Capítulo 3 — Uma lista de surpresas
São Paulo, 2023
O percurso da praça Roosevelt até a avenida Paulista era como uma trilha pelo coração noturno de São Paulo. Subindo da praça, o portão do parque Augusta parecia um portal para a ala mais escura da noite ― o acúmulo de árvores se destacava como uma mancha entre uma miríade de condomínios. Mais adiante, Tomás e Victor passaram por bares de todos os tipos, desde velhas padarias de bairro até botecos mais descolados, com sua iluminação baixa e decoração industrial. Das ruazinhas laterais escoava o som de música e de gente, e o cheiro de batatinhas.
Tomás sempre gostou daquela região. Antes de entrar na faculdade, quando suas noites pertenciam ao cursinho preparatório em uma travessa da Paulista, um pouco mais para o lado do MASP, costumava frequentá-la bem mais do que agora. Foi o cenário de vários primeiros encontros, do seu primeiro porre — pelo qual tomou um sermão de horas — e da primeira vez que viu alguém vendendo docinhos batizados.
Seu apego ao lugar explicava um pouco por que andar ao lado daquele cara barulhento, com o cigarro pendendo do canto dos lábios e a jaqueta jogada displicentemente por cima do ombro, causava uma sensação tão familiar. Victor era a personificação da rua Augusta.
— Você não fuma, né? — ele perguntou sem tirar o cigarro da boca, a voz soando meio abafada.
— Não — Tomás respondeu com um sorriso. Victor tinha sua mochila sobre o outro ombro. Tinha feito questão, o que foi gentil. Era realmente uma mochilona pesada, como ele tinha resmungando enquanto a erguia do chão. — Mas não me incomodo se você fumar.
— Que bom. — Ele ergueu o canto dos lábios, tragando, virando o rosto para soltar a fumaça na direção da rua. — Tá com fome?
— Um pouco — admitiu. Tinha bebido os dois coquetéis de barriga vazia. Era o suficiente para ver o mundo com um tanto de detalhes inúteis. — Tem um lugar na quadra de cima que eu amo.
— O meu favorito fica lá também. Mas eu não sei se você gosta de shawarma. Eu aprendi a gostar do de falafel na fase vegetariana do meu melhor amigo… — ele segurou um riso, balançando a cabeça — que durou três semanas.
— Ah, você tá falando do mesmo lugar que eu! — Tomás tinha um tom divertido a mais na voz, parcialmente por culpa da bebida. — Quando eu estudava aqui perto, saía tarde. A minha vó sempre perguntava se eu queria que ela deixasse a janta pronta, mas eu inventava de comer lá alguma coisa pra ela ter um pouco menos de trabalho. — Mordeu o canto do lábio. — Não servia de muita coisa. Ela fazia comida mesmo assim e falava que “lanche de rua não era janta”.
— Então você mora com a sua avó?
— Sim, e você?
— Sozinho. — Victor deu de ombros. O tom foi um pouco sério demais, fazendo com que Tomás não elaborasse outras perguntas, mas chegasse um passo para perto, enlaçando o braço dele com as mãos pequenas.
Vi o espiou pelo canto dos olhos. Tomás era baixo, a cabeça chegando na altura de seu ombro. Não pesava nada. Vi tinha certeza disso mesmo que logicamente nunca o tivesse erguido do chão.
O pequeno comércio de comida árabe não era mais do que uma portinhola estreita com um balcão e uma gôndola onde ficavam expostos vários docinhos. Pediram dois shawarmas — e Vi fez questão de incluir também um docinho de nozes com mel. E de estender a mão na frente e chamar atenção do atendente antes que Tomás fosse capaz de pagar sua parte.
— Eu ia pagar… — ele resmungou, num tom cantado meio bêbado que quase fez Vi rir. — Mas obrigado.
— É só um lanche. Relaxa — respondeu, dando de ombros. — Se sua vó perguntar, fala que foi escolha sua não comer comida. Oh — ele estendeu a mão na direção de Tomás, com a palma para cima, o doce de nozes pousado sobre ela —, pra complementar.
— É tão doce quanto você? — Tomás provocou, rindo quando viu a caretinha que Victor fez, o nariz descascado meio franzido em um desagrado fingido. — Não faz essa cara. Qual é o problema? Caras selvagens não podem ser doces?
— Se meu amigo escuta isso, ele nunca mais ia me deixar em paz — resmungou, jogando a bituca do cigarro antes de morder um pedaço avantajado do lanche.
Tomás intercalava mordidas entre o salgado e o doce, num movimento que Victor acompanhou em silêncio enquanto passavam em meio a baladas barulhentas e calçadas abarrotadas.
— O que foi isso aí? — Apontou com o olhar para uma mancha meio enrugada em sua pele, perto do pulso de Tomás. — Se não for rude demais perguntar.
— Não é. É de nascença. — Ergueu os ombros.
— Porra, cê ganhou na loteria de marcas de nascença, né? — Riu brevemente, tacando no lixo o papel do shawarma que tinha acabado de devorar em poucas mordidas.
— É, foi. Minha vó tem altas teorias sobre isso. — Balançou a cabeça, vendo como ele já tinha terminado de comer o lanche enquanto mal tinha chegado à metade do seu. — Quer mais? Não acho que como tudo.
— Não sou de recusar.
━ • ✿ • ━━
O clima na avenida Paulista era acolhedor. Um misto de vozes, cheiros e sons tomava a calçada na esquina com a Augusta. Perto do metrô, vendedores de milho e churrasquinho dividiam a atenção de um grupo de jovens. Do outro lado da rua, uma pequena feira de artesanatos se espalhava ao longo de alguns metros. Uma moça jovem terminava de recolher os trocados recebidos pelo show de violão e voz que tinha dado ao acúmulo de gente na saída do shopping.
Vi puxou Tomás pela mão quando conseguiu um lugar para se encostar na muretinha de um banco fechado. Tomás não resistiu, se aproximando e deixando que ele envolvesse sua cintura com as mãos.
— Tá bêbado ainda? — Vi perguntou. Uma de suas mãos subiu até o cabelo de Tomás, brincando com sua mecha de um jeito casual que o fez sorrir.
— Não muito. Por quê? Eu pareço? — Arrastou a voz de propósito, se aproveitando para chegar um passo mais perto, entre as coxas de Vi, o peito quase tocando o dele.
— Deixa eu ver. — Vi tocou seu rosto, erguendo-o para si. Apesar das maçãs do rosto coradas e do sorriso, ele parecia bem. Como bônus, ainda teve aqueles olhos nos seus por mais um tempo. — Você tem uns olhos do caralho, sabia?
— Nunca me disseram com essas palavras. — Tomás riu, erguendo a mão para tocar Vi num carinho perto da orelha. — Mas acho que foram as minhas favoritas.
Deve ter usado um tom ainda mais baixinho e arrastado, pela forma como Vi o envolveu nos braços e os girou, encostando-o na mureta ao lado de onde tinha pousado a mochila e a jaqueta. Sentiu a pele do pescoço dele na palma da mão. A aspereza dos cabelos curtinhos fazia cócegas contra os dedos.
— E se eu roubar um beijo em vez de falar mais coisa? — ele perguntou com a voz baixa. Sua mão tinha se apoiado no queixo de Tomás, erguendo seu rosto até o dele. O toque era firme e confiante, porém suave de um jeito gostoso. Tomás mordeu o canto interno do lábio, puxando-o um pouco.
— Você é do tipo que pede? — provocou com um sussurro, tocando a lateral do nariz na dele.
— Só na primeira vez — Vi retrucou, o sorriso se erguendo torto, uma única covinha cavando uma sombra na lateral de seu rosto. — Me responde. — Desceu a mão um pouco, roçando os dedos em seu pescoço. Pareceu satisfeito quando os cabelos mais finos de Tomás se arrepiaram perto da nuca. — Se disser que não, é não. Te deixo no metrô e vou pra casa. — O nariz de Vi se apoiou de volta na lateral do seu. Perto assim, sentia as vibrações de seus lábios quando ele falava. — Você não disse nada, lindo. Quer que eu responda no seu lugar?
— Você nunca fica quieto… — Tomás esboçou um sorriso. Uma das mãos pequenas se prendeu na lateral da blusa de Vi, trazendo-o um pouco mais para perto. Ele era bem maior, cobrindo os arredores como uma muralha particular. Tomás gostava desse detalhe. — Vou ter que te ajudar com isso, lobinho.
Ameaçou tocar os lábios nos dele. A intenção era tudo que Vi esperava para matar a distância. Pendeu o rosto para o lado, encaixando o beijo e liberando passagem para sua língua, arrancando um suspiro de Tomás. A mão enroscada nos cabelos ainda meio arrepiados de sua nuca era o tipo de golpe baixo que aprovava em silêncio, e encorajava, com as pontas curtinhas das unhas roçando a pele atrás de sua orelha.
O beijo de Vi era reconfortante como uma memória querida, antiga e nebulosa. Era intenso o bastante para que tivesse vontade de se afastar para recobrar o fôlego, mas tão envolvente que a falta de ar não bastava para tirá-lo dali.
Ele cheirava a cigarros, sândalo e outra coisa mais quente, como pimenta do reino. Tinha a memória sombreada de uma cascata de cabelos com aquele mesmo cheiro roçando-lhe o pescoço. Uma lembrança deslocada.
— Pss… — Vi o chamou quando rompeu brevemente o contato, descendo a boca até seu maxilar em uma trilha de mordidas delicadas. Tomás tinha um sorriso de aprovação, a mão apertada na curva de seu ombro em um estímulo de resposta. — Você tem cheiro de suco de laranja — brincou, completando: — E tequila.
— Isso é bom? — Tomás perguntou por reflexo. O coração acelerado pelos estímulos bombeava sangue para o rosto.
— É, mas… — Vi continha o sorriso. Segurou Tomás pela nuca num aperto mais firme e então desceu o rosto por seu pescoço, o nariz se roçando em sua pele, antecipando um beijo atrás da orelha. Tomás o arranhou com as pontas das unhas. — O cheiro de canela vem do quê?
— Do meu perfume… — Tomás suspirou, sussurrando a resposta.
— Eu gosto desse ainda mais — Vi respondeu, e o mordeu de leve. Tinha o sorriso confiante estampado na cara quando ergueu a cabeça. Envolveu Tomás num meio abraço e pousou um beijo entre seus cabelos, então outro, logo abaixo do olho. No terceiro, mergulhou de volta em seus lábios, assim que ele os abriu como se esperasse dizer alguma coisa.
— Vi… — Tomás chamou baixo, já convencido a contrair seu nome para uma única sílaba, em um vício paulista. Quase notou como o apelido fazia Vi chegar mais perto.
— Abre um espaço aí, meu. — Um encontrão os interrompeu. Vi buscou a origem com a testa franzida, enquanto protegia Tomás com a lateral do braço. O cara que trombou neles tinha o celular em mãos, a câmera apontada para algo na calçada, que ele filmava sem prestar muita atenção aos arredores.
— Ow! — Vi ergueu a voz e ajeitou o corpo. Era um bom palmo mais alto do que o sujeito e aquela nem era a diferença de estrutura mais relevante. — Se empurrar de novo, vai buscar essa porra aí lá na ciclovia.
O cara encolheu os ombros, afastando um passo para o lado na defensiva antes de se perder no burburinho da avenida. Tomás o encarou com uma caretinha, passando as mãos pelo braço de Vi num pedido mudo para que deixasse para lá.
— Psiu — Tomás chamou baixinho. — Deixa. Vem aqui… — Voltou a roçar os lábios nos dele, atraindo de volta sua atenção até se convencer de que ele tinha parado de encarar.
Tinha quase todos os sentidos dedicados a Vi, mas foi traído pela audição. Talvez fosse mais adequado falar que foi alertado por ela. De algum lugar não longe dali, ouviu o começo de uma música cujas ondulações iniciais tinham a cadência de músicas tipicamente árabes. A voz veio logo em seguida, única e chamativa. Destoava bastante das músicas que se costumava ouvir por ali. Era uma canção saída do final dos anos 1990 nas vozes de Sting e Cheb Mami, informação que só tinha por um importante detalhe: aquela era a música preferida de Lótus, a que ele usava em suas apresentações.
Abriu os olhos na hora, quebrando o beijo sorrateiramente. Tinha dito a Lótus que estaria com a avó. Por quê? Se tivesse apenas dito que sairia sozinho, não haveria problema algum. Não quis correr o risco de magoá-lo e agora corria o de ser pego numa mentira sem propósito.
Nem precisava ter espiado por trás do corpo de Vi para saber que ele estaria ali. Agora via um bom número de celulares voltados para a apresentação que começava. Devia ser isso que o carinha queria gravar, para começo de conversa. Ironicamente, estavam mesmo em um ângulo privilegiado.
Lótus dançava com uma cobra enroscada nos ombros. Era difícil pontuar o que chamava mais atenção na cena: as cores quentes e vivas do animal, as roupas largas e escuras que ele usava ― contrastando com o cinturão de moedinhas douradas ao redor do quadril ― ou aquela expressão superior e zombeteira que ele sustentava, apesar do sorriso, como se não fosse uma criatura daquele mundo, tampouco fizesse questão de ser.
Droga.
Ele estava logo ali.
— Ei — Tomás chamou Vi baixinho, apertando as mãos nos braços dele, usando o tamanho dele para se esconder. Com sorte, Lótus não o veria ali. Tinha muitos olhos sobre ele agora, o que serviria para distraí-lo. — Eu tô com frio. E tá ficando tarde... — Valorizou o tom meio manhoso da própria voz quando se escondeu contra o peito de Vi.
— Quer minha jaqueta? — ele perguntou, apoiando a mão em sua nuca com uma pressão suave.
— Não precisa. — Tomás respondeu, sem se afastar. — Eu preciso ir antes que o metrô feche.
— Tem certeza? — Vi voltou a exibir as covinhas. — Eu moro aqui perto. A gente podia ir pra lá. Eu não ia deixar você passar frio — sussurrou a última parte. E então se inclinou, passando a ponta do nariz por sua orelha. — Vem?
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