O Hall da Conflagração era a moradia oficial do líder Ravi de Farkas. O lugar era quase um pequeno vilarejo dentro da própria cidade, facilmente reconhecível por seus pátios abertos, as opulentas construções horizontais e os telhados de quatro águas cujo tom de azul só se comparava ao das roupas de festa daquela gente. A oeste da entrada principal, a exatos 43 degraus de distância do pátio, ficavam os cômodos privativos de Ravi e Juno, sua esposa, e parecia haver um prazer inquietante nele ao observar qualquer visitante atravessar aquela escadaria, projetada para ter degraus altos que só não eram tão incômodos para os que partilhavam sua estrutura óssea avantajada.
Já os aposentos comuns ficavam na ponta oposta, incluindo a gigantesca cozinha, que já funcionava há vários dias sem descanso, ocupada com os preparativos do banquete para o Festival da Vitória.
― Eles eram mesmo tão assustadores quanto dizem as histórias? ― perguntou um dos novos funcionários da cozinha, tão jovenzinho que suas memórias de Nivaria se mesclavam às lendas do festival.
― Gente da pior espécie ― garantiu um sênior mais próximo, sem tirar os olhos dos docinhos que preparava. ― Cavalgavam Fronteiriços e roubavam crianças para fazer experimentos.
― A minha mãe também contou que quando as pessoas ficavam velhas demais, os nivarianos as faziam sangrar até a morte, preparavam morcelas para dividir entre os jovens e jogavam os corpos dos pobres velhinhos direto no vórtex ― acrescentou uma mocinha, cujo sorriso afetuoso fez o garoto corar. Isso não o impediu de replicar:
― Mas isso é verdade mesmo? ― Ele baixou a voz. Nunca era de bom tom parecer estar defendendo Nivaria. ― Eu digo… É fato que os nivarianos foram um problema para Farkas ― acrescentou rapidamente, a voz quase sumindo logo depois ―, mas o jovem mestre Oz ia casar com o filho do líder Tir, não ia?
― Aquele encantador de monstros… ― A responsável pela cozinha interviu, ciente de que o grupinho parecia mais ocupado com picuinhas do que com o trabalho. ― Se o jovem mestre Oz é um transtorno hoje, imagine naqueles dias, com uma companhia daquelas! E vocês não têm mais com o que se ocupar além da deslealdade de Nivaria?
― O festival é sobre isso, não é? ― o garoto tornou a falar, precisando desviar em seguida do gigantesco maço de rabanetes com que a mulher tentou acertá-lo, o que foi o bastante para que ficasse de bico calado.
As histórias haviam se espalhado sem que Ravi precisasse intervir. Nivaria sempre tivera um status de lenda, repleta de coisas absurdas e tão distante que percorrer a antiga ponte que conectava as duas cidades poderia levar dias.
Apesar dos profundos laços de Ravi com um dos líderes de Nivaria, o vento logo trouxe a Farkas dois alarmantes sussurros: o primeiro, sobre o egoísmo dos nivarianos no que dizia respeito à sua preciosa tecnologia, que se recusavam a dividir com as demais Cidades Flutuantes; o segundo, ainda mais revoltante, tratava dos preparativos para um cerco, um ataque direto a Farkas.
Não foi difícil conseguir que o povo manifestasse suporte à defensiva arquitetada por Ravi. As pessoas de Farkas eram tão orgulhosas da própria fartura e liberdade quanto os lobos que as comandavam.
Sentado diante da mesa de trabalho, com as pernas cruzadas e uma pilha de correspondências por responder, Ravi abria e fechava a mão mecânica, testando os últimos reparos. Sob a luz das dúzias de lanternas de papel alaranjado espalhadas pelo cômodo, o metal quase lembrava carne.
Os dedos tinham parado de ranger ao se movimentar, o que era um alívio. Bastava a dorzinha de cabeça que o acompanhava ultimamente.
― Mande ele entrar, sem enrolação ― grunhiu para o pássaro-engrenagem que acabara de entrar voando, e então pousou a mão sobre o dorso de um dos lobos que lhe fazia companhia. Gostava daquele em especial, com suas longas patas metálicas coladas ao corpo orgânico e o crânio quase tão grande quanto o que usava como adorno. Era um semelhante.
— Pediu pra ver a gente? — Oz irrompeu pela porta do aposento com um sorriso irritante. Yan veio logo atrás, saudando Ravi com uma reverência respeitosa.
— Eu não me lembro de pedir por você.
― Algum problema, mestre Farkas? ― Yan decidiu intervir antes de acabar no meio de uma rinha.
― Eu preciso de uma tintura, um unguento, um cataplasma… Qualquer porcaria farmacêutica que resolva a minha dor de cabeça.
― Um chá certamente vai servir ― Yan respondeu, com cuidado para que o sorriso não fosse nada além de inofensivo.
― E você ― a atenção de Ravi subiu até Oz, ignorando o sorriso presunçoso que o filho continuava a oferecer ―, já que fez questão de vir até aqui, fique e me ajude. Acabo de saber que a Ópera do Fim do Mundo está terminando de atravessar a ponte para participar do festival, e precisamos recebê-los bem. Há anos eles não param em Farkas, e a ocasião é quase tão histórica quanto os dez anos da nossa vitória. O Senhor Instrutor deve se juntar a nós em breve e eu espero, Oz, em nome dos Imortais, que você não me faça passar nenhuma vergonha.
Ignorando a forma como os olhos do filho se reviraram em escárnio, voltou-se para Yan, falando com um tom mais brando:
― Vou soar repetitivo, mas esconda essas coisinhas ― apontou para as orelhas dele ― quando for para a rua, rapaz. Ninguém seria tolo de machucar o meu curandeiro, mas eu prefiro evitar castigos em dia de festa.
— Eu agradeço a preocupação — Yan respondeu, curvando o corpo levemente para frente, buscando em seguida uma das portas laterais para sair.
― Ravi, querido, quem você está mandando se esconder em uma ocasião tão alegre?
A sala foi preenchida por aquela entonação divertida, quase coquete. Os lobos ao lado de Ravi derraparam discretamente nas próprias patas e ensaiaram um rosnado que o líder Farkas silenciou com um olhar.
Parada na soleira da porta, a criatura recém-chegada vestia-se com tecidos fluidos que lhe desenhavam a silhueta gorda. Também trazia flores penduradas ao cabelo em uma indecência de cores. Uma delas, uma camélia-sangrenta, tinha pétalas brancas salpicadas de vermelho escuro que evidenciavam o tom rosa profundo dos cabelos, o mesmo que o vórtex adquiria em certas ocasiões. Duas cobras douradas se enroscavam em seus ombros, pacíficas, e pareciam estar ali principalmente para destacar o verde de seus olhos, de pupilas reptilianas.
― Senhor Instrutor ― Ravi saudou em voz alta, ficando de pé e abrindo os braços em uma saudação expansiva. ― Meu querido amigo Kuí, chegou antes do que eu esperava.
― Não diga isso, bobinho ― ele respondeu, fingindo não notar que os lobos ao redor de Ravi se encolhiam um pouquinho com os seus passos. ― Eu sempre chego na hora certa.
Continua…
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