Sempre que Tapisa via Li’a sentada entre a pequena aglomeração de fantoches dos camarins, pensava nela como uma espécie de limiar. Tinham todos a mesma pele pálida enfermiça, os mesmos cabelos brancos, os mesmos gestos frágeis de algo prestes a quebrar ― mas os olhos dos fantoches eram um abismo de oblívio, ao passo que os de Li’a enchiam-se de uma agudeza afiada, difícil de ignorar.
― Sai pra lá ― Tapisa disse, empurrando para o lado, sem muito cuidado, o fantoche que penteava os cabelos de Li’a. A criatura deu dois passos cambaleantes, fazendo um ruído de madeira e engrenagem, parando silencioso no canto. ― Eu cuido disso, senhora.
― Seja mais cuidadosa com os seus brinquedos, pequena ― Li’a sussurrou, encarando o mar de cachos vermelhos que era Tapisa atrás de si.
― Se quebrar eu conserto, né? É pra isso que tô aqui.
― Ainda assim, o Senhor Instrutor ficaria chateado por ter o trabalho de ir buscar uma alma vadia pelas ruas de Farkas.
― Isso seria divertido. ― Tapisa fez o cabelo de Li’a deslizar entre os dedos, se inclinado para buscar sobre a penteadeira os grampos de marfim que usaria no penteado. ― Ele correndo atrás de alminhas por aí, feito o lunático que é. Com sorte, até devoraria a coitada.
― Nesse caso, seja cuidadosa com o seu futuro ― Li’a advertiu, e Tapisa fez um esforço para não se encolher diante do olhar dela.
Aquilo era o futuro: ninguém ia embora da Ópera. Fosse punição, doença ou idade, suas almas eram arrancadas do corpo e colocadas em um dos fantoches que Tapisa meticulosamente criava com sua magia, sob medida. A Ópera é uma arte para toda a existência, Kuí costumava reforçar, deixando um sorriso pirracento rastejar pelos lábios.
Quando Tapisa terminou, Li’a sustentava uma trança grossa em volta da cabeça, o resto do cabelo preso em camadas de uma forma que cascateasse, elegante, até a cintura. Se afastou um pouco, admirando os movimentos de Li’a ao recolocar na orelha os alargadores feitos de osso e cristal, para então buscar o figurino pendurado em um gancho. A certeza com que Li’a fazia as pequenas coisas quase disfarçava o tremor constante em suas mãos.
― Eu esqueci o seu remédio, senhora. Volto rapidinho, me espera aqui!
A risada suave de Li’a acompanhou Tapisa pelos corredores estreitos que circulavam o palco. Tudo pertencia à Ópera, desde a estrutura, e havia sido construído num espaço de pouquíssimos dias, para surpresa do povo de Farkas. “Isso foi moleza”, Tapisa dissera ao garoto curioso que havia comentado para ninguém em especial sobre a velocidade da trupe. “A gente já montou palco em menos tempo, e debaixo de chuva.”
O jeito como ele havia arregalado em surpresa os grandes olhos brilhantes tinha sido adorável. Tapisa não deixou de pensar que devoraria olhos assim com um sorriso no rosto.
Quando retornou ao camarim, Li’a já estava vestida. A túnica de mangas longas e abertas costurava-se à saia ampla. Flores delicadas haviam sido bordadas nas abas das mangas e na barra da saia, distribuídas de tal forma que lembravam uma simpática nuvem de insetos. Tendo apenas o colo e as mãos expostos, e com aquela aparência refinada, Li’a lembrava as fadas das histórias infantis.
― Senhora… ― Tapisa ofereceu o copo, o riso se espalhando pelo corpo todo diante da careta dela. ― Você parece uma criançona toda vez, é sempre isso.
― E você esquece que a palmatória está logo ali ― Li’a disse, um sorriso se erguendo de canto ao ver Tapisa murchar. ― Malcriada.
A mistura de álcool de vegetais, erva-de-brejo e sangue era bastante desagradável, deixando na garganta um rastro agreste.
O sistema de suporte que a mantinha viva era feito de agonias.
Dali a pouco qualquer espaço para conversinhas foi dissipado pela proximidade do espetáculo, transformando os bastidores em uma confusão de passa-foras e gritos sob o pano de fundo que era a orquestra fazendo a passagem de som. Mas era o falatório do público, aumentando como uma onda, o que fazia Tapisa trocar o peso do corpo de um pé para o outro, ansiosa.
― Vá logo espiar antes que eu enlouqueça contigo, menina.
― É que falta uma coisa! ― Tapisa explicou, e depois de ter certeza de que Li’a estava mesmo pronta, deu uma corridinha animada até o armário privativo para buscar a cereja do bolo.
Enfileiradas nas muitas prateleiras havia um sem-fim de meias-máscaras demoníacas. As expressões eram diversas entre sorrisos sádicos e rosnados. Tapisa avaliou as cores do figurino de Li’a e fez sua escolha: com os lábios erguidos para cima numa sugestão de violência, a máscara exibia presas pontudas que combinavam com os alargadores. Também tinha o mesmo tom de azul da sua roupa.
― O velho Farkas não vai ficar puto por ver a senhora usando azul?
― Por que ele ficaria? ― Li’a se abaixou um pouco para ficar da mesma altura de Tapisa. Sabia o quanto ela gostava de colocar a máscara em si. ― Não é índigo a cor que carrego.
Mas era um tom muito, muito próximo.
Quando ela voltou a se erguer, a máscara ocultando seu rosto do nariz para baixo, Tapisa fechou os olhos para aproveitar a descarga de medo que sempre gelava seu estômago.
Aquele era seu truque favorito: ver a fada se transformar em bruxa.
― Vai! ― Li’a tangiu a menina para fora. Sua voz saía límpida como se não usasse nada no rosto.
Tapisa fez como ela pediu, correndo até a coxia para espiar por trás das cortinas pesadas o público lá fora. Chegou a tempo de ver Kuí entrar com o que imaginou ser a família do líder.
Ele havia envolvido as mãos em torno do braço de Juno. Uma das cobras parecia encarar a mulher, curiosa, do canto de seu ombro, enquanto a outra dormia enroscada ao seu pescoço, tão amolecida que poderia se passar por morta.
― Juno, querida, nossa última parada foi em Banjora e devo admitir que se um dia eu me retirar do mundo secular, é lá que pretendo fixar raízes.
― É uma escolha adequada, Senhor Instrutor, mas torço para que sua Ópera continue cruzando as pontes ainda por muito tempo.
― Eu aposto que a minha mãe prefere enfrentar um exército de Fronteiriços a ver essa coisa na cidade-natal dela ― Oz comentou a meia-voz para Yan ao seu lado. O atordoamento que o tomara ao longo da tarde parecia ter se dissipado em partes, soprado para longe pelos beijos de Yan, abrindo espaço para sua indisposição com Kuí. ― Vocês pareceram bem íntimos quando ele chegou ― continuou, olhando-o de canto. ― Perdi alguma coisa?
― Nada ― Yan afirmou, tocando-o no cotovelo em um carinho discreto. ― Ele é gentil, e eu sou gentil de volta.
― Ele é intragável ― Oz grunhiu, alto o bastante para que Kuí os olhasse por cima do ombro com um sorriso afrontoso que murchou até formar uma linha mais suave quando migrou de Oz para Yan.
― Quem quer que o esteja desagradando na minha Ópera, jovem mestre, me diga para que eu puna o quanto antes ― ele cantarolou, rindo diante do sorriso de muitos dentes que Oz lhe ofereceu. ― A cria de vocês é adorável, Ravi, querido!
― Eu duvido que qualquer pessoa no seu espetáculo esteja incomodando o meu filho, Senhor Instrutor ― Ravi interviu, lançando a Oz um olhar de advertência. ― Mas se vamos falar de incômodos, já passou da hora de esta criatura arranjar um casamento ― ele continuou, deixando no ar uma insinuação que Kuí captou.
― Vocês terão as melhores companhias da minha Ópera esta noite, querido. Com sorte a sua cria se engraça por um artista ou dois.
Aquela era uma apresentação exclusiva para o clã Farkas e ainda assim a plateia estava lotada por uma comitiva tão grande quanto a de uma pequena cidade. Os melhores lugares foram reservados aos membros mais importantes do clã, entre familiares mais próximos e aquelas pessoas cujas funções eram vitais para Ravi. Os assentos do fundo estavam ocupados pelos discípulos externos e por serviçais. Seu próprio núcleo familiar tinha um camarote cativo cuja vista do palco era extraordinária. Eram uma massa homogênea de vestes índigo bordadas com fio de ouro, marcando sua diferença da mesma forma que marcavam seus telhados e seus cavalos. Não havia nada que pertencesse aos Farkas que não estivesse sinalizado bem à vista de todos. Mesmo as vestes de Yan, tipicamente em tecidos brancos, tinham faixas azuis bordadas às mangas, indicando que aquele era um curandeiro a serviço de líderes.
Ao lado deles, Kuí era uma distorção com sua roupa de muitas camadas cor de laranja. Ele sentou ao lado de Juno, reservando a Ravi o assento do meio. Yan e Oz sentaram-se atrás, o que Yan achou excelente porque assim poderia manter a mão de Oz entre as suas e acalmá-lo. Também era gostoso ficar logo atrás de Kuí. Aquele perfume salgado pinicava seu nariz e sua pele no que poderiam ser beliscões ou arrepios. Era agradável, de toda forma.
Com os libretos da ópera em mãos, Ravi, Juno e Kuí trocavam cortesias. Aproveitando-se daquela distração, a mão de Oz escorregou, pesada, até a coxa de Yan, tomando um caminho perigoso em direção à sua virilha.
― Aqui não ― Yan o deteve. O sussurro era tão firme quanto a mão sobre a dele, mas os olhos faziam promessas.
― Mais tarde? ― Oz questionou, afastando a mão e virando-a de palma para cima em um convite.
A resposta de Yan foi roubada pelo primeiro aviso de que o espetáculo iria começar. Todos se posicionaram, empertigados.
― Sobre o que será a ópera, Senhor Instrutor? ― Ravi questionou, sem se dar ao trabalho de abrir o libreto.
― Sobre um fantasma, querido. O fantasma que assombra um teatro abandonado, e o infortúnio de sua história. ― Ele fez um carinho no corpo escamoso de uma das cobras. ― É mais pitoresco do que o meu resumo sugere.
As luzes das pequenas lanternas flutuantes que iluminavam o lugar foram baixando até mergulhá-los em uma penumbra insinuante. Ao contrário do padrão, a orquestra da Ópera do Fim do Mundo não ficava sob o palco, mas ao redor dele, como parte da cena. As cordas deram o tom ao início do espetáculo, seguidas por flautas e pela percussão. Em seu lugar, Oz revirou os olhos. Era só mais uma ópera como outra qualquer e talvez pudesse escapar de fininho para fora do camarote.
Um erhu solitário o impediu de levantar. Aquele era um instrumento muito raro de se encontrar em qualquer uma das Cidades, mas os que o seguiram eram ainda mais. Guitarras.
Então veio a voz.
― É ela? ― Ravi sussurrou, vendo Kuí concordar. ― Onde? Onde ela está?
Li’a não surgiu no centro do palco, mas ao fundo do auditório, obrigando todos a se inclinarem para trás para que pudessem vê-la enquanto descia em direção à orquestra. Com as mãos sobre a bancada do camarote, Ravi sequer ousou reclamar das vestes azuis que ela exibia.
Deveria ser só a acústica do lugar, mas a voz parecia grudar na cabeça, abria rasgos na realidade como os dentes de um tubarão-dos-céus. Era toda feita de farpas, áspera e quente.
Não há nada nos céus ou entre os Imortais que eu deseje mais do que me pertencer novamente, dizia a canção numa tristeza que beirava a ameaça. Os olhos eram todos de Li’a da mesma forma que costumava acontecer às mariposas diante de uma fonte de luz.
Oz foi pego de surpresa pela maneira como seu coração retumbava. Teve a impressão de que se aquela voz o mandasse se jogar no vórtex, ele não pensaria duas vezes. Assim como seu pai, tinha se inclinado para frente. Achou que encontraria uma deusa, mas o que viu foi um demônio ― e nada poderia ser mais cativante.
E se tudo que toco é o vazio, me bastaria incendiá-lo para destruir a realidade.
― Como ela canta tão bem apesar da máscara? ― Yan perguntou baixo, para que apenas Kuí pudesse ouvi-lo. A mão agarrava a de Oz, quase parecendo vibrar. ― É algum tipo de amplificador?
O diplomata o olhou sobre o ombro, sussurrando:
― É apenas como a voz dela é, docinho. Espere mais um pouco, e… ― Ele ergueu o dedo no ar, contando o tempo até que a voz de Li’a se transformasse do timbre lírico para um gutural majestoso que fez Juno estremecer na cadeira. ― Ah, meu adorável serzinho musical, ela é perfeita!
Porque viver em um mundo como este não é um exercício de virtude, Li’a afirmou em sua música como faria um monstro noturno coletando criancinhas por diversão.
Desde que Maali se fora, Oz não se sentia capaz de desejar de verdade outro alguém além de Yan. Maali havia sido parte de seu tudo por anos o suficiente para que a traição de Nivaria tivesse dilacerado seu coração, transformando as memórias dele em um mar de repulsa. Pensar em Maali era uma corda-bamba sobre a qual Oz fingia não se equilibrar — assim como fingia as ameaças que esbravejava sempre que tocava o brinco em sua orelha, uma lembrança do noivo perdido.
Aquela voz era como uma cura, como os toques de Yan no meio da noite ― quando ele fingia não estar chorando e Yan fingia não secar suas lágrimas.
Era como esperança.
Continua...
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