Mesmo ciente do horário, Artur Jay Allen vestiu o capuz de seu uniforme, encolheu-se em sua pesada capa de inverno e abandonou o conforto de seu quarto em direção aos imponentes portões do castelo.
Descendo a torre leste, seus pensamentos vagavam entre os degraus de pedra. Ocasionalmente, ele desviava o olhar para as janelas arqueadas que ladeavam seu caminho, contemplando o breu da noite lá fora e as distantes piras de fogo sagrado que coroavam os muros.
Sua atenção somente desviou e seus passos foram somente interrompidos quando uma jovem veterana loira e repleta de trançados na cabeça cruzou seu caminho, quase esbarrando em seu corpo com o embalo de sua corrida. Aquela era Anastácia Gasby, a última sobrevivente da competição. Em sua mão, segurava um envelope selado, e seu rosto parecia carregar o peso da angústia de seus últimos dias. Deveria estar indo ao pombal despachar uma carta.
Sem lhe dirigir olhares, intimidá-lo ou proferir risadas de deboche como costumava fazer, ela simplesmente continuou seu caminho em silêncio escada acima, como se nem o tivesse visto.
Houve um tempo em que somente sua aproximação poderia ser considerada sinônimo de alerta, mas algo pareceu ter mudado naquela garota depois do incidente nos esgotos de Rostwood. Ela estava constantemente sozinha, mesmo nas refeições, e Artur nunca mais viu um sorriso em seu rosto.
Embora a menina fosse considerada detestável para muitos, embora o rapaz tivesse todo motivo do mundo para querer distância dela, ele não podia deixar de sentir condolência por seu sofrimento. Seu irmão, Saymon Gasby, permanecia desaparecido naqueles túneis. Devido o incidente, os pensamentos do menino Allen oscilavam entre a possibilidade de um destino semelhante para Harry e a gratidão de que isso não havia acontecido.
Artur voltou sua atenção aos degraus a sua frente e continuou sua trajetória com naturalidade. Não queria pensar naquilo.
As ruas estavam tão desoladas quanto os corredores da Academia. A escuridão e o silêncio eram tão opressores que, se não fossem as luzes tênues dos casebres e os poucos lampiões acesos, o lugar pareceria um vilarejo fantasma.
Talvez nem mesmo a taverna estivesse aberta para entreter os habitantes.
Desde a competição, aquele povoado parecia ter decretado um estado oficial de luto. Os cidadãos sentiam a dor do trágico incidente e lamentavam as perdas irreparáveis do ataque inesperado das forças de Azaroth.
Já fazia semanas, e mais ninguém havia sido encontrado. Ninguém. Nem mesmo Hilbert havia retornado depois daquela batalha árdua nos esgotos.
Conforme avançava pelos logradouros e enfrentava as rajadas gélidas que vinham ao seu encontro, os olhos do calvariano se perdiam nos bueiros. Dava-lhe nó no estômago só de recordar de tudo o que havia vivenciado lá embaixo.
Quantas equipes de busca já haviam descido por aqueles túneis e retornado com homens a menos? Quantos dias aquelas buscas continuariam até as autoridades se conformarem com os desaparecidos?
Ele pouco sabia sobre o demônio de Rostwood, pois antes da competição, ele pouco se interessava no assunto. Algo, porém, mudou dentro do menino desde aquele momento. A cada circunstância ou acontecimento em seu dia a dia, uma dúvida sobre aquele ser maldito se lançava em sua mente.
Algumas vezes até sentia estar sendo paranoico ao pensar que estava sendo vigiado por ele e que não deveria ter sobrevivido ao episódio. Todos diziam que Azaroth tinha olhos em todos os lugares. O que aquilo deveria significar?
Artur respirou profundamente e tornou a se concentrar em seus passos.
Já fazia tempos que não visitava seu amigo Thomas Wegg e seu tio na velha azenha de madeira do outro lado do rio.
Como o repentino paradeiro dele entre os estudantes da academia ainda era um segredo, ele precisava ser cauteloso. E, por isso, o rapaz desviava repetidamente seus olhos meticulosos para trás e pelos arredores a cada avanço, certificando-se de que não estava sendo seguido.
O frio parecia se apoderar ainda mais conforme sentia o sopro do vento empurrar seu capuz para fora e desgrenhar ainda mais seus cabelos castanhos.
Ele atravessou o grande riacho e traçou uma tranquila caminhada ao longo de sua margem até o moinho, enobrecido com novos lampiões na fachada.
Ao chegar na reformada instalação, o rapaz subiu os degraus ruidosos da varanda, suspirou em hesitação e, alerta, bateu na porta. Depois da sua primeira recepção ali, era impossível não sentir um pequeno grau de nervosismo o invadir ao chamá-los daquela varanda. Esperava que não fosse Rog a recebê-lo de novo. Aquele homem não costumava ser um anfitrião muito amigável.
Após escutar alguns passos descalços vindos de dentro e o ruído de trincos se desprendendo do batente, a porta se abriu e um sorriso esbelto tomou o rosto jovial do menino que o recebeu.
— Artur!
— Thomas! — exclamou o rapaz, antes de abraçar o amigo.
— Não esperávamos a sua visita! Ah, por favor, entre! Está frio aí fora!
O rapaz então assentiu e seguiu rumo ao interior da moradia.
O moinho parecia muito mais acolhedor agora, estava quentinho e com uma graciosa lareira acesa. Thomas fizera milagre para tornar um ambiente tão nocivo como o qual encontrara em um lugar tão aconchegante.
— Ah, oi, se-senhor Wegg! — saudou o garoto, ao avistar o tio do amigo com uma pilha de lenha nos braços.
— Humpf! — resmungou o velho Rog, antes de começar a alimentar ainda mais as chamas da lareira.
— Tio, eu já disse! Não precisa de mais lenha! — Thomas interrompeu o homem cujos olhos demonstravam assombro. — Deixa eu te ajudar com isso!
— Não! O fogo nos protege! O fogo nos protege! — exclamou o ele, lutando para não deixar o sobrinho pegar a pilha de seus braços.
— Pare com isso! Pare! Ah! — exclamou o amigo em desistência, se afastando de ré. — Ele vai acabar com a nossa lenha toda desse jeito. Não sobrará nada para o inverno!
— Deixa ele — recomendou Artur. — Vim ver como vocês estavam.
— Bom, tirando todo o trabalho que ele tem me dado… estamos bem! — acrescentou com um sorriso. — Conseguimos estocar bastante para quando chegar o inverno. Meu tio disse que as coisas meio que ficam bem difíceis nessa época do ano, a produção de farinha pausa, porque o riacho geralmente congela.
— Congela?
— O inverno em Rostwood é bem rigoroso.
— Oh, entendo!
Já ouvira isso antes, talvez da amiga Kelly Turner.
— Mas você está bem, dormindo naquele castelo enorme! — comentou o amigo, colocando a mão gentilmente em seu ombro. — Não é?
Embora pertencesse ao tropical reino de Kingshill, a ilha de Rostwood era geograficamente afastada, posicionada mais ao sul de toda a extensão de Arcádia, próxima às gélidas Terras Austrais, as terras do eterno inverno.
Calvária, sua casa, ficava quase que na mesma latitude, mas posicionava-se mais a oeste, no aglomerado de ilhas e ilhotas que formavam o arquipélago sul, região afastada de tudo, banhada por um extenso oceano.
— Mesmo no aconchego do castelo… — murmurou o rapaz com seriedade —, tem sido bem difícil dormir ultimamente.
— Ah, en-entendo. — Thomas recuou o olhar constrangido. — Ainda tem pensado naqueles esgotos, né?
O amigo não tinha nem ideia sobre o quão tumultuada estava sua mente desde aquilo. Artur encarou o fogo distante, inflamado pela quantidade exorbitante de lenha, e respondeu:
— São as lembranças que voltam para me assombrar. — Enquanto falava, ele se recordava do rosto frígido e ensanguentado de Kent Diggle, soterrado em uma avalanche mortal de terra e rocha.
O menino Wegg pôs sua mão no ombro do rapaz mais uma vez e sorriu.
— Vai ficar tudo bem! Depois de um tempo, memórias ruins passam a não nos incomodar tanto — disse o amigo, tateando a cicatriz em seu pescoço com a outra mão. — Gosto de pensar que elas… acabam te fortalecendo.
Reflexivo, Artur encarou os caixotes empilhados ao lado da mó e decidiu mudar de assunto.
— O que estavam fazendo antes de eu chegar, hein?
— Ah, nós… estávamos arrumando os estoques no porão.
O amigo se afastou, expressando um novo ar em seu semblante.
— No… porão? Vocês têm um porão?
— Um enorme! — exclamou Thomas encantado. — Quer ver?
Sem nem aguardar a resposta, o amigo inesperadamente puxou Artur até um canto escondido no interior do moinho, onde havia um alçapão aberto. Nem imaginara que havia aquilo ali em suas últimas visitas. Era minimamente extraordinário o moinho contar com um compartimento subterrâneo, estando localizado bem ao lado de um riacho.
Eles desceram uma escada rangedora de madeira rumo a um cômodo escuro e repleto de estantes abarrotadas de coisas, muitas delas empoeiradas ou presas em emaranhados e emaranhados de teias de aranha.
— Meu tio esconde muitas coisas aqui. Estou para fazer uma faxina e vender algumas tralhas que não vão fazer muita falta para ele.
Eram, de fato, muitas coisas que haviam ali, algumas intactas e outras um tanto deterioradas pelas intempéries do tempo. Havia livros, roupas e tecidos atacados por traças, caixotes, itens de pesca, de caça, instrumentos musicais, além de muita bugiganga que o rapaz nem conseguia adivinhar a serventia.
— Seu tio é um acumulador compulsivo! — constatou Artur, observando aqueles objetos com espanto.
— SAI DAQUI! — vociferou o velho Rog lá de cima, batendo em alguma coisa e arrastando os móveis. — SAI, INVASOR! MONSTRO! DEMÔNIO!
Alarmados, os dois jovens subiram correndo para ver o que estava acontecendo. Assim que chegaram, se depararam com Rog golpeando tudo com uma vassoura e derrubando o que havia a sua frente a fim de acertar um pombo quase despenado que entrara no ambiente e que desvencilhava de um canto a outro das pancadas desgovernadas dele.
— Tio, calma! — exclamou Thomas, tentando pará-lo.
— NÃO! ESTAMOS EXPOSTOS! — berrou o homem aflito.
O pombo voou de súbito em direção ao jovem Allen e pousou em suas mãos. Havia uma pequena carta presa em sua pata.
— Ah, é um pombo-correio! — observou o menino, retirando o pedaço de pergaminho lá amarrado. — Isso é…
BUM!
A vassoura nas mãos de Rog colidiu com o rosto de Artur, fazendo ele cair no chão e o pombo voar para uma pequena abertura na janela.
— Ah! — exclamou o menino caído, tocando na face onde recebera o golpe inesperado.
— Tio, me dá isso! Me… me dá! — Thomas lutava para retirar o objeto das mãos do velho Rog. — Viu o que fez?! — acrescentou quando conseguiu.
— Ah! Esse moleque estava no meu caminho! — respondeu o velho com seu tom rabugento de sempre, dando de ombros para a situação.
— Artur, você está bem? — perguntou Thomas, largando a vassoura no chão. — Desculpe o meu tio, é que ele tem estado muito agitado ultimamente.
— De-deu para reparar. — O rapaz se levantou com o auxílio do amigo.
— O que é isso? — perguntou Thomas ao ver o pequeno fragmento de pergaminho que o calvariano retirara da pata do pombo.
Artur o abriu e o analisou. Aquela caligrafia certamente não pertencia ao seu pai.
“Encontre-me em minha sala na torre norte antes do soar dos sinos. Seja discreto e venha sozinho. Estarei aguardando-o.
James Jordan”
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