Everybody here was someone else before
And you can want who you want
Boys and boys and girls and girls
Todos aqui foram outras pessoas antes
E você pode desejar quem deseja
Garotos e garotos, e garotas e garotas
– Welcome to New York
Preciso da euforia que antecede o início de uma partida de futebol.
Pensei que era isso o que a vinda para Barcelona me proporcionaria, mas não me sinto animada como quando estou prestes a ouvir o apito soar e com a torcida gritando a plenos pulmões ao meu redor. Sinto que a vida acabou de me dar um belo chute nas canelas, isso sim.
Imagino um locutor caricato esbravejando: lá vai ela, Rebeca Ferraz, nossa camisa 8… ah não, ela caiu, como esperado.
Como faço para levantar? Como voltar para o jogo?
Mesmo agora, no Uber a caminho do estádio, não consigo parar de revirar os cacos da minha vida antes deste momento. Fico em silêncio, talvez um pouco emburrada, enquanto encaro o celular e torço para o motorista não falar comigo. É uma viagem curta, minhas chances são boas.
Mas aí ele me espia pelo retrovisor e resolve puxar assunto.
— Se quer conhecer um estádio, o Camp Nou é bem melhor — ele sugere, em um inglês bem marcado pelo sotaque, provavelmente vendo pela minha cara que eu não entenderia se falasse em catalão. — Ainda mais depois da reforma.
— Não estou visitando. — Abaixo o celular aberto no Twitter, onde comentários continuam surgindo na postagem que eu estava lendo. — Vim para jogar.
Ele franze a testa, voltando o olhar para o trânsito. Nem ao menos me dá os parabéns. Depois de alguns segundos, no entanto, quando estou recomeçando a ler os comentários do post, ele tenta de novo:
— Sabe, até que você é familiar.
Sei exatamente por que ele me acha familiar. Fotos do meu rosto estão em todos os sites de fofoca, e devo ter aparecido nos noticiários da Espanha inteira ao longo do mês de setembro. Isso é o que eu ganho por ter namorado um jogador do Real Madrid.
Não, isso é o que ganho por ter terminado com um.
Um novo comentário surge na postagem que eu estava acompanhando e leio porque, pelo visto, sou uma idiota e não sei o que é melhor para mim.
Aposto que essa garota não seria nada se não fosse pelo Andrews.
Engulo em seco e leio de novo a manchete da notícia linkada no post. É só mais uma dentre tantas, de um dos perfis sensacionalistas que inundam a minha timeline.
Ex-namorada de Stephen Andrews abandona o Brasil depois de escândalo envolvendo traição. Em entrevista, o jogador afirma estar de coração partido.
Sem querer criticar essa obra de arte do jornalismo, mas qual é a relação entre a minha mudança do Brasil e o Stephen, que é britânico e mora em Madri? E, mais uma vez, meu nome nem ao menos foi mencionado. Só não fico ainda mais indignada com isso porque até que é uma evolução ir de namorada de Stephen Andrews a ex-namorada.
Eu poderia dizer ao motorista do Uber que é por isso que ele me reconhece, poderia aceitar o escândalo de cabeça erguida. Ou, de maneira mais sensata, poderia só ficar quieta. Mas, impulsionada pelo comentário ridículo daquele estranho no Twitter, acabo dizendo:
— Deve ser porque eu joguei na Copa do Mundo.
Isso atrai a atenção dele.
— Na Copa do Mundo? — ele repete. — De futebol?
Eu sorrio pela primeira vez no dia.
— Essa mesma.
E é assim que, mesmo não sabendo meu nome e pelo visto sem ter qualquer noção sobre futebol feminino, o cara termina pedindo meu autógrafo ao fim da viagem. Quando ele vai embora, me deixando na entrada do Estádio Johan Cruyff, meu humor já melhorou consideravelmente.
Estou onde estou por mérito meu, não por causa do meu ex-namorado famoso. Sem ele, vou alcançar coisas ainda melhores.
Como jogar no Barça.
Ajeito a mochila no ombro e caminho devagar, como se a perspectiva de conhecer pessoas novas neste momento não me desse vontade de vomitar de nervoso.
E não são pessoas novas comuns, nada disso. Estou prestes a conhecer algumas das mais recentes campeãs do mundo — e isso depois de o Brasil ter feito a sua pior Copa, justo no meu primeiro mundial jogando pela Seleção. A maior parte das jogadoras do Barcelona é de estrelas do esporte e eu... eu sou a droga da ex-namorada do Stephen Andrews.
Os últimos três meses foram uma montanha-russa, tanto que mal consigo me lembrar da euforia de ter sido convocada para a Copa e, logo depois, de fechar um contrato com o Barcelona. Primeiro, imaginei que o contrato seria cancelado depois de o Brasil ter sido desclassificado antes das eliminatórias. Depois, tive certeza de que o distrato viria com as notícias mais recentes da minha suposta — ênfase em suposta — traição e todo o escândalo envolvendo aquele filho da puta do Stephen.
Mas o acordo continua de pé e, no caos de ser cancelada pela internet e de mudar de país, é a primeira vez que tudo isso parece real. Estou mesmo aqui. Pelos próximos quatro anos, ninguém vai me mandar embora.
Depois de tudo o que aconteceu, ainda tenho o futebol.
Tiro do bolso interno do casaco o meu cartão, que serve como chave para o vestiário, e o aperto na palma da mão suada.
— Ei, Rebeca!
Olho para trás, na direção da voz conhecida que chamou meu nome. O rosto Emily Novaes, com o cabelo cacheado amarrado de qualquer jeito e o maior sorriso do mundo, me enche de alívio. Só depois tenho a decência de fazer uma carranca, me forçando a lembrar que estou brava com ela.
Emily é minha melhor amiga na maior parte do tempo. Mas hoje não.
— Ah, não faz essa cara. — Ela para diante de mim e preciso me esforçar para não abraçá-la. Ela está usando um conjunto de moletom verde que combina com sua pele negra cheia de tatuagens. Seus olhos fundos têm o brilho de sempre e seu tom de voz bem-humorado nunca falha em me fazer sorrir. Exceto agora. — Ainda está brava comigo?
— O que você acha?
Ela revira os olhos e continua sorrindo, sem se deixar abalar, depois segura meu pulso e começa a me guiar, como se eu não soubesse o caminho pelas instalações do Johan Cruyff. Quando ela me puxa na direção oposta à que eu seguiria por conta própria, percebo que não sei mesmo. O que faz sentido, já que nunca estive aqui antes.
— Vou te apresentar para as meninas — ela garante. — Eu não estava brincando quando disse que esse é o melhor time do mundo.
Mesmo mal-humorada, eu a sigo sem reclamar.
Faz dois anos que Emily joga para o Barcelona. Por mais feliz que eu estivesse por ela, havia momentos sombrios em que sentia ciúmes da relação que ela estava construindo com as outras jogadoras. Eu acompanhava a vida dela na Espanha pelas redes sociais e já até excluí o TikTok por causa disso, mas reinstalei no dia seguinte, só para vê-la fazendo uma dancinha ao lado de Alba Mascarós em comemoração a um gol.
Por tanto tempo, Emily foi a minha maior apoiadora em tudo, e vice e versa. Jogar no Barça com ela era um sonho. Agora que se realizou, o timing não podia ser pior, mas ainda é melhor do que se não tivesse sido realizado.
Emily e eu não estamos em bons termos — apesar de, pelo visto, ela estar fingindo não ligar para isso —, porém o desentendimento mais recente entre nós duas pode ser deixado de lado por algumas horas. Eu não esperava que ela fosse aparecer para me ajudar no meu primeiro dia, não depois de ignorar suas últimas mensagens, e ela me surpreendeu. Por um momento, me permito sentir o afeto, quente e aconchegante, que reservo só para ela.
Emily usa o próprio cartão para abrir a porta do vestiário. Lá dentro, o time está reunido. As palavras ficam presas na minha garganta enquanto observo os rostos familiares.
Reconheço Marge Williams, que jogou pelo Canadá na Copa, e a sueca Karin Olsson. E, claro, lá estão as jogadoras espanholas que fizeram história vencendo o mundial: Sofia Romero, Alba Mascarós, Pilar Martin e Isabel Avilés.
— Olá, novata — Sofia diz, terminando de vestir uma camiseta de mangas compridas com o brasão do Barcelona e alguns logos de patrocinadores. Suas box-braids estão soltas, emoldurando as bochechas do rosto. Com apenas vinte anos, ela parece ainda mais novinha pessoalmente. — Bem-vinda ao Barcelona.
Ela fala de maneira casual, mas as palavras pesam. Isso está mesmo acontecendo.
Antes que eu tenha a chance de responder, a porta é aberta atrás de mim. Olho para trás apenas para dar de cara com um rosto que já vi inúmeras vezes antes: na TV, na tela do celular e, durante a Copa, um pouco de longe, quando eu saía do meu hotel em Sydney e ela chegava com o time da Inglaterra.
Cornelia Ember.
Se meu coração estava batendo rápido antes, agora ele parece parar.
Ember me encara, arqueando levemente as sobrancelhas. O cabelo castanho dela está amarrado no coque de sempre e, por trás dos óculos de grau estilosos, seus olhos verdes se fixam nos meus. A pele branca do rosto está levemente corada por causa do frio lá fora e isso, mais do que qualquer coisa, a faz parecer uma pessoa de verdade, não a Cornelia Ember com que estou acostumada, craque do jogo e inalcançável.
A amizade de Emily com as colegas do Barcelona não foi a única razão para eu ter excluído o TikTok — várias vezes, aliás.
Eu sabia que Ember estaria aqui. No chuveiro e antes de dormir, pensei em mil maneiras de me apresentar a ela. Me preparei para este momento, caramba, e mesmo assim congelo no lugar.
— Ah, você deve ser... — ela começa, com a voz grave e o sotaque britânico muito marcado.
Eu fico tensa, pronta para ouvir "a ex do Stephen Andrews" ou algo que o valha. Mas ela faz uma pausa, esperando que eu complete a frase.
Não deveria ser como um tapa na cara, mas é. Cornelia Ember nem ao menos sabe o meu nome.
— Rebeca — digo simplesmente, deixando os sobrenomes de lado. Depois me viro para as outras. — Prazer em conhecer vocês.
E é isso. No meu primeiro dia, eu queria tanto ter algo engraçadinho ou inteligente para dizer. Tudo bem que era esperar demais soar inteligente assim, do nada, mas eu sou uma pessoa divertida. Ou costumava ser.
Pelos minutos seguintes, as meninas conversam animadamente entre si, e a única que fala comigo é Emily.
Nem mesmo ver o abdômen sarado da Ember me anima muito.
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