Uma dúzia de pães depois, Oz estava entretido em uma barulhenta queda de braço. Ao seu lado, Yan admirava as luminosas dobraduras de papel que flutuavam sobre as barracas, entre pássaros, insetos e mesmo objetos inusitados, como pequenos bules. Aquilo havia aparecido de última hora, depois de saberem que a Ópera do Fim do Mundo estava na cidade. A trupe era conhecida por suas monstruosas dobraduras que distraíam o público tanto, ou mais, do que o talento de seus artistas ― e é claro que o povo de Farkas criaria sua versão menos glamurosa da coisa, apenas por farra.
― Rendam-se, nivarianos! Ou é aqui que nossas pontes se rompem para sempre!
― Nós preferimos nos lançar no olho do vórtex!
O olhar de Yan deslizou até um grupinho de crianças não muito longe dali. Aquelas palavras, conhecidas por qualquer pessoa em Farkas, eram o bordão atribuído a Ravi no cerco à Nivaria. O garotinho que fazia as vezes de Ravi usava um surrado colete de pele. Uma máscara de papel meio amassada, presa à cabeça, mimetizava o crânio de lobo do líder Farkas. Na frente dele, um outro tinha duas cascas de limão amarradas por barbante ao topo da cabeça no que deveriam ser orelhas nivarianas.
Avançando com um grito que lembrava um rosnado de filhotinho, o Ravi de brincadeira bateu em seu rival com uma espada de madeira, arrancando do menino um chororô sentido.
― Por que você me bateu? ― ele questionou, fazendo um bico.
― Porque você é o nivariano! ― seu companheiro rebateu, pondo as mãos na cintura.
― E por que eu sempre sou o nivariano? Você é um chato!
— Porque eu sou maior e mais forte! Eu tenho que ser o mestre Farkas! Ou você acha que os nivarianos eram fortões também? — Ele mostrou a língua.
O menorzinho continuava esfregando a cabeça, com os olhos cheios de água. Um dos limões tinha se soltado e pendia da cabeça como uma orelha decepada.
— Ei, cuidado — Yan os interrompeu com a voz suave. — Vocês podem se machucar assim.
O nivariano de mentirinha se virou em busca da voz e seus olhos se arregalaram, mirando as orelhas arredondadas no topo da cabeça daquela criatura.
Ele deu um passo para trás, sussurrando o nome do amiguinho, para que ele viesse para perto.
— O que você está fazendo, seu tonto? — O maior sussurrou ao seu lado. — É o curandeiro do mestre Farkas!
O menino franziu a testa e abriu a boca. Parecia pronto para fazer um comentário. Yan, à sua frente, já preparava um suspiro.
— Ei! — A voz alta de Oz chamou atenção não só dos meninos, mas de todas as mesas à sua volta, quando se levantou. — Ouvi dizer que tem alguém aqui se achando o farkasiano mais forte! Cadê? — Ele mirou o garotinho com a espada e abriu o sorriso, os dois caninos expostos. Em sua cabeça, o crânio de lobo era só parcialmente iluminado pelas luzes do festival. — É um desafio?
O garotinho arregalou os olhos. Como numa zombaria, a máscara que tinha imitando o adereço de crânio dos Farkas se soltou de sua cabeça e caiu lentamente para o chão.
— Eu vou contar até três e então vai ser um desafio! — Oz continuou. — Um…
Nem precisou continuar. Com um grito de medo e divertimento, as crianças correram entre as mesas em direção ao corredor de barracas, berrando que não tinham intenção de desafiar o jovem mestre.
Oz caiu na gargalhada, deixando o corpo descer de volta para a cadeira. Ao seu redor, as pessoas entoavam risos mais discretos. Mas ninguém ousou encarar as orelhas de Yan de novo.
━ • ✿ • ━━
A desculpa que o próprio Oz o tinha dado mais cedo era perfeita. Yan não precisou alterar uma única palavra. Assim que as palmas começaram a anunciar a presença de Ravi no palco montado no centro do descampado, só precisou dizer que iria descansar. E que ele deveria estar na festa, onde era seu lugar de direito, como herdeiro do clã.
De trás de um tronco, na entrada do bosque, ainda pôde vê-lo ao lado do pai antes de se afastar um pouco mais, carregando uma lâmpada de papel. A voz alta de Ravi era repetida por uma enxurrada de pequenos autômatos, para que se espalhasse pelo território de Farkas como se vinda diretamente do vazio, como a voz de um Imortal deveria ser.
— Meus caros, bem-vindos ao décimo Festival da Vitória!
O som de mãos batendo em mesas de madeira por toda a festa fazia os passos de Yan na floresta serem ainda mais silenciosos. Erguendo a lanterna à frente do rosto, ele encontrou a trilha que levava ao miolo do bosque.
Para andar por aquelas bandas, era a noite perfeita. Não apenas porque a cidade parecia se concentrar ao redor do palco e entre as barracas iluminadas, mas porque até mesmo os lobos dos Farkas ficavam longe dos bosques em noites importantes, atraídos pela festa.
— É um imenso prazer tê-los aqui esta noite, para celebrar mais um aniversário da nossa maior glória.
Yan enrolou a cauda felpuda ao redor da bolsa que trazia trespassada ao corpo, evitando que pequenas folhas e cascas de árvore se prendessem ao seu pêlo clarinho. A trilha não era muito longa. Levava até uma pequena área, entre as árvores, dedicada antigamente à contação de histórias sobre todos os clãs.
Farkas fora, há não muito tempo, o centro comercial e cultural das Cidades Flutuantes, o polo que conectava todas as cidades, o elo entre culturas diferentes. Yan tinha vivido aquilo, quando mais jovem. Não havia uma noite em que suas memórias não o buscassem durante o sono, entoando antigos cânticos agora esquecidos.
— Nesta mesma noite, uma década atrás, liderei um grande grupo, formado por rostos que vejo agora entre vocês, para retomar a paz e a promessa de prosperidade entre as Cidades Flutuantes.
O grupo que Yan buscava era formado por não mais do que duas dúzias de pessoas. Pôde encontrá-las sem muita demora, pelo brilho das lanternas. Eram todas iguais, de um papel branco bastante raro, que lembrava a cor da neve no começo do dia, e que queimava sem deixar vestígios.
Não reconhecia todos os rostos. A maioria pertencia a pessoas cujos nomes nunca memorizara. Naquela noite, entretanto, não precisava ser reconhecido, apenas estar lá.
Pousou a lanterna no chão à sua frente e juntou as palmas das mãos diante dos olhos. Era um dos poucos ali com orelhas nivarianas — certamente, o único que não precisava escondê-las. Não que isso fizesse qualquer diferença para a intenção. Poderia não ser um fiel de Niva, mas certamente era um fiel das memórias de Nivaria.
Das suas memórias de Nivaria. E da memória daqueles que não sobreviveram ao que Ravi chamava de noite gloriosa.
— Estejam certos de que Farkas continuará soberana na luta pela igualdade dos povos. E pelo direito daquilo que pertence a todos nós.
Uma senhora ao seu lado deixou escapar um suspiro dolorido. Yan a olhou de canto. Ofereceu um sorriso discreto e então um gesto, com o indicador sobre os lábios, em um pedido por silêncio. Ela acenou com a cabeça, voltando a abaixar os olhos em suas próprias orações aos Imortais.
— Eu e meu clã sempre nos colocaremos à frente quando for necessário. Nas batalhas ou nos dias de dificuldade. Pois enquanto Farkas prosperar, prosperarão em conjunto todas as cidades.
Em Farkas, não era comum pensar sobre o vórtex. Aquela era uma anomalia que quase não os incomodava, um pequeno detalhe sobre a forma como seu mundo funcionava. Para Yan, no entanto, era impossível não pensar sobre o vórtex durante o Festival. Nivaria teria sido sugada por ele quando a ponte que a conectava a Farkas ― a única ponte que a conectava a qualquer coisa ― tinha sido rompida? Ou vagava no vazio escuro para além das Cidades, impossível de se alcançar?
— E se ainda há em nosso mundo qualquer inimigo da prosperidade, o forçaremos a se revelar. E romperemos, para todo o sempre, as pontes que nos ligam a ele. Por Farkas, e pelas Cidades Flutuantes!
Yan ergueu o olhar. A onda barulhenta dos farkasianos em festa voltou a irromper até o bosque. Precisavam voltar. Concentrou o espírito na palma da mão, sentindo seus dedos formigarem sobre a lanterna acesa. O brilho do fogo se refletia em seus olhos dourados, quente e desafiador.
— Por Niva — sussurrou. E não desviou os olhos enquanto a lanterna se incendiava espontaneamente perto de seus pés.
Deixou escapar um suspiro quando a chama se apagou, mergulhando o bosque de volta no vazio. Os Imortais os tinham ouvido. Niva tinha recebido sua oferenda. Em seu coração, restava a esperança, ainda quente como o fogo, de que Nivaria um dia seguisse a luz das lanternas queimadas e encontrasse seu caminho de volta até as Cidades.
━ • ✿ • ━━
Yan tomou seu caminho de volta para o Hall da Conflagração. Na cidade, o som da música enchia o festival de vida. Do portão do Hall, podia ouvir tudo, ver as luzes se espalhando pelo céu da cidade, até sentir o cheiro dos pães recheados. Mas já não tinha fome.
Alguns lobos guardavam os portões, rodeados de pequenos autômatos voadores. Yan abriu um sorriso discreto, fazendo uma reverência em agradecimento quando os pássaros abriram o portão para que passasse.
Então ouviu passos vindos de fora, virando o olhar por sobre o ombro.
Ele caminhava a passos lentos. Soltos ao vento forte, e sob as luzes do festival, seus cabelos eram como uma fogueira. Seria imponente, não fosse a suave contração em suas feições, como se estivesse sentindo dor, um detalhezinho de nada, que o sorriso amplo quase escondia.
— Boa noite, companheiras — Shu Lan sibilou por cima do ombro de Yan, os olhos pousados sobre as cobras gêmeas enroladas no pescoço do convidado de Ravi.
— Que criaturinha mais bem-educada — Kuí respondeu, assim que chegou perto o suficiente para que não precisasse erguer a voz.
— É, ele não é sempre assim — Yan sorriu, levando a mão para afagar a cabeça do lagartinho. — Não vai ficar para as festividades, Senhor Instrutor? O mestre Farkas tem muito orgulho dela.
― Tanto que faz questão de comemorar por muitos dias, certo, benzinho? Não é como se eu fosse perder algum detalhe de verdade. Além do mais, não sou o único a sair de fininho esta noite. Estou errado?
Yan sentiu o rosto corar. Ele chegava perto, falava devagar, com uma voz luminosa e musical. Era diferente das companhias farkasianas com as quais tinha se habituado ao longo dos anos. O rosto do Senhor Instrutor não lhe era um completo estranho, mas o tinha encontrado quando era jovem demais. Quando sua cabeça estava cheia demais para fabricar muitas memórias sobre ele.
— Minha família mora um pouco afastada da cidade — explicou, o tom de voz gentil combinando com um sorriso calmo. — Cheguei de viagem hoje cedo e não tive tempo de descansar. Acho que minha energia para festas está meio baixa.
— Você é o curandeiro especial sobre quem Ravi tanto me falou, não é? ― Os olhos reptilianos subiram até as orelhas macias de Yan, sem qualquer pudor, mas ele não teceu qualquer comentário sobre elas. ― Achei que teria o prazer de te encontrar na cerimônia de abertura. Deve estar mesmo muito cansado, benzinho, se só chegou agora ao Hall. Eu não vou ser o responsável por te segurar longe da cama por nem mais um segundo.
— Eu estava lá — Yan respondeu com um sorriso fácil. Tinha para mentir o mesmo dom que tinha para curar. — Fora dos focos de luz. Eu imagino que o senhor entenda os meus motivos. — As orelhinhas se mexeram suavemente quando Yan desviou o olhar, fingindo respeito.
― Não faço ideia da razão ― Kuí respondeu numa brincadeira amistosa, as sobrancelhas franzidas por um segundo breve.
— Por mais grato que eu seja ao mestre Farkas pela hospitalidade… — Yan recomeçou, andando pelo Hall silencioso até o corredor de seus próprios aposentos. — Entendo que esta festa não é sobre mim. Oz faz o possível para que eu me sinta bem-vindo, mas não gosto de ser um estorvo, senhor. — Mordeu o canto do lábio, a voz ficando apenas levemente mais baixa. — Por favor, não conte meu segredo.
― Cobras não têm boa audição, benzinho. Se você me disse algo, morreu com o vento.
— Por essa lógica, lagartos também não. Mas eu ouço muito bem — Shu Lan comentou, em um tom espirituoso que fez Yan rir.
— Acho que Shu está tão cansado quanto eu, por isso soa tão amigável. — Meneou a cabeça, abrindo a bolsa em busca da chave de seu quarto. — Não se espante, senhor. Ele sabe ser bem mais ácido quando está descansado. Mas não é por mal.
— Eu não interpretaria dessa forma. — Kuí franziu o nariz em um sorrisinho.
Seus aposentos, destinados aos convidados ilustres do mestre Farkas, ficavam um pouco mais acima, perto de sua escadaria particular. Com um aceno gracioso, Kuí fez menção de se despedir e seguir adiante.
— Senhor Instrutor — a voz do curandeiro o manteve no lugar ―, um momento. ― Yan tinha a porta de seus aposentos aberta e buscava algo na bolsa à meia luz. — Ah, aqui. Para você.
O pacotinho que tinha em mãos era pequeno, de papel translúcido fino. Yan o fechou graciosamente com um lacinho de fita antes de entregar.
— São as ervas que uso no remédio do senhor Farkas. Vão ajudar com a sua dor de cabeça. O segredo são duas colheres de mel, para acobertar o sabor amargo. Basta infusionar por cinco minutos em água quente e beber como chá. — Yan ofereceu um sorriso ao fim da explicação. — Boa noite.
Entre diplomatas, as relações costumavam ser ásperas, acres, cozidas lentamente. Exigiam tamanha fibra emocional que quase sempre eram forçados a se fechar em copas. Os muros de Kuí eram seus sorrisos, e ele não teve nenhum para oferecer àquele pequeno curandeiro, observando o pacote em suas mãos.
Era bem pouco acostumado com gentileza e atenção genuínas, das quais nunca desgostaria.
Estava mesmo com dor há várias horas, culpa do clima inconstante e desconfortável de Farkas, incômodo mesmo para uma cria do deserto como ele. Ficar de pé ao lado de Ravi enquanto ele gritava a plenos pulmões não contribuíra muito.
― Eu não gosto de dever gentilezas, benzinho ― Kuí disse antes que a porta de Yan se fechasse, voltando a sorrir. ― Posso ter o prazer de levá-lo a um ensaio da Ópera nos próximos dias?
— Um ensaio? — Yan deixou a expressão se perder no convite, os olhos postos em Kuí sustentando a mais pura surpresa. E então ele sorriu, iluminando o olhar com as maçãs do rosto coradas. — Eu não poderia, Senhor Instrutor. Não com o tanto de trabalho que devo ter para manter a… Sobriedade dos farkasianos durante o festival. Mas estou certo de que o senhor vai encontrar uma companhia à altura dos seus artistas. Não pense que me deve nada pelo chá, por favor. Veja como um presente. Eu espero que tenha uma boa noite de descanso.
Enquanto encarava a porta agora fechada, a muralha de Kuí esculpida em sorriso voltou a demonstrar pequenos sinais de erosão.
Continua...
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