Quanto? Quanto ainda teria que andar? Com suor escorrendo pelo rosto ele seguiu subindo pela montanha, em busca de um abrigo, uma caverna, uma toca ou até um buraco seria o suficiente, mesmo que não o confortasse, pouparia-lhe o trabalho de ter que cavar uma cova, largar uma raposa criança para o exílio era o mesmo que matá-la, não faria diferença nenhuma se eles o degolassem de uma vez. Talvez o ancião desgracado estivesse até agora o observando e rindo enquanto o garoto lentamente morria de sede e fome numa floresta gigante cheia de perigos, tudo isso enquanto enchia a cara de maçãs...
“Desgraçados!”, pensou o garoto, revoltado, sem forças até mesmo pra praguejar em voz alta, seu corpo reclamava sem parar de fome, mas não tinha muita escolha além de suportar, já que de qualquer forma, não havia muito o que fazer, sobrevivência nunca foi seu forte, agora sentia o peso de nunca ter dado ouvidos aos ensinamentos de seus irmãos mais velhos, a pouca água da chuva da noite anterior que conseguiu armazenar na cântara que lhe deram estava prestes a acabar, racionar não era seu forte também. Como em todos os outros dias nenhuma árvore frutífera estava a vista, e caçar? Nem em seus melhores dias, a pequena kitsune simplesmente não sabia como fazê-lo, sua natureza barulhenta não permitiria.
Só lhe restava continuar vagando perdido no ermo até der sorte de encontrar uma vila humana ou algo do tipo, roubar deles não era nada difícil, enganá-los também não. Aquele não era o fim, com certeza não, ainda assim, ele precisava continuar e encontrar um abrigo logo, as nuvens escuras estavam voltando a se formar, cobrindo o sol alaranjado que acabava de nascer no horizonte, uma tempestade estava prometendo voltar, e ele não queria dar a chance do senhor dos raios atingir uma raposa perdida. Nem pensar. Um abrigo era necessário, e isso só era possível na montanha.
Mesmo sem saber absolutamente nada sobre elas além do que ouvia e via pela copa das árvores, ele preferiu se arriscar numa montanha, e parecia ser a opção certa até então, não haviam muitos predadores presentes, eram boas para ver os arredores mais amplamente sem medo de ser visto, ele então retornou a sua verdadeira forma, voltando a sentir o peso de suas soupas e sua capa sob a pele. A escalando, ele foi se dando conta do quão realmente enorme era uma montanha, nada como uma sombra vaga do horizonte, mas aquelas pilhas gigantescas de terra ligadas umas nas outras diante dele eram quase míticas. Conforme a ladeira se tornava mais ingrime e a vegetação sumia dando lugar à terra árida e empoeirada, suas pernas protestavam de cansaço, sua língua estalava implorando por água, o pico gigante e claro da montanha cinzenta parecia não se aproximar por mais que ele escalasse, as nuvens enegrecidas se uniam ainda mais num mal agouro anunciando uma bruta tempestade logo pela manhã, ele logo veria que não seria possível subir muito, e mesmo que o fizesse, não teria certeza de sua segurança, era melhor ficar próximo da base e ter cuidado com deslizamentos, assim sendo começou a caminhar em volta da subida, em busca de qualquer buraco profundo.
Olhava para a esquerda, e para a direita, mas nada que aparentasse um esconderijo entrava em seu campo de visão, após alguns passos forcados que ele finalmente avista um escuro espaço rochoso de esperança, estava logo acima entre algumas rochas soltas empilhadas naquele local específico. Sem estranhar, a raposa começou a ir naquela direção, e o céu se fechava. Após as rochas se aproximarem o bastante para superar sua altura, o garoto para e curiosamente encara a pequena depressão cavada na costa da montanha, e nela, um pequeno caminho se abria revelando uma entrada. Com aproximadamente o dobro de sua altura, um portal imponente de rocha, provavelmente esculpido na própria montanha, dava entrada para uma caverna, era belo, bem trabalhado, com restos corroídos pelo tempo do que já foram prováveis escritas e desenhos de uma epopéia, o garoto farejou no ar, mas não sentiu nada familiarmente perigoso além de um ar frio e terroso que entrava e saía do portal, como uma respiração, apesar das inseguranças, a jovem raposa não sabia de nada sobre a construção, e tudo o que ela despertou foi sua curiosidade, além de que nunca tinha ouvido nenhuma história de seus antecessores sobre portais de rocha sólida deteriorados e rachados serem perigosos, mas também nenhuma delas lhe diziam como era entradas para cavernas, ele olhou inseguro para o céu fechado ameaçando cair em cima dele, e depois para o vazio imensurável da entrada que o olhava de volta de dentro da montanha, seja lá o que as entranhas da grande pilha de rochas escondessem, ele não deveria temer, afinal de contas, era o mais ágil e rápido das raposas, o que alguém como ele deveria temer? Nem os ursos ou leopardos conseguiam alcançá-lo, os caçadores mais experientes da tribo tinham dificuldade em pegá-lo quando fugia de um roubo, sem falar em sua grande confiança na destreza. Sim, não havia nada que precisasse se preocupar, e com certeza não havia nenhuma serpente gigantesca ou leopardo selvagem escondidos numa caverna tão grande e pomposa como aquela.
Deixando a curiosidade vencer, o garoto passou a mão pelas rochas e caminhou para dentro da depressão, encarando a grande entrada em ruínas e para a escuridão lá dentro. Enquanto isso, um trovão assolou pelo céu, e fez toda a montanha estremecer. O garoto raposa entrou no portal.
A escuridão o abraçou e o engoliu de uma só vez, nem um palmo adiante sequer era visível para ele mesmo com olhos afiados para a escuridão, o que logo abalou fortemente sua crença em seus próprios dotes. Se guiando apenas por seu tato, sentia a parede do corredor passando entre seus dedos, ásperas, uma rocha bem partida com linhas profundas entre elas, era uma caverna artificial criada dentro da montanha, mas ele não sabia disso, apenas estranhou um pouco como aquela parede rochosa poderia ser tão plana, como madeira polida. Ainda assim ele seguiu pelo corredor, sem enxergar nada, guiado pelo tato de sua mão, uma hora, a parede plana se torna áspera, irregular e mais natural para uma caverna, ele já caminhava há mais de um minuto, tenso, confuso, e cego, o piso também deixou de ser plano, seus passos ecoavam pelas irregularidades e em outros momentos ameaçavam tropeçar em pedras soltas e pedaços do caminho de profundidades diferentes que não enxergava, seu humor já estava chegando no limite, o medo do desconhecido dando lugar a irritação pela impaciência para chegar ao fim. Seja lá o que o esperasse no fim daquela longa e misteriosa caverna.
Sua impaciência por sorte ou azar fora respondida naquele instante, quando ao longe, uma clara luz fraca e estranha se apresentou no fim do túnel, como uma estrela perdida. Não era luz do sol nem de rochas, mas uma luz muito mais sutil que apenas graças a sua visão noturna o garoto raposa detectou de tão longe. Embriagado por descobri-la ele continuou seu avanço mas rapidamente, sua capa tocava no chão e acumulava a poeira da caverna, há algum tempo ela começara a balançar como fracas brisas de ar que passavam por ele vindas da direção da luz, isso lhe dava a esperança de haver algo muito melhor do que um mero abrigo, seus olhos brilharam de emoção, apesar de tudo, continuava sendo uma criança beirando a adolescência com fome do desconhecido intensificada após a tragédia que lhe ocorreu. Era seu meio de fugir da realidade em que estava, de certa forma.
E sua caminhada continuava, sua respiração estava tão alta que era audível de longe, a luz, que antes não passava de um pálido ponto amarelado era agora uma verdadeira luz no fim do túnel, e do outro lado dela estava o imprevisível. Mas o medo já abandonará a mente da criança raposa há muito tempo.
Tão próximo da saída que a caverna se iluminará com a luz alaranjada e pálida, seu rosto jovem e esbelto escapa das sombras do longo corredor e encara as entranhas da montanha, finalmente, sua mão de dedos pequenos e pálidos segura a borda do portal de rocha da saída, o garoto raposa numa capa escura sai da caverna e entra na gruta.
- Que coisa! – ele Exclama, espantado.
O desconhecido estava a sua frente, e não era pra menos sua surpresa, dentro da floresta em que vivia, numa bolha criada por sua própria tribo, tudo o que sabia sobre o lado de fora não passava de histórias, e aqui estavam elas agora, bem na sua frente.
Uma câmara se expandida depois do portal com centenas de vezes a altura da pequena criança raposa, a câmara era cinzenta e rochosa como a montanha, haviam enormes estalactites crescendo do chão como plantas mortas pontudas, alguma delas próximas da parede rochosa tocavam as estalagmites no topo dela, formando colunas de rochas naturais, porém, a vastidão da câmara não podia ser medida, já que a frente da câmara natural era a única parte dela iluminada, haviam nichos nas paredes dos lados do portal atrás da pequena criança com cuias de rochas velhas de pedra esculpidas nas próprias paredes, e chamas vivas do tamanho dum punho cuidavam de iluminar a entrada, enquanto todo o resto da câmara quinze metros a frente mergulhava na escuridão, mas isso não era o suficiente para deixar a raposa espantada, claro, o que o embasbacava era o ouro, as toneladas de tesouros dourados presentes nela. Era possível vê-lo se empilhando e cobrindo o piso deteriorado de rocha da câmara, as grande pilhas de moedas, taças, espadas e baús podres cheios de mais ouro se empilhavam em montes de tesouro brilhante até serem engolidas pela escuridão, o garoto deu tímidos passos a frente, olhando em volta para as milhares de moedas de metal estranho e colorido que sabia ser ouro, porque já vira algo parecido no topo no mastro onde os anciões viviam.
Havia peças de diversos formatos, o mais comum eram pequenos discos com insígnias marcadas nos lados, mas também haviam diversos tipos de pedras, armas e caixas de madeiras corroídas, as pilhas se derramavam entre as estalactites e se espalhavam por toda a câmara, praticamente uma colina inteira do tesouro adentrava o interior impedindo que a luz fraca das rochas iluminassem mais adiante.
- Isso é um tesouro... Puta merda!
Já estava ficando eufórico, o local era exatamente como descrito pelos anciões, uma gruta gigante e escura, as vezes iluminada com rochas, cheias de peças feitas com o metal colorido e brilhante, bem, diferente dela, o ouro não brilhava tanto sob a luz do fogo como brilhavam sob o sol, também havia outro fator diferente que diferia das histórias.
Sempre haveria um guardião.
Mas depois de caminhar ao redor do pouco espaço oferecido pelas pilhas de tesouros de quantia imensurável, nada como cães ferozes de duas cabeças ou armaduras de prata vivas apareciam. Nada pelo menos dentro do campo de visão feito pelas tochas. Pois além dele, só havia uma escuridão densa que nem sua visão noturna conseguia ajudar. Era uma escuridão estranha que ele jamais vira.
- Cara! Isso tudo é meu então? – ele exclamou, cercado pelo tesouro incalculável.
Empolgado, estava prestes a pegar uma das peças do tesouro, uma adaga prateada de cabo dourado, com uma pedra vermelha incrustada no punho, uma bela arma de decoração bem feita, brilhando fracamente junto com o tesouro dentro do mesmo baú.
- Não. Nada que está aqui é seu.
O garoto raposa reage naquele instante, sem olhar na direção da voz grave e monstruosa que reverberava Pela Câmara, seu coração batia contra seu tórax por dentro, todos os seus pensamentos se voltaram para a fuga, e ela parecia inevitável. Numa velocidade tremenda suas pernas ágeis o levaram na direção da saída, há apenas alguns segundos de distância. Ainda assim, ele não conseguiu. No mesmo instante em que seus olhos fitaram a saída escura que o levou pra caverna, um leve tremor aflorou naquela direção, quase imperceptível, crescendo avidamente, e a terra se abriu, se torceu, e espinhos rochosos brotaram dela, numa velocidade anormal, desnatural, estalagtites monstruosas surgiram e bloquearam a única saída da câmara, três grossos pilares coníferos que cresceram até quase se fundirem e cobrirem o portal.
O garoto parou instantaneamente e encarou sua única saída fechada pelos pilares de rocha que surgiram do piso, seu coração batia tão rápido e forte que seus ouvidos estalavam, principalmente pelo silêncio mortal da câmara que o intensificava, era até mesmo possível ouvir seu sangue correndo pelas veias.
- Onde pensa que vai, ladrãozinho? – repete a voz monstruosa e calma, vinda da escuridão.
Seu Tom não parecia especialmente alto, mas devido a quebra do silêncio tão pesado quanto uma câmara dentro da montanha, ela soava muito mais alta e grave. E para o garoto raposa, ela soava ainda pior, como a ira de algo muito velho e perigoso.
- Porra! – seus olhos esbugalhados de medo encararam finalmente a escuridão, rapidamente em busca de qualquer esconderijo que fosse olhou em volta, mas só havia pilhas de ouro e estalagtites afundadas nelas. Sem escapatória. Encolhido em sua capa, o garoto permaneceu na defensiva, totalmente indefeso, impotente, pronto para encarar o que quer que fosse aquele guardião.
A vida inteira de isolamento na própria tribo, e na floresta, não o prepararia de forma alguma pelo que estava por vir, e talvez mesmo o mais experiente dos aventureiros não o ajudaria nisso.
Não era apenas um guardião que protegia o local.
Era possível saber apenas ouvindo o tilintar das milhares de moedas de ouro se derramando ao lado do corpo imenso, bem lentamente, por vários segundos, e dos passos das patas pesadas e grandes de um imenso animal, no mínimo, tão alto quanto uma árvore, esmagando as peças de ouro do tesouro onde pisava.
O barulho ecoando por toda a gruta se aproximava dele, terrivelmente, e não havia nada que o garoto pudesse fazer para parar o que quer que as trevas da caverna escondiam.
Uma pata, uma imensa pata, escamosa, densa, com cinco garras negras torcidas, foi a primeira coisa que havia adentrado o campo iluminado, esmagando as moedas de ouro e causando uma avalanche na pilha, o tilintar das peças se chocando encheu os ouvidos apurados da raposa, ainda assim ele não conseguia dizer o que era aquela criatura, até que um tórax gigantesco esbarrou na pequena colina de ouro, esparramando as moedas como num formigueiro desmanchante, e das sombras daquele peitoral gigante, maciço e escamoso, se ergueu um longo e esbelto pescoço grosso como um tronco de árvore, e acima dele, com os olhos violetas da raposa o acompanhando, se ergueu uma imponente cabeça reptiliana, mas com algo diferente, uma mandíbula mais densa, uma coroa de cinco chifres e um olhar quente, mas ao mesmo tempo em que era feroz, também parecia sábio, extremamente sábio, além do que os anciões mostravam para a pequena raposa.
- Um dragão? – a raposa sussurrou num silencioso pranto, agora ele estava travado por seu medo, sem conseguir reagir, estava preso numa caverna com a criatura mais poderosa que existia no mundo, e que provavelmente já existiu.
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