O que era uma verdade inegável, mas ao menos eu sabia o caminho para aquela aula em específico. Era do outro lado da faculdade, quase um universo de distância para que eu atravessasse, mas eu o fazia de bom grado. Era meu dever fazer com que Dave chegasse às aulas bem e em segurança. Ao menos, foi essa a tarefa que eu mesmo me dei. Fazia há tanto tempo que não conhecia diferente.
Meus pensamentos me ocuparam por todo o caminho até a sala de desenho número nove. Eu não sabia o motivo dela ser numerada daquela maneira, já que não havia nove salas de desenho naquela universidade, mas aquela era especial. Por quê? Aquela era a única sala com o mínimo de aquecimento decente. E aquilo importava muito na aula em questão, especialmente com o frio de Novembro ameaçando a tornar-se inverno. Em breve, todo aquele campo em que eu atravessava seria tomado pela neve branca, e seria muito mais difícil a travessia. Mas a beleza da neve, das geadas, e do ar frio não me escapavam. Eu amava o inverno, apesar da primavera ser a minha estação preferida. Era a expectativa de uma época mais doce estar lhe esperando na esquina.
Eu cheguei ao prédio, e algumas pessoas estavam fumando na entrada. A urgência me atingiu, mas me contive. Já estava muito atrasado, e abrir a carteira nunca era apenas para um ou dois cigarros. A ansiedade os consumia com voracidade.
E eu simplesmente queria chegar logo.
Queria voltar para Dave, e garantir que estivesse bem. Quando não estávamos juntos, era um fator preocupante em minha mente, em horríveis espirais. Não era exatamente saudável, mas mesmo assim...
Eu abri a porta, e entrei com a cabeça baixa, esperando que o professor não me notasse. Difícil quando você era quase maior do que a própria porta.
— Morris, bom que você se juntou a nós; pegue um cavalo e vá desenhar.
— Certo… — Tentei completar meu pensamento, tirando meu casaco quando o ar quente me atingiu, já que minha furtividade falhou, mas assim que coloquei os olhos no modelo vivo, eu parei.
Eu já dissertei bastante sobre primeiros encontros, não foi? O que falar então de segundos olhares, especialmente quando a pessoa em questão estava nua em pelo em um palco? Não era uma situação estranha, dada a natureza da aula: o modelo vivo era você, Jesse, e estava plenamente concentrado, olhando em linha reta, sentado em cima do tecido vagabundo que a faculdade providenciava aos modelos e parecia, em geral, desconfortável.
Podia ser qualquer pessoa ali. Eu tinha certeza de que era o “meu” Jesse por três motivos: o ferimento no rosto, que continuava roxo e parecia um pouco pior na luz intensa do palco; a tatuagem de hortênsias em suas costas; e, derradeiramente, o modo como me encarou ao me ver entrar na sala.
É, você me reconhecia.
Prontamente voltou a encarar o nada, voltando à pose original.
— Morris, vai ficar igual a peixe morto aí? Vá se arrumar!
Murmurando uma desculpa apressada, fui em direção ao montante de madeira e peguei um suporte, deixando minhas coisas em cima de uma das cadeiras pretas apressadamente, com o coração subitamente acelerado. Como eu deveria agir? Era mesmo você ali em cima do palco? Dirigi um esgar de volta, espiando. Era mesmo você. Não era um sonho. Belisquei-me apenas para garantir.
Olhei de novo.
Agora eu tinha um problema.
Como ia ser capaz de continuar com a aula, desenhar seu corpo nu?!
***
UM PEQUENO INTERLÚDIO DO FUTURO:
Naquela época, não parecia nada.
Naquela época, parecia Destino.
***
Meu impasse foi resolvido pelo professor, que novamente me chamou a atenção, e eu me instalei no fundo da sala, mas eu não desenhei. Tentei ocupar a maior parte das páginas com alguns exercícios de alongamentos. Nunca desenhei tantos círculos. Fiz linhas, curvas, jogos da velha.
Tudo para evitar de olhar o pecado à minha frente.
Você parecia fazer de propósito. Todas as suas poses pareciam sensuais. Quase o detestei imediatamente. Tentava ao máximo não olhar, mas era quase impossível. Uma tarefa hercúlea. Era como se todo o meu ser fosse atraído, e tentei meu máximo me comportar para não sair e perguntar a ele como ele estava.
Droga, eu tinha passado a noite com você! Tinha chorado em minhas costas!
Queria saber o motivo de ter saído de fininho, sem falar nada. Agora, vários motivos me vinham à mente: poderia ter trabalho mais cedo, não é? Aquela podia não ser sua primeira aula. Eu não sabia qual era o cronograma de aulas da universidade (francamente, eu mal acompanhava o cronograma do meu próprio curso), mas não devia ser modelo apenas para aquela aula em específico. Era um milagre ter aparecido apenas a essa altura do curso em andamento. Estávamos em Novembro. Era mais da metade do semestre.
Seria uma coincidência muito fodida…
Ou o Acaso? Parecia que eu O tinha invocado.
De qualquer sorte, eu senti o chute da bunda do Destino. Suspirei, e me dei por vencido. Eu havia jogado com a Sorte, não era? Havia dito aquilo, e não podia voltar atrás. O que quer que acontecesse daqui para frente, seria sua escolha, Jesse, e que eu fosse levado por aquela correnteza.
Levantei meus olhos por um momento, em um breve intervalo entre as poses, e mandei uma mensagem para Dave.
Alex: Você não vai acreditar no que acabou de acontecer.
Quando o intervalo acabou, voltei a desenhar, mas não me concentrei nem um pouco no que era passado na aula. Ao invés disso, me concentrei nas suas formas, Jesse, e nas memórias da noite anterior. Meu carvão passeou preguiçosamente sobre o papel, desenhando, traçando, um músculo ali, nos seus bíceps avantajados, a tatuagem enigmática de hortênsias, os olhos marcantes…
Nos encaramos.
— Ah… — eu quis dizer algo. Era como se houvesse apenas nós dois na sala, e não uma turma inteira de 26 alunos, meus colegas do curso de Ilustração. Quando você me encarou, eu soube que…
Um som alto irrompeu, e eu soube que estava perdido quando suas sobrancelhas se abaixaram, incomodado. Era meu toque, e eu sabia que era o meu, porque havia selecionado aquela música em especial apenas para uma pessoa.
Dave.
Merda.
— Alô? Dave, o que aconteceu? — Atender ao telefone foi algo automático. Eu precisava atender. A ansiedade subiu como uma flecha à boca do meu estômago, e eu o senti revirar. O que aconteceu? Por que ele me ligou? O que era tão urgente para ele me ligar no meio das nossas aulas?
— Ei! — ouvi a sua voz pela primeira vez naquele dia. — Sem telefones!
— Morris, você sabe disso. Não pode usar telefones durante a aula, enquanto o modelo está nu — meu professor, o sr. Harris, ralhou. Ele era um homem sério, careca, mas muito bondoso. Para ralhar conosco era necessário muito para tirar-lhe do sério. — Vá atender lá fora.
— Desculpe — murmurei, e corri porta afora. Apenas ouvia a voz assustada de Dave do outro lado da linha, sem compreender direito o que ele me falava. Assim que consegui um lugar silencioso, longe das pessoas, repeti minha pergunta. — Dave, o que aconteceu?
A voz dele saiu baixa e um pouco áspera, mas audível o suficiente para que minha preocupação pudesse se aquietar um pouco.
— No que eu não vou acreditar?
Eu suspirei.
— Dave…
— Ah, você atiçou a minha curiosidade. Vamos lá, estou esperando!
— Você não está em aula?
Ouvi o silêncio vindo do microfone, e eu soube que tinha atingido em cheio. Sentimentos que eu conhecia muito bem o nome, mas que eu frequentemente enfiava de qualquer jeito dentro de uma caixinha dentro de mim, para não lidar com eles, ameaçaram aflorar. A caixa de litígio sendo aberta.
Eu não podia lidar com isso agora.
— Ah, Dave… — suspirei. O que eu iria fazer? O certo era ir até ele, mas eu ainda queria falar com você, Jesse. Eu não queria largar tudo e ir até meu amigo. Sem falar que eu não podia faltar muito mais aulas. Eu já estava na mira dos meus professores para cortarem a minha bolsa. Tinha de manter o bom exemplo. Só que… — Quer que eu vá para aí?
— Não… — a voz dele saiu baixa. Eu sabia que ele não estava bem. Aquilo me angustiou. Droga. Não havia notado os sinais de novo. Merda. — Eu tô bem. Sério. Termine sua aula, e depois conversamos.
— Mesmo?
— Sim. Quero aproveitar a brisa de outono — ele riu.
— Se você diz… Vou indo, e te encontro logo depois. Mais rápido que um meteoro.
— Obrigado.
E ele desligou a ligação, me deixando ali, sem chão.
O que eu poderia fazer?
O que eu devia fazer?
Eram duas perguntas cujas respostas nunca teria.
***
Voltei para a sala, e fiquei em silêncio o resto do tempo, esperando. Estava claro que você não mais iria me dirigir o olhar, e pelo modo como me ignorava, estava determinado a sair correndo dali quando a aula se findasse.
Era uma pena que eu estava pronto para acabar com seus planos.
Esperei para dar o bote quando o alarme soasse. Meus colegas começaram a arrumar as coisas, e a conversa rolava solta. Eu vi o professor responder a dúvida de alguns alunos e arrumar seus materiais para sair, enquanto eu vestia meu casaco e fingia estar muito interessado no meu celular. Em realidade, meu olhar ia de esguelha para a figura solitária no palanque, que se levantou, ainda nua, indo em direção a um pequeno amontoado de roupas em uma cadeira preta de armar, pegando-as, parecendo distraído. Reconheci a jaqueta vermelha do dia anterior, assim como algumas das roupas. Quando você foi embora na noite anterior, deixou as roupas que eu emprestara arrumadas em cima da cômoda, provando que eu não tive uma alucinação.
Nem que você era um fantasma.
A cada vez mais você se tornava tangível, próximo de mim.
Meu coração batia forte, como se eu fosse fazer alguma travessura. Mas era um plano muito arriscado, porque eu não sabia qual seria sua reação; eu apenas queria…
O que eu queria?
Eu não sabia.
Mas eu era apenas uma peça naquele xadrez do Destino, então iria agir de acordo.
Esperei o professor ir embora, assim como o restante dos meus colegas. Apenas você permaneceu, colocando sua roupa, a jaqueta vermelha por cima de tudo. Céus. E pensar que eu havia visto tudo…
Tentei não focar nisso.
(Ao menos não naquele momento. Eu tinha alguns blocos de desenho em casa, afinal. Ficaria inspirado por dias.)
— Jesse?
Ao ouvir o som do seu nome, você se virou, assustado. Os olhos azuis se arregalaram ao me reconhecer, mas não havia nada do garoto assustado da noite anterior. Ao contrário, lá estava a mesma fera ferida que eu encontrara na ponte. As garras prontas para atacar.
— O que você quer?
Bem, hora de rolar por carisma.
— Você está melhor?
Você olhou para mim, como se não soubesse o que responder. Era uma pergunta muito carregada de significados, então não a respondeu diretamente.
— Você disse que não se importava.
É, aquilo era verdade. Ou ao menos, eu tentava.
— Bem, você saiu da minha casa sem falar nada…
— Você preferia que eu ficasse?
Não que eu esperasse um café da manhã regado a mais silêncios, mas eu realmente não sabia o que esperar. Eu só… Não sei. Eu não sabia o que fazer em relação a tudo. Eu queria fazer muito mais por você.
Se me permitisse.
— Eu tinha outra aula antes dessa. — Deu de ombros. — Não é da sua conta para onde eu vou ou deixo de ir.
— Isso é verdade. — Eu cocei a cabeça, embaraçando ainda mais meus fios vermelhos. — Mas… talvez eu gostaria que fosse.
Você se virou, erguendo uma sobrancelha, mas parecia decidido a não me dar ouvidos. Terminou de calçar os tênis xadrez e deu meia volta por mim, mas eu o segurei pelo braço.
— Olha, possa ser que eu esteja me intrometendo demais… — comecei, meu tom um pouco desesperado. — Eu só queria saber se você estava melhor.
— Estou. Pode me largar.
Fiz como foi dito, mas você parou para me ouvir. Era uma chance.
Eu não ia desperdiçá-la.
— Olhe, eu acho que começamos com um pé esquerdo. Eu apenas queria pedir desculpas pelo que aconteceu na aula, para começar.
Ele suspirou.
— Seu nome é Alex, não é?
— Sim.
— Alex, não sou um projeto de caridade.
Como era orgulhoso.
— Eu sei, eu sei. Deixe-me explicar melhor… Eu não sei pelo que você está passando, quais problemas está enfrentando. — Apontei para o ferimento no rosto, o qual você levou a mão instintivamente. — Eu só sei que às vezes uma pessoa precisa de um refúgio para ir, de vez em quando.
Você ficou em silêncio.
— Eu só queria dizer que, ao invés de ir para aquela ponte, você pode me ligar, a qualquer hora do dia ou da noite. Eu vou atender.
Estendi um fragmento de papel, no qual havia apressadamente anotado meu número de telefone.
Você não o pegou. Apenas o encarou, como se fosse dado algo profano.
— Você não pode fazer esse tipo de promessa.
— Eu normalmente cumpro as promessas que faço. Palavra de escoteiro. — Pisquei divertido.
— Não posso aceitar isso — disse, incerto. Seus olhos não deixavam o papel, mas ele não se virou para pegá-lo.
— Bem, vou deixar aqui em cima da mesa — eu arrisquei, colocando-o em cima da mesa do professor, bem visível para ambos. — Se você vai levar, ou se alguém vai jogar fora, vamos deixar a seu encargo. Apenas… não fique sozinho, Jesse.
De novo aquele silêncio, mas eu fiz a minha tentativa. Estava na hora de ir.
Alguém precisava de mim, também.
— Preciso ir. Espero, de coração, que você fique bem, Jesse.
E o deixei ali, naquela sala aquecida, partindo em direção à minha função principal.
***
Não foi difícil achar Dave. Nunca era. Era só procurar um local com árvores, ou o local com o menor número de pessoas. Achei-o em um canto da praça principal, escondido entre os arbustos, nas mãos uma caneta enquanto escrevia em frenesi; quando me viu, levantou a cabeça apenas o suficiente para que eu visse que chorava.
Ah, Dave.
Ele havia melhorado tanto. Mas...
— Dave… — murmurei, apenas me sentando ao seu lado na mureta, compreendendo tudo. Eu não fazia perguntas.
Apenas o abracei, e deixei que despejasse seus sentimentos em mim.
Amanhã seria melhor, eu esperava.
Eu rezava.
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