a fera.
Mas ele apenas adiou seu olhar na direção da raposa.
Ponderando algo talvez, o garoto podia sentir que o dragão a sua frente pensava intensamente em algo, eles eram criaturas antigas, poderosas além dos limites, e verdadeiros semideuses naturais.
Sua única esperança de sobreviver seria apelar para o lado mais altruísta dele, se é que aqueles lagartos gigantes tinham um. Foi quando algo passou pela sua mente, uma lembrança de uma das mais curiosas histórias que lhe haviam contado. Claro, no meio daquela escuridão e situação tão amedrontados, com a mente atordoada pelo olhar mortal que a criatura monstruosa usava para tremer suas bases, ele não tinha como lembrar, mas o aperto no peito causado pelo medo tinha afrouxado, lhe permitindo pensar um pouco mais caramente, assim, recuperando a informação daquela lembrança.
A resposta estava na ponta da língua. Não havia dúvidas.
- Você é Celênio, o dragão azul da sabedoria, não é? – ele disse, prestes a arriscar tudo, mas só talvez, se estivesse certo, sua morte não fosse uma inevitável consequência.
O dragão em resposta abaixou seu focinho, como que para encarar melhor a pequena e frágil criatura em sua época primordial de vida, já batendo as portas da jovialidade, mas ainda assim, imaturo. Ele tinha uma experiência razoável com kitsunes, o suficiente para saber que quando uma abria a boca, o irritaria de várias formas diferentes. Ainda assim, aquela criança parecia de certa forma... Diferente.
- Interessante, como chegou a esta conclusão? Por causa das minhas escamas azuis ou porque ainda não te transformei em carvão, uma planta ou uma sombra meio morta?
- A-acho que tudo... Também apenas uma criatura tão graciosa e de seu porte não poderia ser outro senão o grandioso dragão patrono da...
- Cale a boca. Bajulação não vai te ajudar em nada, a menos que esteja tentando me irritar. – cortou o dragão, pensando em ser o mais tolerante possível, olhando para o garoto com condescendencia – Eu não tenho um grande apreço por seu povo independente de quantas caudas possuam... Talvez se tivessem nove atrás da sua capa, eu até relevasse.
- Bem, pode esperar mil anos até que minhas outras caudas cresçam então? Assim podemos voltar a ter esta conversa mais cordialmente. – Disse o garoto, colocando um falso sorriso no rosto.
- Para alguém tão assustado sabe bem usar sua língua. Bem... Já que não veio aqui para roubar ou atormentar o meu despertar, acho que não preciso me dar ao trabalho de perder tempo com você.
- Obri...
- Eu não disse que te deixaria ir. Teve o azar de invadir este salão quando acabei de acordar, agora vai ter que arcar com as consequências.
- Me desculpe! Nunca nem pensei que o dragão azul estivesse dormindo aqui! E a entrada não era grande o bastante para um dragão passar! Como ia imaginar? Parecia só uma caverna!
Só lhe restava se fazer de inocente, implorar, suplicar e apelar para o lado ponderado do dragão, mas o ser já tinha vivido demais para se persuadido assim.
- Eu imagino. Então, raposa de uma cauda, porque estaria vagando aqui por estas montanhas? Se está realmente sozinho, não é um lugar muito seguro para ficar vagando, há muitos predadores perigosos rondado pela área, principalmente os noturnos.
- Eu... Fui expulso da minha tribo...
Era verdade, assim como mais uma chance de apelar para o dragão, que mesmo encarando o olhar suplicante do garoto, não mudou sua expressão.
- Por que?
- Eu provoquei a entidade do rio, e por isso o templo foi alagado.
- Provocar? Fala dos espíritos do rio que tem afluentes nestas montanhas? Entendo, eles podem ser bem mal humorados dependendo da época do ano. – conta Celênio, olhando vagamente na direção das colunas naturais formadas próximas as paredes da câmara, e logo se voltando para o garoto raposa outra vez – Como foi que conseguiu provocar um deles? Não imagino que tenha sido difícil, claro.
- Eu só derrubei umas frutas na água e ele apareceu e começou a provocar a mim e os outros garotos que estavam comigo, estávamos só vagando pela floresta, então eu pensei em jogar frutas podres nele, e ele não gostou, atirou água na gente, tivemos que correr muito.
- Que idiotice. Por isso detesto filhotes da sua raça.
- Somos crianças! Fazemos besteira, não é?
- Ser vitimista não vai retirar a culpa de seus ombros e muito menos resolver o problema. Você deve ter um mínimo de noção para saber que não se deve mexer com entidades mais poderosas que você, além de que você é uma raposa, não uma criatura mortal comum, mesmo com uma cauda é capaz de fazer muita coisa.
- Não posso ficar invisível e nem criar ilusões como os adultos, o que diabos eu posso fazer? Aquele espírito estúpido que...
- Não foi você quem jogou frutas podres nele ao invéz de pedir desculpas por ter derrubado coisas nele? – apontou Celênio.
- Mas não fui o único, ainda assim fui expulso!
- Um templo é algo extremamente importante para qualquer povo que vive neste mundo. Você sabia disto, tenho certeza, ainda assim não pensou nas consequências de provocar um rio, que é muito mais velho e poderoso que você. Arrr, não vou perder tempo tentando lhe ensinar alguma coisa, apenas as consequências podem enfiar alguma lição em sua cabeça, e se nem isso der certo, então talvez te incinerar seja a melhor escolha.
- Não precisa! Eu sei que eu estava errado...
- Isso é verdade. – conta o dragão, o perscrutando com seus enormes olhos azuis, refletindo a pálida luz amarelada.
- Ainda assim... O que eles fizeram foi o mesmo que me matar.
- Bem, isso é verdade também... E então?
Apertando com força a barra da camisa ele sentia as emoções intensas subindo até sua cabeça outra vez, encarando o chão, as memórias de toda a tribo reunida em frente ao templo, o encarando com raiva e escárnio vieram, os anciões, sentados sobre as almofadas carmesins como se fossem os próprios deuses que cultuavam nem olhavam diretamente para ele, eles não se preocupavam se ele estava bem, se havia se arrependido ou aprendido alguma lição, eles o olhavam como se fosse um peso morto, uma peça inútil no meio duma construção de barro.
Eles o despacharam sem pensar duas vezes, lhe dando apenas uma cantara para guardar água e uma capa para se proteger do frio da noite, e mais nada. Não lhe adiantou implorar, ele sabia disso, por isso quietamente aceitou seu destino.
Era cruel, mas não injusto. Ele sabia disso.
- E então? O que planeja fazer agora? – perguntou o dragão.
- Pra que quer saber? – o garoto respondeu da forma menos rude possível, evitando olha-lo nos olhos.
- Só estou curioso. Não se esqueça que não passa de uma raposinha encurralada com um dragão. Então não precisa mentir ou se enganar, seja sincero. O que pretendia daqui pra frente?
O garoto voltou a olhar para o dragão, mas o medo tinha se dissipado, ele sentia uma estranha falaria, e uma sensação de que poderia fazer qualquer coisa, pois não tinha nada a perder, uma sensação de liberdade infindável que vinha sempre antes do fim
– Eu não tenho a menor ideia. Talvez, enrolar um dragão super poderoso até conseguir fugir gloriosamente?
O dragão pela primeira vez esboçou algo que poderia ser interpretado como um sorriso, seu olhar havia mudado de certa forma, com um brilho diferente e imprevisível.
- Esta seria a maior façanha que uma raposa de boa lábia poderia fazer, de fato. Mas não tenho nenhum motivo para te deixar ir embora.
- Então vamos decidir isso no cara ou coroa? Não temos nada a perder além de uma moeda.
- Hum. Pode ser uma boa ideia. Mas eu tive uma melhor.
O torso maior que dois pinheiros empilhados se contraiu, e o pescoço se voltara para a pequena criança raposa, que o olha enquanto a tensão volta a crescer e suor frio escorrer de seu rosto.
- Vai me comer? – Exclama o garoto.
- Olhe só, se dragões comessem homens e crianças para sobreviver, suas raças já estariam extintas. Você não serviria nem para um petisco antes dum cochilo rápido. Muito menos um humano, dragões não perdem tempo os comendo, essa é uma história que lordes covardes inventaram por aí.
- Ah! Então o que?
- Qual o seu nome?
- Ah, Fyrr, meu nome é Fyrr.
- Fyrr, o quanto você sabe sobre estas terras em que vive?
- Hã?
O dragão o fita intrigado, enquanto o garoto se esforça para entender a pergunta.
- Fala dessas terras?
- Sim, mas do mundo inteiro também.
- Acho que nada, eu não tenho asas para percorre-lo como você.
- Tem razão, tudo bem, eu posso te ensinar, de qualquer forma.
- É sobre o acordo?
- Sim. Eu pretendo dar a você uma missão longa e especial. Não deve ser muito arriscada para raposas, mesmo com só uma cauda. Na verdade, pode até ser benéfico pra você de muitas formas. E só assim você pode sair deste lugar com vida. Você aceita?
- Porque parece que não tenho escolha? – retruca o garoto.
- Por que não tem. Bem, esta tarefa tem relação com o fato de eu estar dormindo há dez anos, e também com o fato do governo destas terras terem mudado drásticamente, mas acho que você não deve saber.
- Por acaso... Eu vou ter que fazer alguma longa viagem para algum lugar?
- Não, serão várias longas viagens, dependendo de como se sair, posso até te recompensar com um bônus. Vai aceitar ou não?
- Tudo bem. Acho que é melhor que morrer, não é?
- Talvez. – o dragão brilha seus olhos outra vez, fitando a pequena criança raposa de uma forma diferente, algo que Fyrr nunca havia experimentado antes.
- Então, Fyrr, me deixe primeiro te contar o que está acontecendo com este mundo.
Engolindo em seco ele se aproxima do dragão azul da sabedoria.
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