Com suspiro de alívio, sinalizo rapidamente para os guardas, e começo a virar-me. Mas Hector surge ao meu lado e, com floreio, estende a mão esquerda diante de meu rosto, revelando um chocolate em formato de botão de rosa.
— Aceite este sagrado elixir como prova de minha inabalável estima e lealdade — continua na mesma teatralidade, exatamente como um príncipe saído dos contos românticos inventados por Axl.
Apesar das bochechas doloridas, meu sorriso se alarga pela brincadeira. Mas principalmente pelo chocolate. Graças aos protocolos, nunca consigo comer doces em meus aniversários.
Agradeço e, sem perder tempo, dou logo uma mordida. Quase choro de emoção quando o recheio trufado preenche minha boca, e levo uma mão à bochecha.
— É a primeira vez que a vejo sorrir de verdade essa noite, sabia?
Encolho um ombro para o comentário, ocupada apreciando minha trufa.
— Acho que passarei o resto da noite trazendo chocolates para você…
Me viro para ele de imediato, sorrindo — pronta a apoiar a melhor ideia de sua vida — porém, as palavras se perdem. Com a cabeça levemente inclinada e uma mão no bolso do terno, Hector me observa numa serenidade contemplativa que me desconcerta mais do que o assombro de mais cedo.
Desvio o olhar com um calor súbito queimando o caminho de meu peito até a face.
— Faça isso. Mas agora precisamos ir.
Hector prontamente estende a mão, que aceito. Ele me puxa com delicadeza, mas, após tanto tempo sentada, além da saia volumosa, quase trombo contra seu ombro.
— Está bem? — indaga com um risinho ao me firmar. E, com meu salto de dez centímetros, esse sorriso fica bem na linha de meus olhos.
Desvio o rosto efervescente o puxando para que fique à minha esquerda.
— Fique sempre desse lado, por favor — desconverso.
— Pensei que não tivesse lido o capítulo… tem protocolo até para o lado que devo ficar? — Ele franze a testa, divertido, mas faz o que peço.
— Não, esse acabei de inventar. Se chama “Precaução”. — Ergo a mão esquerda, indicando o pequeno ferimento encoberto com curativo adesivo.
— Mais alguma regra de vital importância que preciso saber? — replica, com pontada de ironia e nervosismo ao me oferecer o braço dobrado.
Jogo a trança rebuscada para trás e então seguro seu braço com força. Meu estômago se aperta em ansiedade quando descemos do estrado rumo à pior parte da noite.
— Várias. Mas tudo pode ser resumido em: “Não Fazer Nada Que Possa Render Um Sermão de Thereezee”.
— Respirar é permitido?
— Se for a mais de dez metros dela, sim.
Hector bufa uma risada.
— Acredita que até agora ela não me repreendeu nenhuma vez? É um recorde.
— Hoje ela está supervisionando as garotas recém-chegadas na corte. Não comemore tão cedo — murmuro. Sentindo alfinetadas em nossa direção, encontro a poucos metros um punhado de nobres nos lançando olhadelas transbordando curiosidade e… um algo mais que me faz trincar os dentes por trás do sorriso. — Quando esteve circulando sozinho, alguém se aproximou para se apresentar?
Embora agora seja “noivo da princesa”, não pode ele mesmo ir se apresentando às pessoas. Na hierarquia mesquinha da corte, Hector ainda é filho de um barão por título concedido a menos de uma geração completa. Isso, na visão de alguns nobres mais “puros (esnobes)”, é o mesmo que ser plebeu.
Hector encolhe um ombro, despreocupado, e vai contando sobre os poucos com quem conversou, até que:
— … também falei com uns dois de Bérthia que estavam com meu pai-
— Seu pai está aqui? — Viro o rosto para ele.
— Ele estava do meu lado antes do retrato. Não viu? — surpreende-se. Nego com a cabeça, não querendo entrar em detalhes do porquê não reparei. — Em algum momento vamos encontrar com ele pelo salão, de qualquer modo.
— Mais alguma coisa interessante durante sua liberdade?
Hector bufa.
— Não diria que interessante… Tenho a sensação de que seu ex-namorado fica me seguindo de longe, igual encosto. Acha que ele pode dar problema?
— Gustav não se garante numa briga e você é maior. — Dispenso a ideia ridícula com a mão. Hector ainda parece cético, mas acaba por dar de ombros e complementa sorrindo.
— Além disso, perto da mesa de doces, fui abordado por três garotas de… não sei, quinze anos?… elas queriam saber quando começou “nosso romance”.
— Nosso o quê? — engasgo. — O que respondeu?
— Saí correndo.
— Não fez isso… — Balanço a cabeça entre a incredulidade e a vontade de rir.
— Bem, não exatamente… — ele admite, o sorrisinho enviesado marcando uma lua crescente. — Disse que somos amigos de infância e, quando elas estavam ocupadas fantasiando histórias dignas do Alex, peguei um doce e saí bastante rápido.
Contenho uma risada. Mas, quando absorvo o que ele acabou de dizer, uma ideia me ocorre num estalo e sou incapaz de conter o sorriso que se alarga, espontâneo.
— Isso pode ser uma diversão inesperada para hoje — comento, quase balançando o braço de Hector com a onda de entusiasmo, por mais bobo que seja. Ele ergue as sobrancelhas, aguardando explicações dividido entre o humor e a cautela. — Pensei que a essa altura meus pais já tivessem esclarecido sobre o noivado… ou que alguém mais velho lembrasse do Tratado. Mas, ao que parece, ainda não aconteceu.
— Sim, e…? — Hector gira a outra mão com dois anéis dourados.
— Quando perguntarem, diremos que somos amigos de infância. Só isso.
— Por esse sorriso maníaco, esperava algo bem pior. — Hector suspira com alívio tão exagerado que o acerto uma leve cotovelada.
— Concorda ou não?
— Claro que sim. Mas não vão descobrir de qualquer jeito?
— Ah, eles vão. Só que não será por nós. — Encolho os ombros. — É o mesmo de quando você mudou o anúncio. Não estamos fingindo nada, só… escolhendo divulgar uma parte da verdade que não envolve decisões de terceiros.
— Não estamos fingindo nada, certo… — Ele assente devagar, cauteloso. — Mas ainda vão supor mais do que dissermos. Ficará bem com isso?
— Nada a que já não esteja acostumada — digo, com outro encolher de ombros, embora o sorriso tropece numa careta ao antever a nova onda de boatos.
— Tem certeza? — Quando confirmo, sua seriedade se desfaz num sorriso implicante e acrescenta: — Ontem estavam especulando sobre você estar num triângulo amoroso entre Escórpio e seu ex-namorado… Com a adição do noivado, não duvido que até o fim da noite comecem a especular se você abrirá um harém.
— Mais fácil eu abrir um ringue de luta do que um harém — bufo.
Ele dá uma curta gargalhada, a malícia divertida cintilando em suas íris.
— É perfeitamente possível abrir os dois num mesmo lugar, sabia?
Abro e fecho a boca por uns segundos, o rosto esbraseando.
— Não cansa de ser ridículo? — rebato, sem conseguir pensar em resposta melhor.
— Não me exige esforço suficiente para deixar cansado.
Aperto os lábios e balanço a cabeça, não querendo rir da réplica.
Então noto que a risada de Hector atraiu mais olhares para nós… e que ainda estamos próximos do estrado.
Solto o ar, exasperada, e realoco o sorriso forçado.
— Se continuarmos aqui, Thereezee vai farejar que não estou cumprindo meu dever — digo, puxando Hector comigo até o grupo mais próximo de convidados.
Tento ser a perfeita anfitriã, conversando as amenidades pré-estabelecidas pelos protocolos… Mas, quem iria imaginar: ninguém segue o roteiro dos ensaios.
Com Hector ao meu lado, é quase fácil esquecer o peso da armadura. O dever parece nossos jogos de infância, enfrentando desafios em dupla. Após um tempo, até me acostumo a dizer “noivo” sem titubear — se torna apenas um sinônimo para “amigo”.
E mesmo quando os convidados não se contentam com a resposta simplista de sermos amigos de infância — não com um pedido tão romântico — e imploram por mais detalhes, nos divertimos em dar respostas evasivas sorrindo como dois sonsos. Então, no meio do caminho entre um grupinho e outro, preciso exercer todo meu autocontrole quando Hector sussurra imitando os comentários mais ridículos que escutamos.
Mas esses momentos transcorrem num piscar de olhos em comparação aos minutos em que ele precisa circular.
Basta Hector se afastar que os mais detestáveis do salão brotam em meu caminho como fungos, de tal modo que não tenho escolha a não ser cumprimentá-los. E conheço bem demais essa gente para saber que não é apenas azar.
Cerro os dentes por trás do sorriso costurado e tento ser tão cordial quanto possível — mesmo com aqueles que, por conta de uma gotícula de sangue compartilhado, acreditam possuir intimidade para palpitar em qualquer aspecto de minha vida ou segurar minha mão… Sem mencionar os desavergonhados que flertam.
Os fios de tensão da armadura vão se desgastando junto a minha paciência.
Uns cinco se rompem de uma vez quando tento novamente dispensar uma baronesa que agarra logo minha mão esquerda enquanto destila “apenas sua opinião”. Nenhuma das respostas educadas funcionou, então inspiro fundo, pronta a ser mais direta, quando ela repentinamente se despede.
Supondo o motivo, e sentindo uma nova aproximação, suspiro ao me virar.
— Espero que dessa vez tenha trazido-
Mordo a língua ao me deparar com Gustav.
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