Foi sôfrego que cheguei em casa, depois de tamanho exercícios. Tinha gana de ir ao meu quarto e tomar banho, me livrar do suor acumulado da noite e do sexo, mas eu iria apenas acordar a casa se fosse ao chuveiro naquele horário. E bem, não era contra acordar meu irmão e o namorado, se fosse necessário.
O problema era...
Abri a porta da frente, espiando. O terreno parecia limpo. Tirei meus sapatos, e com cuidado, subi de novo as escadas, indo em direção ao meu quarto. O escuro me convidou a entrar, e encontrei tudo como estava na noite anterior. Abandonado, vazio e oco. Apenas tirei minhas roupas, ficando de cuecas, e me joguei na minha cama.
Esperava que o sono viesse, já que o cansaço obliterava meu corpo, esmagando-o em pedacinhos pequenos em que sentia os tremores, mas minha mente permanecia desperta e culpava cada centímetro de pele pelas decisões tomadas, e por isso, entrava no ciclo em que me mantinha acordado.
Eu não deveria ter ido.
E teria feito diferença se eu não tivesse ido?
Eu não deveria ter dado.
Eu estava fodido.
Meio que literalmente.
Passei uma mão por meu estômago, pensando. E pensando. A mão de Alex era tão maior do que a de Kurt, e bem mais gentil. Kurt tomava o que era dele. Alex, por desconhecer, por desbravar, pedia por permissão. Era uma diferença importante.
Percebi então que parte do meu vazio era fome e, já que não conseguia descansar minha mente. Levantando-me, coloquei uma camisa limpa, e desci para o primeiro andar, pronto para invadir a cozinha e encarar a geladeira, quando...
O tilintar da louça.
Aquele som tão conhecido, como o de passar de saltos altos em pisos de cerâmica, demonstrava eu não estava sozinho. Meu coração pesou. Minha garganta travou com o peso de palavras que um dia queriam ser ditas, de conversas inteiras travadas no fundo da mente durante banhos inteiros.
Minha mão congelou ao tocar a maçaneta da porta enquanto a imagem de Nama tomando café na sua xícara dourada apunhalava meu imo.
Seus olhos azuis penetraram-me.
— Bom dia — ela comandou, colocando a xícara no lugar. Torradas integrais com abacate amassado. Café sem açúcar, uma colher de creme. A mesma xícara dourada que pertenceu à minha bisavó. O mesmo ritual matutino, o cabelo preso alto em um coque para facilitar o trabalho de cortar pessoas, sem manchar o uniforme branco.
Nama Bennett era uma pessoa. Um ser tão diferente naquele universo que havia sido colocado na minha órbita, e bem ali, ela havia gerado uma supernova. Ela era a criadora de algo, e pelos poderes que ela continha, poderia ser considerado um Deus. Uma geradora de Big Bangs apenas com o poder de palavras.
— Bom dia — eu disse baixinho, não podendo mais me esconder atrás da porta como fazia quando era criança. Corri até a geladeira, colocando mais uma barreira física entre nós: o frio da geladeira não se comparava com a gelidez de seu olhar.
Minha mãe continuou a comer, e eu, a encarar o interior, sem nem mesmo olhar, apenas pensando. Maquinando. Estar na cozinha ao mesmo tempo era um martírio. Gostaria de ter poderes alienígenas para poder entender o que ela estava pensando. Todas as vezes que falávamos, era uma chuva de meteoros.
— Você vai trabalhar hoje?
Fiquei em silêncio, cuidadosamente escolhendo as palavras. Era uma armadilha. Nada vinha de graça naquela casa, nem a primeira refeição do dia. Nem uma pequena pergunta como aquela era desprovida de significado.
— Sim — só pude confirmar.
— Você já viu o que eu mandei para você?
Fechei a geladeira, sem pegar nada.
Fui até o filtro, e peguei um copo de água. Meu celular, na minha mão, trazia as provas cabíveis do crime: os links das bolsas para universidades, os cursos de faculdades diversas, todas mensagens vistas, mas não lidas.
— Dei uma olhada por cima.
— Ah, Jesse...
O tilintar da louça, e os sapatos de salto alto denunciavam que ela tinha terminado a conversa antes mesmo de começá-la. Abaixei o olhar, e tomei minha água. Se mantivesse a boca ocupada, não precisaria falar. E tinha o bônus de engolir as verdadeiras palavras que eu queria dizer.
— Você sabe que as inscrições para o semestre de inverno estão acabando, não sabe? O que está te incomodando tanto? — Ela veio para o meu lado, no balcão, trazendo os pratos para lavar. — Qualquer curso serve, desde que você escolha. Você sabe que dinheiro não é um problema. Temos recursos, e você pode aplicar para bolsas...
— Eu sei — minha voz saiu esganada. — Eu sei. Eu só não tenho interesse, por enquanto. O trabalho toma todo o meu tempo.
O suspiro atingiu a decepção em seu olhar.
— Você deveria arranjar um outro emprego, amor. Tem outro nome quem tira as roupas para sobreviver.
O que responder àquilo? Eu apenas assenti. Nama Bennett se aproximou de mim, e me deu um beijo cálido na testa.
— Tome um banho antes de sair. Tenho que ir. Tenho um plantão daqueles.
Não sei quanto tempo fiquei ali, encarando as ondas da água em meu copo, enquanto o eco dos sapatos de salto dela se distanciavam dentro de mim. A explosão mais forte foi o copo se partindo e os cacos partidos refletiram não somente o reflexo quebrado da minha alma, mas o vazio interior daquela casa.
Um dos cacos passeou perigosamente sobre peles, frio e cósmico.
Meu celular vibrou, o alarme de despertar.
— Droga. — Verifiquei o celular. Tinham duas mensagens. Uma de Kurt, é claro. Essa eu poderia ignorar.
A outra...
Alex: meu modelo preferido, que tipo de café você gosta?
Alex: me avise quando você estiver chegando.
E eu não pude deixar de sorrir. Meu primeiro trabalho naquela manhã seria na turma dele e apesar de não saber exatamente o que ele pretendia com aquela mensagem, era muito revigorante todas as vezes que eu recebia algo dele. Minhas forças se renovavam. Não sabia o que estava acontecendo entre a gente, mas Alex Morris...
Alex Morris não era um rapaz de se jogar fora, não.
Eu juntei os cacos, e fui em direção ao meu quarto, pronto para mais um dia.
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