A luz amarelada do Costela fazia a pele de Victor parecer mais quente. Tinha uma pequena sombra no meio da bochecha, enfatizando a covinha de um sorriso torto quando passou pelas pequenas mesas acumuladas na calçada e na entrada do bar.
Eram poucas, assim como o espaço era limitado e levemente sufocante, ainda mais numa sexta àquela hora, quando pelo menos dois terços da clientela nem tinha onde sentar e ficava perambulando pelos arredores.
Victor gostava do ambiente. Ali podia ter o cheiro de cigarro no cabelo, uma longneck na mão e falar alto. Não havia vizinhos como dona Rita para resmungar sobre as coisas. Costumava colar no lugar algumas vezes, sem dia certo. Quando desse na telha, o que era frequente — e Yue teria prazer em jogar isso na sua cara, em duas ou três palavras, no máximo, cuidadosamente selecionadas.
Somente um detalhe separava o Costela de qualquer outra birosca nos arredores da Roosevelt, um detalhe crucial.
— Ô, Ratão! — gritou do meio do bar, erguendo a mão e acenando em direção ao barbudo atrás do bar. — A breja tá trincando hoje, né?
— Hoje e sempre, colega. Te desço uma? — ele respondeu, puxando uma garrafa da geladeira e abrindo-a na velocidade de uma piscada.
— Já me desce duas! Eu vou virar a primeira numa golada mesmo que cê tá ligado.
Abriu caminho por entre as pessoas com certa dificuldade. Não era fácil ser furtivo e ágil tendo quase o tamanho da porta. Dependendo do lugar, ainda tinha isso para prestar atenção: a chance de esbarrar a cabeça em alguma luminária mais baixa. Ali não. Era outro ponto a favor do Costela.
Quando chegou ao balcão, Rato já o esperava com as duas cervejas.
— Tá na mão, ô vira-lata. Quero ver se vai virar uma na golada mesmo. Manda aí! — ele riu.
— Meu sobrenome é Lobo, cara. O que quer dizer que eu não sou um vira-lata… — Victor virou a primeira garrafinha, matando o conteúdo em duas goladas longas antes de bater o vidro vazio de volta no balcão com um sorriso. — Eu sou selvagem.
— Eu agradeço se não espantar meus outros clientes. Isso aqui é um boteco de família.
A frase soou como uma brincadeira, mas Vi notou como os olhos de Rato miraram diretamente uma presença discreta ao seu lado.
Oh.
Não tinha notado aquela pessoinha antes, mas notava agora.
— Desculpa a cena, moça. — Ele se apoiou no balcão do bar, os braços cruzados apoiados sobre o tampo. E deu uma jogadinha de cabeça. Se tivesse cabelo mais comprido, teria feito ao menos o topete revoar. — Espero não ter atrapalhado seu drink.
A pessoa se virou, mirando-o com um par de grandes olhos cor de âmbar, num tom quase dourado que Vi nunca tinha visto. Ficavam bem bonitos na iluminação quente.
— Não atrapalhou… — a pessoa falou baixo, com a voz meio arrastada e pontuada por um sorriso discreto. — Mas você pode me pagar outro drink se fizer bem pra sua consciência.
Vi franziu a testa levemente. E reparou um pouco melhor na silhueta. O rosto era delicado, com os lábios bem delineados e o cabelo castanho contrastando com uma mechinha loira. Usava roupas bem neutras, e talvez por isso não tivesse reparado em sua presença antes, com ele de costas. Agora, de frente, não reparar era bem mais complicado.
— Viu… — Vi continuou, se interrompendo para assoviar para Ratão, fazendo sinal para que trouxesse outro copo daquele drink bonitinho que chutaria ser um tequila sunrise. — Eu chamei de “moça” no reflexo. Errei ou acertei?
— Errou, mas não tem problema. Pode me chamar de moço mesmo, que eu prefiro. — Ele pegou o copo pela metade, erguendo-o do balcão para beber um gole. Os olhos voltaram logo para Vi. — Ou de Tomás. E você?
— Eu sou homem — respondeu, segurando o riso.
— Fácil de notar. Esse é o seu nome também? — Tomás se apoiou no balcão, a mão esquerda apoiando a lateral do rosto. — É Homem Lobo, então?
Estava no meio do gole quando foi atingido por essa e não soube segurar o riso. Precisou largar a cerveja e alcançar um guardanapo antes de pensar no que responder. Ele era espirituoso. Parecia ter dado sorte na companhia de bar naquela noite.
— Quase isso. — Voltou a erguer a longneck, tocando-a no copo de Tomás em um tim-tim discreto. — Victor. E o Lobo, que você já decorou.
— Você não parece tentar esconder que é um — Tomás comentou, apontando delicadamente para o pedaço da tatuagem que ficou à mostra enquanto Vi deslizava a jaqueta pelos braços para pendurá-la na banqueta.
O lobo tatuado ali era grande, em perfil, o focinho e os dentes aparecendo pela gola frouxa da regata. No braço, ainda era possível ver sua cauda peluda e um pedaço da lua cheia ao fundo.
— Victor… — Tomás chamou baixo, se inclinando como se fosse contar um segredo. — Você não é um lobisomem discreto.
— Não sou… — Victor respondeu no mesmo tom, usando a voz baixa como desculpa para se aproximar um pouco mais. — Você fala sempre baixo assim? Eu vou precisar ficar perto, então, pra você não ter que repetir.
— A gente mal começou a conversa e você já tá falando baixo por mim? — Tomás bebeu outro gole. O olhar em Vi era interessado e direto, apesar do tom de voz delicado que o acompanhava. — Isso não foi muito selvagem da sua parte, sr. Lobo.
Você quer que eu seja?, Victor pensou, mas mordeu a língua. Cedo demais. Não queria correr o risco de assustar aquela criaturinha interessante.
— Por que nunca te vi aqui antes? — decidiu perguntar. Era um caminho mais seguro a percorrer.
Viu quando Rato trouxe o copo novo de drink alaranjado com cheiro cítrico. Sim, definitivamente estava certo quanto à bebida. Tocou a lateral do copo, deslizando-o pelo balcão até Tomás bem na hora em que ele bebia o último gole do copo anterior.
— Pra você — pontuou, exibindo a covinha.
— Obrigado — Tomás não demorou a responder, assim como não demorou a emendar o primeiro gole do novo copo. — E você não me vê aqui porque nem era pra eu estar aqui agora. Eu ia pra faculdade, mas minha aula não rolou.
— Um universitário, então? Isso explica a mochilona — Vi apontou a gorda mochila aos pés da banqueta. — Deixa eu adivinhar… — Ele analisou Tomás com um longo olhar contemplativo, da mecha perto da franja até os pés balançando no ar por conta da banqueta alta. — Design?
― Por quê? ― Tomás ajeitou os óculos de armação redonda e fixou os olhos em Vi de um jeito desconcertante demais para ser acidental. Quase parecia um desafio. ― Pelo meu estilo único de jeans e camiseta?
― A mecha é estilosa ― Vi contornou, aproximando a mão até tocar as costas dos dedos no cabelo dele. Tomás não se afastou. Era uma brecha.
― Eu nasci com ela.
― Sério? Então você nasceu com estilo, viu? Suas roupas não fazem nem diferença. ― Esperou alguma reação. Um riso, um comentário ácido, até mesmo um chega-pra-lá depois de ter falado tão diretamente sobre suas roupas, mas Tomás apenas continuava a encará-lo em silêncio, o que forçou Vi a pigarrear e a afastar a mão antes de retomar o antigo assunto: ― Não, sério. O que você estuda?
― Medicina ― Tomás bebericou o drink. ― Não combina muito com minha mecha estilosa, né? ― Franziu o nariz de leve em uma caretinha descontraída. ― Você faz o quê?
― Muamba.
― Oi? ― Tomás tinha arqueado as sobrancelhas em um interesse surpreso que fez Vi rir.
― Que foi? Não combina com o meu estilo? ― Ele ergueu a garrafinha, matando a cerveja em um gole mais longo antes de acenar para Rato por mais uma.
― Combina perfeitamente. De verdade? Que tipo de muamba? ― Inclinou-se em um novo gesto de segredo fingido. ― Maconha?
― Drogas mais pesadas ― Vi sorriu, deixando as covinhas aparecerem. ― Instrumentos musicais. Aqui. ― Ele sacou o celular, abrindo o perfil da loja no Instagram. A maioria dos posts eram fotos bastante aceitáveis tiradas dentro de um quarto, outros eram vídeos curtos de Vi exibindo alguma guitarra. ― Essa é a LoboMuamba, caso você precise de algum instrumento no futuro.
Tomás pôs o drink de lado para pegar o celular. Deixou que ele visse quando clicou no botão de seguir e então abriu as mensagens, deixando uma bem na sua frente: “e se eu precisar de companhia, você tem um perfil pra isso também?”
Vi riu, passando a mão pela cabeça e arrepiando os fios curtinhos de cabelo preto. Ajeitou o celular nas mãos, escondendo a tela de Tomás enquanto digitava: “Tenho outras formas de contato pra isso, lindo. Só preciso do seu número.”
Não demorou para receber um número na mesma conversa. E sorriu, satisfeito. Um seguidor e um contatinho ao mesmo tempo. Realmente tinha tirado a sorte grande naquela noite.
Ainda olhava o celular quando sentiu o toque na lateral do rosto. Tomás tinha a mão fria de quem segurava um copo de bebida há pouco tempo e dedos finos e delicados, de pele macia. Vi voltou sua atenção para ele, encontrando seus olhos mais uma vez.
― Você tem um roxinho aqui ― Tomás comentou, o polegar perto do queixo de Vi, os olhos apertadinhos numa concentração séria que era adorável. ― Parece recente. Foi algum tipo de briga, sr. Lobo Selvagem?
― Um tipo, certamente. Me lembre de falar sobre isso depois. ― O sorriso se levantou novamente, galante, enquanto Vi buscava no bolso o maço de cigarros, desistindo da ideia quase em seguida. ― Mas tudo bem, porque pelo menos eu tenho um médico pra cuidar de mim desta vez. Quer dar uma volta?
Continua…
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