os corredores internos do castelo, onde antes não havia nada a não ser um monótono patrulhamento de guardas, agora se instaurava uma grande e confusa movimentação de pessoas, mergulhando o ambiente em uma onda de falatórios.
Uma avalanche de caos e pânico parecia ter se apoderado do complexo para acabar de vez com a tranquilidade daquela curiosa noite.
Os alunos saiam às pressas de seus quartos obrigados a se mover junto aos moradores, agora refugiados no interior do reduto, tomando e congestionando os lances da escadaria interna.
Era notório que estavam todos sendo evacuados para o grande salão e para o refeitório. No saguão, Artur os assistia escondido atrás de uma tapeçaria.
Os funcionários corriam para fechar as janelas, portas e as chaminés do castelo. Pareciam treinados e com tudo planejado para lidar com aquilo.
Após o último morador passar, um esquadrão de guardas entrou pelo portão da academia aos berros e o lacrou. Diante da oportunidade, o menino apressou-se e se enfiou no meio da leva caótica de pessoas que vinham da torre leste.
Ele tentava encontrar o irmão, rezava para que ele estivesse ali, mas não conseguia vê-lo em lugar algum. Um desespero tomou conta do seu peito. Estaria Harry ainda dormindo em seu quarto em meio a um ataque?
— Artur? — chamou uma voz masculina em meio ao tumulto.
Um jovem atlético de cabelos loiros, sedosos e caídos pela nuca, avançou até ele enfrentando a agitação. Era o seu amigo nortenho.
— Scott, você viu o Harry? — apressou-se Artur a perguntar.
— Não. Não vi não — respondeu o amigo.
O menino então se virou e correu, esbarrando em todos, lutando contra o fluxo de alunos no portal para o grande salão.
— ARTUR! — gritou Scott, mas o amigo o ignorou completamente.
Não podia olhar para trás, não podia desviar sua atenção.
— MENINO, O QUE ESTÁ FAZENDO? — berrou um guarda próximo a ele, erguendo os braços equipados para tentar bloqueá-lo.
O rapaz desviou do patrulheiro e correu rumo a torre leste com toda força.
Estava em agonia, aquilo não podia estar acontecendo. Harry era sua responsabilidade, não deveria deixá-lo sozinho em um cenário como aquele.
O calvariano se afastou do tumulto, correu pelos corredores desertos e subiu o mais rápido que podia a escada em espiral da torre. Seus passos ecoavam.
Em seu trajeto, ele pôde ver diversos quartos com portas abertas e pertences diversos largados pelo chão, abandonados pelo desespero da fuga.
Quando finalmente atingiu o quarto pavimento, o menino esbarrou com o irmão descendo energeticamente as escadas. Seu peito estava arfante, seus olhos estavam arregalados e seus cabelos desgrenhados.
— Harry?
— Vo-você?
— Onde você estava, garoto!?
— Eu… não te vi na cama quando os sinos tocaram, fui te procura …
— Ah, Harry! — Interrompendo sua fala, Artur puxou o irmão e o abraçou de súbito. — Me perdoa!
Certificar-se de que ele estava bem em meio a todo aquele escândalo era um alívio imensurável. Seu estado de saúde era tudo o que mais importava ali e era tudo o que se passava na mente do garoto desde que deixara a arena de lutas.
Agora, Artur precisava mantê-lo perto, precisava mantê-lo seguro, precisava mantê-lo distante de seja lá o que estivesse atacando o vilarejo naquela noite.
— O que… o que está acontecendo, hein? — indagou seu irmãozinho, quase aos sussurros, ainda encolhido em seus braços.
— Eu… eu não sei, acho que estamos sob ataque — informou o menino, olhando pela janela e tentando avistar algo dali.
Era surpreendente como não havia foco algum de luz lá embaixo, exceto pelas auras mortiças das frágeis centelhas de fogo sagrado que ainda conseguiam cintilar, mesmo que um pouco, sobre as lendárias piras acima dos contrafortes. Mesmo que resumidas a fagulhas enfraquecidas, a névoa violeta e caliginosa as contornava, tomando uma distância significativa, formando uma espécie de redoma ao redor delas, enquanto invadia o interior do reduto fortificado.
As muralhas estavam completamente tomadas por aquilo, de um extremo a outro, descendo pela sua face interna como uma cascata. O vilarejo até parecia uma tigela, sendo aos poucos mergulhada de boca para cima em um balde de fluido criogênico e violáceo.
— Temos que ir para o grande salão ou para o refeitório assim como todos estão indo — observou Artur.
Havia algum motivo de terem evacuado a torre leste e concentrado todos em apenas um espaço no castelo. Algo o dizia que eles estavam desprotegidos ali. Será que aquela coisa subiria até onde eles estavam agora?
— Corra! — repetiu a mesma voz distante que falara consigo na arena.
Pelos olhos do irmãozinho, Harry não conseguira escutar.
De súbito, o rapaz ergueu os olhos cautelosos sobre os degraus sombrios e curvilíneos que se estendiam escada acima.
Um som distante e vibrante parecia surgir dos andares superiores, se ampliando cada vez mais em meio ao silêncio, como se aproximasse a uma velocidade espantosa. Seja o que fosse, parecia rastejar pelas paredes e pelos degraus, tomando tudo o que havia em seu caminho.
Ambos os irmãos trocaram olhares assustados. Deveriam mesmo correr?
Um vento gélido e estranho que lhe dava calafrios os engoliu em um breu aterrorizante, apagando todas as tochas da escadaria com um forte sopro.
O rapaz tremulou ao constatar que já havia passado por isso antes.
— Não! — sussurrou em desespero.
— O-o quê?
Artur não estava pronto para lidar com mais uma tragédia ali. E era Harry quem estava ao seu lado agora. Não podia deixar que a história se repetisse bem diante de seus olhos. Preferia dar a sua vida em troca disso.
Dos degraus superiores então, como um paredão fumegante e móvel, o garoto viu se aproximar a névoa densa e violeta. Ela parecia uma fumaça viva e sedenta. Conforme se aproximava dos dois, inúmeros braços macabros e marcados com símbolos estranhos começaram a se materializar de sua face, alçando seus dedos até eles com garras pontudas e escurecidas.
— Vamos sair daqui! — disse o rapaz sem conseguir retirar seus olhos da ameaça. — AGORA! — berrou ele, antes de puxar o irmão com toda a força, quase arrancando seu braço do restante do corpo com tamanho puxão.
Os dois correram desenfreados pelos degraus, saltando-os como se fosse uma corrida de obstáculos.
Mesmo estando a toda velocidade, o nevoeiro demoníaco não parecia sair da cola deles. Ele aparentava ter ganhado velocidade ao avistá-los. Havia alguma espécie de consciência naquela coisa?
Artur sentiu um dos braços macabros os alcançando, até se fechar com força e demasiada violência em seu tornozelo. O menino soltou o irmão e caiu de queixo em um dos degraus, enquanto o nevoeiro o sugava pelas escadas acima.
— N-N-NÃO! — gritou Harry em desespero, pausando seus passos de forma abrupta. — ARTUUUR!
— HARRY, COOORRE! — ordenou o irmão, sendo brutalmente puxado, enquanto agarrava com afinco um dos degraus de pedra na tentativa de refrear o corpo.
O rapaz tentava resistir, mas aquela coisa era estupidamente forte. Ele soltou uma das mãos para tentar afastar as inúmeras garras que tentavam tocá-lo, mas era inútil. Estava sendo sufocado. Ele sentiu uma das garras se enterrar em sua pele e se viu sendo asfixiado pelo gás misterioso que compunha o nevoeiro.
Seu corpo queimava da cabeça aos pés. Sentia estar sendo capturado naquela noite, se tornaria mais um na lista de vítimas daquele demônio, mais um nome no quadro de desaparecidos do Sr. Jordan.
Ele viu o irmão desaparecendo em meio àquela imensidão violeta e percebeu suas forças evaporando pouco a pouco. Já não lhe restava mais nada, aquele era o fim. Um tão precoce que lhe dava revolta.
Artur sentiu seus olhos se fecharem e, lentamente, sua consciência se esvair. Os dedos que o seguravam já não pareciam mais tão violentos. Seu corpo parecia flutuar em direção ao céu. Não sentia mais o chão.
Via-se afogado, sem Harry, escada, névoa ou escuridão.
Foi quando uma linda e ofuscante luz azul surgiu no meio de um oceano violáceo, uma luz radiante e ardente, cintilando como o sol atravessando a superfície de uma água enquanto ele nadava desesperadamente para deixar as profundezas. Aquilo queimava como uma chama, vibrava como uma chama, oscilava como uma chama. Aquilo era… era, de fato, uma chama.
A bruma nociva que o envolvia foi se dissipando e as mãos em torno de Artur foram desaparecendo como pó voando ao vento, enquanto a chama azul se aproximava sem emitir sequer uma onda de calor em sua face. Ela parecia afastar o nevoeiro, como se sua luminescência o machucasse profundamente.
O menino emergiu do seu afogamento na imensidão violeta, sentiu novamente seu corpo e a sua consciência retornar. Quando menos esperou, lá estava deitado desconfortavelmente e de bruços naquela petrificada escadaria.
Atordoado, ele ergueu sua visão para observar a figura que parecia portar aquele fogo azul que o protegeu, mas tudo parecia estar girando.
Uma mão, aparentemente humana, tocou gentilmente seu rosto. Uma pessoa falava com o menino, uma pessoa que ele conhecia e, dadas as silhuetas que surgiram no entorno, não estava sozinha.
Após alguns tapas leves em seu rosto, Artur finalmente recobrou a consciência e os olhos de James Jordan entraram em foco perante os seus.
— GAROTO, ACORDE!
— O-o quê? — murmurou, sem energia.
O menino se apoiou no professor para se levantar dos degraus da escada e viu quem mais o acompanhava. Lá estavam Scott, Harry e Kelly, com suas feições preocupadas direcionadas para ele.
Seus amigos deveriam ter relatado sua corrida perigosa ao professor.
— O que… é isso? — perguntou o calvariano ofegante, se esforçando com veemência para se levantar. — O que está acontecendo?
— Não dá tempo para explicar, garoto. Temos que sair daqui.
A chama azul que ardia na tocha que James carregava era uma pequena centelha da chama sagrada, ao menos esta estava ainda bem viva. No entanto, não demorou muito para ela também começar a se exaurir, definhando sua luminosidade e seu volume na ponta daquela haste.
Todos os olhares assustados se voltaram para ela e, novamente, um tufão gélido invadiu aquele meio, desgrenhando cabelos, balançando as vestes e perturbando os olhos de todos os cinco ali reunidos.
Antes do ente maligno ressurgir daquela imensidão de trevas, James deixou a fraca tocha cair, segurou o pulso do calvariano e o puxou com força.
— DEPRESSA, CORRAM!
Os jovens obedeceram e o nevoeiro regressou, engolindo tudo o que havia pelas suas costas como uma avalanche vorás. Harry e Kelly gritavam, enquanto saltitavam pelos degraus de pedra junto dos demais, Scott liderava a corrida.
Ao atingir o segundo andar da torre, o professor retirou algo do seu bolso com a outra mão, uma espécie de pedra branca polida com um símbolo que Artur só reconhecera devido suas aula de runas. O homem então a arremessou em direção ao nevoeiro e a mesma explodiu formando um clarão azul.
Dada a pressa de seus passos, dado o desespero em se livrar logo daquilo, o rapaz não entendeu ao certo o que aconteceu, mas aquilo retardou a névoa e os permitiu chegarem ao nível do térreo sã e salvos.
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