No dia doze de dezembro, o time embarca num voo para Porto, onde vai acontecer o jogo seguinte da Champions League. Isso nos dará um dia para nos acomodarmos no hotel e andarmos pela cidade, e outro para treinarmos antes da partida.
— Tá, a gente precisa fazer um roteiro com as prioridades — Emily diz, terminando de guardar a mala dela no compartimento de bagagens de mão. — Primeiro, comer pastéis de Belém, certo?
— Certo. — Prendo o cinto de segurança, muito satisfeita com o meu lugar na poltrona ao lado da janela. — Depois podemos visitar alguma igreja para ver o ouro que roubaram da gente.
— Perfeito. — Ela se senta ao meu lado, suspirando de contentamento. Não é todo dia que a gente voa de classe executiva. — E a gente com certeza vai comprar vinho do porto.
— Com certeza.
— Ah, e ouvi dizer que tem um McDonalds bem massa lá.
— McDonalds, Emily? — Faço uma careta. — Poxa, aí você me perde.
— Não te perco, não, olha aqui as fotos.
Ela pega o celular, abrindo o Google para me mostrar fotos do tal McDonalds. Não estou convencida de que isso deveria estar na nossa lista de prioridades, a gente só vai ter uma tarde para fazer tudo, mas acabo me rendendo à animação dela.
Enquanto ela aponta para a tela do celular, olho para ela com atenção, notando os detalhes que ainda são novos para mim. Como seu sorriso é mais largo do que nunca, como seus ombros estão relaxados, a forma como ela ri com mais frequência de tudo.
Ela é tão feliz aqui.
Como pude não dar valor a isso antes quando estava longe? Eu sentia tanto ciúme da relação dela com o novo time que acabei deixando passar algumas coisas.
Emily está com o cabelo solto, o que é difícil de ver nos últimos tempos, enquanto ela passa pela transição capilar. Começamos a jogar juntas nas categorias de base, eu com treze anos e ela com quatorze, e, desde que a conheço, ela sempre alisava o cabelo. Foi só quando veio para a Europa que isso começou a mudar. Outras coisas também: ela fez novas tatuagens, cobrindo os dois braços, passou a andar com mais tranquilidade e confiança, e finalmente me contou que é lésbica.
Morar longe da família faz isso com uma pessoa. Mesmo para alguém com uma família tão acolhedora quanto a dela. Acho que o fato de que ela cresceu indo à igreja, junto com o medo da reação da avó dela, é o que mais a impede de se assumir.
Olho ao redor, me certificando de que as outras jogadoras sentadas próximas de nós estão envolvidas em suas próprias conversas. Então me aproximo de Emily e sussurro:
— Me conta sobre a Alba.
Ela se sobressalta e repete o meu movimento de olhar ao redor.
— Como assim? — sussurra de volta.
Só o fato de estar falando baixo já é um indicativo de que tem coisa para contar.
— O que está rolando entre vocês? Ela aparece mais no seu Instagram do que eu.
— Ai, Becs, de novo você achando que eu gosto mais dela do que de você. Já disse, você é minha melhor amiga.
— Eu sei, eu sei. Confia em mim, meus dias de amiga ciumenta chegaram ao fim.
— Mudou da água para o vinho, é?
Empino o nariz.
— Fui tocada por Cristo.
Ela dá um tapa no meu ombro, rindo.
— Não brinca com essas coisas.
— Tá, mas fala a verdade. É mais do que amizade, não é?
— Não é!
O tom urgente atrai a atenção de Sofia, que está sentada na poltrona em frente à minha. Ela se vira, apoiando os joelhos no assento e os cotovelos no encosto para ficar de frente para nós. Seu cabelo está amarrado no alto da cabeça, mas algumas trancinhas estão soltas e emolduram seu rosto sorridente.
— Do que vocês estão falando? É sobre a Alba?
O olhar indignado de Emily vacila entre nós duas, e comprimo os lábios para não rir.
— Por que vocês acham que eu falaria sobre a Alba? — ela volta a sussurrar, trocando para o espanhol em benefício de Sofia. Não que tenha perigo de Alba ouvir, ela ficou na primeira fileira de poltronas, junto com Ember, e está bem distante de nós. — Não tem nada para falar.
— Mas você sabe que ela gosta de você, não sabe? — Sofia retruca.
Eu uno as mãos, abrindo um sorriso. Isso é bom demais.
— Não gosta — Emily insiste na negação.
— Ah, fala sério, pelo menos admita.
Eu sorrio para Sofia, dizendo:
— Sabe, acho que te amo.
Ela sorri de volta.
— Também te amo, Becs.
— Podem parar, vocês duas. — Emily cruza os braços. — Não quero ninguém formando alianças contra mim.
— A gente não é contra você — Sofia diz, ainda sorrindo. — Somos a favor de você e da Alba.
— Olha, já deu, viu? — Pelo tom de Emily, dá para ver que a conversa tocou em algum ponto sensível. — Não quero ter que ficar repetindo que não sou lésbica. É só que... não importa como a Alba se sinta, eu não sinto o mesmo.
O sorriso de Sofia desaparece e ela assente.
— Certo, desculpa. Não quis te deixar desconfortável.
Ela se senta de novo e ouço o barulho de quando coloca o cinto. Olho para Emily, meu coração apertando.
— Descul... — começo a dizer, mas ela me interrompe.
— Não precisa se desculpar. — Está falando tão baixo que, mesmo se não tivesse mudado para o português de novo, sei que nenhuma das meninas sentadas à nossa frente ou atrás de nós ouviria. — Eu sei que a Alba gosta de mim, mas... sei lá, Becs, não posso me envolver com alguém do time. Além disso... sei que você não quer ouvir isso, mas realmente gosto da sua irmã.
— Da Dêssa?!
— Não tem outra, né?
Ah, mas era só o que me faltava.
Já é estranho o bastante elas terem se beijado, pior ainda é saber que a Emily realmente sente algo por ela, enquanto a Andressa... Bom, ela deixou bem claro que foi "só um beijo".
— Ai, Emily, não gosto dessa palhaçada — resmungo. Nunca fui fã de triângulos amorosos. — A Dêssa tem literalmente a minha cara, isso é meio esquisito. Você viu, todo mundo acha que somos eu e você nos beijando naquela foto.
— Tá, mas não somos. E vocês duas são bem diferentes.
— Diferentes em espírito, sim, porque no caso a Andressa vendeu o dela para alguma entidade. Pensa numa pessoa sem coração, amiga. Você merece mais.
— Eu gosto desse lado dela, acho que é até meio charmoso.
— Você acha charmoso ela tratar as pessoas como lixo?
— Acho. — Ela dá de ombros, toda defensiva. — Nos livros que você lê não tem casais assim, em que os opostos se atraem?
— Os livros que eu leio não são exemplos a serem seguidos, puta merda. No que eu trouxe para continuar lendo aqui, o cara acabou de enfiar o cabo de uma espada na boceta da protagonista.
— Eita, amiga.
— Pois é, pensa bem antes de usar isso como argumento. — Olho de relance para a janela, pois o avião finalmente começou a se mover pela pista, prestes a decolar. — Mas que seja, fica aí com essa sua paixonite pela Dêssa, que você sabe não ser a pessoa certa para você. Sei o que você está fazendo, viu? Escolhendo o caminho mais difícil de propósito.
— Não sei do que você tá falando.
— Sabe sim. E, quando tudo explodir na sua cara, não vem chorar para mim.
— Vou chorar para quem então?
Lanço a ela um olhar que, espero, seja bem significativo.
— Para a Alba.
Ela estala os lábios e cruza os braços, emburrada de um jeito tão adorável que me faz sorrir. Depois desvio o olhar para a janelinha do avião, observando as construções abaixo de nós diminuindo cada vez mais, até que estamos voando acima das nuvens.
Emily coloca os fones de ouvido, provavelmente botando para tocar alguma playlist de reggaeton — gênero pelo qual ela ficou obcecada desde que se mudou para a Espanha, e eu sei, simplesmente sei, que foi por influência de Alba. Às vezes ela mexe a perna no ritmo da música, seus lábios formando as palavras, e batuca os dedos contra a coxa.
Eu pego o kindle para continuar lendo o meu livro problemático.
Desde que comecei a ler histórias no celular, aproveitando o tempo que passava em ônibus indo de uma cidade à outra para jogar, o gosto pelos romances com cenas bem descritivas de sexo, muitos deles com enredos mirabolantes e relacionamento tóxicos, foi crescendo em mim. A maioria dos romances é entre um homem e uma mulher, mas aos poucos fui achando as exceções, com casais de dois homens e, finalmente, de duas mulheres.
Os enredos envolventes, as cenas quentes, os dramas exagerados, tudo ofereceu o escape necessário para eu aguentar seis anos com um cara como Stephen. Não um namorado ruim, necessariamente, só ausente. E mentiroso pra cacete.
Mas, mesmo agora que não sinto mais essa necessidade de escapar para uma outra realidade, ainda é gostoso viver na pele de outras pessoas, me apaixonar por gente que não passa de palavras escritas no papel — ou na tela do kindle. E eu gosto de me apaixonar. Sempre gostei.
E então eu entendo. Uma lâmpada metafórica se acende sobre a minha cabeça. Sei o que preciso fazer para superar a minha paixão do momento, que infelizmente é Ember, minha amiga oito anos mais velha.
Abaixo o kindle e cutuco Emily, que tira os fones e franze a testa para mim.
— O que foi?
— Já sei como superar... — baixo a voz, praticamente só formando o nome com os lábios: — Ember.
— Ah, é? — Ela arqueia as sobrancelhas, colocando os fones de volta na caixinha de recarga. — Pensei que já tinha superado. Foi o que me disse na semana passada.
É, talvez eu tivesse mencionado para ela, assim de passagem, que eu e Ember somos amigas agora. E que superei 100% minha paixonite.
Talvez, assim como o Stephen, eu também seja uma mentirosa.
— Agora vou superar de verdade, juro — digo. — Só preciso arrumar outra jogadora inalcançável em quem fixar a minha obsessão. Alguém com quem eu não corra o risco de jogar no mesmo time.
— Meio difícil, você é muito boa, Becs. Pode acabar jogando com qualquer uma.
— Tá, alguém que já se aposentou então.
— Vou preparar uma lista. — Ela semicerra os olhos. — Quer dizer que seus dias de conquistadora em série vão chegar ao fim?
Eu dou um sorrisinho.
— Ainda não. Tenho uma mulher para encontrar em Porto.
— Tá brincando, né?
— Estou falando sério. Fiquei desde os dezenove anos só beijando a boca do Stephen, perdi muita coisa.
— E você acha que reverter sua crush para outra jogadora e, ao mesmo tempo, pegar metade da população da Europa vai te curar do que sente pela Ember?
— Bom, não custa tentar.
Ela meneia a cabeça.
— Você não presta.
Não discordo.
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