Assim que saio do elevador, já dentro do salão na cobertura onde acontece a festa, uma sensação desagradável comprime o meu estômago. A música tocando é baixa e genérica, e mal presto atenção na letra.
Avisto de imediato o rosto conhecido de um jogador mais ou menos famoso conversando em um canto com uma mulher alta. Mais uma olhada ao redor me revela outros três com quem já interagi antes. Ninguém me avisou que convidariam o time masculino do FC Porto para essa festa. Mas, mais importante, ninguém avisou que convidariam jogadores do Real Madrid.
— Merda — murmuro, minha boca começando a ficar seca.
Não me preparei para esse tipo de festa. Achei que seria algo mais intimista. O comunicado que recebemos nos convidava para um evento de despedida antes de o time se dispersar para comemorar o Natal e o Ano Novo em família. Isso é muito mais do que um mero evento de final de ano.
— O quê? — Lúcia pergunta ao meu lado, me olhando com um vinco fofo entre as sobrancelhas.
O cabelo dela está preso no alto, deixando apenas alguns cachos escaparem para emoldurar seu rosto redondo. Ela tem olhos castanhos enormes, cílios longos, e a sua pele negra é de um tom quente de marrom, a maquiagem deixando-a ainda mais bonita.
Certo. Preciso me recompor.
Tenho uma garota para entreter e não posso me dar ao luxo de dar para trás só porque estou com vontade de a) me matar e b) matar os responsáveis por convidarem o time do meu ex-namorado para esta festa.
— Disse que você está linda — desconverso, abrindo um sorriso que, apesar de tudo, me vem fácil. Estendo a mão para ela, que entrelaça os dedos nos meus e semicerra os olhos para mim. Ela sabe que não foi isso o que eu disse. — Vamos procurar uma mesa com vista para o rio?
Ela assente e nós caminhamos devagar. Emily, que dividiu o Uber e o elevador conosco, dá alguma desculpa para não nos acompanhar e vai em outra direção, provavelmente tendo avistado alguém do nosso time. Faço o possível para não olhar para os lados durante todo o trajeto até a varanda ampla com vista para o Rio Douro.
Lúcia começa a contar sobre sua mudança do Brasil para Portugal, seu sotaque mineiro conferindo uma melodia à história toda. Eu assinto nos momentos certos, mantendo aquele maldito sorriso custe o que custar. Não achamos uma mesa vaga, então ficamos conversando de pé sob o céu noturno.
Assim que um garçom se aproxima oferecendo vinho tinto, eu estendo minha mão na direção da garrafa sobre a bandeja. Percebo o erro a tempo e mudo de trajetória, pegando apenas uma taça. Ele me olha estranho antes de se afastar.
— Fiquei surpresa quando você me mandou aquela mensagem dizendo que estava em Porto — Lúcia comenta, também segurando uma taça de vinho. Ela se apoia na mureta de vidro da varanda, numa posição semelhante à minha. Atrás dela, as luzes da cidade brilham, iluminando a água corrente do rio. — Sei que você prometeu que faria isso, mas...
Ela não conclui a frase, então arrisco:
— Achou que eu não cumpriria com a minha palavra?
— Bom, você parece ser uma mulher de muitas conquistas. Achei que teria outras opções na cidade, mas fico feliz de ser a escolhida da vez.
— Uma mulher de muitas conquistas? — Franzo a testa, tentando decifrar se isso é só flerte vazio ou se tem algum motivo por trás dessa afirmação. Uma coisa é Emily pensar isso de mim, mas Lúcia mal me conhece. — De onde veio isso?
— É fácil jogar seu nome no Google, sabia? Ele retribui com bastante informação.
O gosto do vinho de repente parece ácido na minha boca, mas forço um tom de voz tranquilo:
— Não acredite em tudo o que lê por aí.
Ela ergue uma sobrancelha.
— Se eu acreditasse, não estaria aqui.
— Bom, eu...
O que eu estava prestes a dizer se perde quando vejo, atrás de Lúcia, Ember e Alba se aproximando. Elas não olham na minha direção, mas se sentam perto, Ember em um sofá de dois lugares que acabou de ficar vago e Alba em uma poltrona ao lado dela. O ar está frio aqui na varanda da cobertura, mas a vista atrai cada vez mais pessoas para o lado de fora.
Ember ajeita as lapelas do blazer preto que está usando. Pelo corte, ele parece ter sido feito sob-medida para ela. Ela tem a aparência de alguém que está confortável no ambiente luxuoso, uma jogadora cara como todas aqui, mas é só isso: aparência. Sei como ela é quando está confortável de verdade, conheço as covinhas que surgem em suas bochechas e agora não há nem sinal delas.
Como eu, ela está feliz em estar aqui, mas aposto que preferia estar vendo um jogo antigo no sofá da sala, bebendo cerveja e rindo de passes errados cometidos por jogadoras que podemos reencontrar como rivais. Ela até já riu dos meus passes errados. E eu dos dela.
Desvio o olhar de volta para Lúcia, sem saber o que estava dizendo a ela antes. Minha acompanhante está usando apenas o vestido de manga comprida, mas o tecido parece fino demais para o clima.
— Não está com frio? — pergunto, já começando a tirar o meu blazer.
— Nossa, sim. — Ela solta uma risada fraca. — Foi uma péssima ideia deixar o casaco em casa, eu... ah, obrigada. — Ela ajeita o blazer sobre os ombros quando a cubro com ele. — Mas agora quem vai ficar com frio é você.
Eu, com frio? Imagina. Resisto ao tremor quando sinto o vento gélido nos meus braços e na minha nuca.
— Minha blusa é mais quente do que esse seu vestido.
É uma mentira deslavada, mas pelo menos agora tenho a chance de mostrar a blusa semi-transparente, o tecido deixando entrever a silhueta do meu abdômen e dos meus braços. Estou usando apenas um top preto e simples para cobrir os seios e sou recompensada quando o olhar de Lúcia vacila pelo meu corpo. Ela pigarreia e me encara nos olhos de novo.
— Acho que você cometeu um erro — ela diz. — Agora não vou querer te devolver o casaco.
Dou um sorriso, o timbre da voz dela e o calor em seus olhos me deixando um pouco mais confiante.
— Pode ficar com ele.
Tomo outro gole do vinho, grata pelo calor líquido que se espalha por conta do álcool. Mais uma vez, me pego olhando na direção de Alba e, principalmente, de Ember. Duas mulheres se juntaram a elas. Uma delas tem a pele de um marrom claro, cabelo curto e um sorriso charmoso, e se senta no braço da poltrona de Alba. A outra, uma de pele branca e muito pálida, com cabelo preto comprido e um delineado de gatinho que eu jamais conseguiria fazer igual, se senta com Ember no sofá.
Viro a taça de vinho, engolindo rápido até esvaziá-la. Depois largo-a sobre uma mesinha alta atrás de mim.
— Tem algo acontecendo? — Lúcia pergunta, ainda com metade do vinho em sua taça, e dá uma olhada para trás.
— Não tem nada — digo rápido, atraindo seu olhar de novo. — Quer dizer, estou um pouco incomodada com o fato de que ninguém me avisou que convidariam o time do Real Madrid para a festa.
— É sério? Até eu sei que isso não se faz. — Ela arregala os olhos. — Misturar Real Madrid e Barcelona em um lugar só não é boa ideia. Exceto nos jogos.
— Pois é.
— E é o time do seu ex, não é?
— Bingo.
Ela toma um gole mínimo de vinho, depois seus lábios se curvam em um sorriso sobre a borda da taça.
— Quer fazer ciúmes nele?
Hã, quê?
— Claro que não. — Meu tom de voz sai mais afiado do que eu gostaria, e Lúcia franze a testa. — Desculpa, é só que... eu só queria poder me divertir sem me preocupar com ele.
Queria não me preocupar nem com ele, nem com ninguém, mas vejo pelo canto do olho a mulher de cabelo preto colocar uma mão sobre a coxa de Ember, se inclinando um pouco na direção dela, e tenho vontade de morder alguma coisa. Um garçom passa perto de mim nesse momento e faço um sinal para que se aproxime. Ele carrega uma bandeja de drinks azuis. Não sei do que são, só sei que preciso de um.
Com meu drink na mão, me viro para Lúcia.
— A menos que você queira deixar o meu ex com ciúmes. — Me aproximo dela, baixando a voz. — Não ligo para os fins, só para os meios.
Ela pousa uma mão no meu braço, me mantendo perto.
— Vou confessar, senti falta de uma mulher brasileira. — Seu tom de voz baixo imita o meu. — As europeias são cheias de voltas.
Uma das minhas mãos segura a bebida, porém toco a cintura de Lúcia com a outra. Não me incomodo com o fato de que ela acabou de insunuar que sou fácil demais só por ser brasileira, nem com o pensamento idiota de que eu gosto das mulheres europeias, principalmente da que está logo ali, flertando com outra.
— Aposto que tem muitas outras coisas que eu faço melhor do que as europeias.
Ela sobe a mão pelo meu braço. Sentindo meus músculos, é?
— Aposto que tem mesmo.
Encaro-a, depois bebo um gole longo do meu drink. É forte pra caralho, exatamente o que eu preciso. Aproximo o meu rosto do dela, sem saber ainda se vou beijar sua boca ou a sua bochecha em uma provocação.
Alguém esbarra em mim. Num segundo estou me aproximando de Lúcia, no outro estou ouvindo o barulho do vidro se partindo no chão, a bebida azul molhando a minha roupa e a dela.
Olho para o lado, na direção da pessoa que esbarrou em mim, com um xingamento na ponta da língua. Até que me deparo com os olhos escuros de Emily, arregalados e cheios de alarme.
— O que aconteceu? — pergunto imediatamente.
— Desculpa, desculpa — ela suplica. — Não te vi aí, amiga.
Ela lança um olhar rápido para trás, na direção de Alba e Ember. Faço o mesmo, olhando primeiro para Ember, é claro, que ainda está sentada ao lado da mulher com o delineado perfeito. Ela olha na nossa direção, mas sua companheira lhe diz algo, atraindo sua atenção. Trinco os dentes e desvio o olhar para Alba, que está de pé, também nos encarando.
Não, não nos encarando.
Encarando Emily.
Olho de novo para a minha amiga, meu coração se apertando em preocupação. Elas discutiram? O que aconteceu?
— Emy, me diz o que houve. — Dessa vez, não é uma pergunta.
Ela segura meu pulso, e imediatamente sinto Lúcia me soltando. Nesse momento, no entanto, nem olho para ela.
— Vem comigo ao banheiro? — Emily pede.
Eu assinto, e só então olho para Lúcia. Ela está com rugas na testa, os lábios apertados.
— Já volto — aviso.
Ela suspira e dá de ombros, mas o gesto me parece rígido.
Ah, certo. Ela jogou meu nome no Google, né? Deve ter visto minha foto com Emily — que, por acaso, não é uma foto minha com Emily. Como muitos outros, deve supor que somos um casal, ou pelo menos algo complicado.
Não tenho tempo para desmentir os boatos, nem sei se adiantaria.
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