— Está bem? — mamãe sussurra, tocando meu ombro direito. Balanço a cabeça num gesto vago; meus sentimentos são um enxame de afiados pontos de interrogação. Mamãe suspira e desliza de leve a mão enluvada até o meio de meu braço. — Apenas se lembre dos ensaios e a noite passará rápido. Não há por que se preocupar.
Ela disse o mesmo mais cedo, quando foi ao meu quarto para me dar um desajeitado abraço de “feliz aniversário”, como se ontem não tivesse acontecido. E na situação, como agora, me restrinjo a um rígido aceno de cabeça — sem entrar na discussão das diferenças óbvias entre o ensaio e o baile de verdade.
Um servente se aproxima com taças rasas e volto a seguir o roteiro de figurante em meu próprio aniversário. Enquanto o mestre de cerimônias faz o brinde, sustento o sorriso cordial como se esse baile fosse o momento mais sublime de minha gloriosa vida e bebo um mínimo gole do espumante sem fazer careta.
Num piscar, o ato muda.
Os serventes voltam para recolher as taças e o retratista se aproxima, a grande câmera carregada por seu ajudante.
Sento-me no trono improvisado e a saia se espalha ao redor como lava. Puxo a trança rebuscada para o ombro direito enquanto meus pais se posicionam me ladeando, e Annabella fica à direita de mamãe. Devo ficar imóvel e ereta até o retratista tirar as fotografias oficiais que irão circular Solluaria através dos Diários Oficiais… mas novamente sinto o puxão invisível e minha atenção desvia.
Hector está poucos passos à esquerda do estrado, bebericando seu espumante.
Quando nossos olhares se encontram, não há mais o estranho assombro nos seus. Ele ergue discretamente a taça com divertido sorrisinho enviesado — que aumenta ao indicar o retratista com o queixo. É para lá que precisa olhar.
— Vire para a frente, Alissa — mamãe bate um dedo enluvado em meu ombro.
Obedeço, não querendo correr o risco de as fotografias não prestarem e precisar aturar sermão. O retratista dá seu aviso para nos prepararmos e, em seguida, três rápidos e ofuscantes lampejos de luz branca deixam manchas dançando em minha visão.
Mas também…
— Espera!
O retratista e o ajudante, já começando a recolher os instrumentos, paralisam.
— Pois não, Alteza?
— Quero outros dois retratos. Para mim. — As palavras voam de súbito, seguindo a ideia que me ocorre num lampejo. — Mas quero que Hector esteja presente. E o último retrato quero que seja apenas com ele.
O retratista ergue o olhar para meus pais, aguardando autorização.
Mas o silêncio de surpresa deles dois é palpável. Até mesmo Hector está com a taça paralisada a meio caminho da boca, sobrancelhas erguidas num “quê?” mudo. E embora entenda um pouco a surpresa generalizada — especialmente de meus pais, já que mesmo sendo a Família Real é raro posarmos juntos — dois retratos extras não são um pedido tão absurdo…
— Alissa, isso não é de praxe. Ainda nem são casados… podem tirar um informal na cidade amanhã, mas esse não é o momento — mamãe sussurra, pragmática.
Claro que essa seria a preocupação dela, bufo em indignação.
— E daí se não somos? Ele cresceu aqui e de certa forma é da família há anos — rebato entredentes, apertando as mãos no colo ao me virar para encará-la. — Sou obrigada a celebrar esse espetáculo ridículo como querem, mas não posso fazer um único pedi-
— Vamos logo com isso — papai corta, suspirando exasperado. — São só retratos, Roxanne. A essa altura não faz diferença.
Mamãe inspira fundo e lança um de seus famosos olhares de repreensão para papai. Ela costuma ser razoável e diplomática para lidar com a maioria dos impasses, mas é insuportável quando se trata de protocolos, até os mais insignificantes de um baile.
Embora, ironicamente, talvez seja por conta dessas mesmas regrinhas que ela suspira em anuência em vez de debater comigo diante dos convidados que murmuram.
Com breve meneio de cabeça, sinalizo para Hector se aproximar. Recebendo autorização de meus pais, entrega sua taça para alguém. Após uma reverência, ele sobe no estrado. De perto, é possível notar o discreto fitilho preto de gravata com broche dourado de sol; a rigidez sutil em seus ombros e sorriso, o nervosismo que chega em ondas… assim como o perfume que hoje tem teor mais amadeirado.
Para equilibrar a composição, mamãe cede seu lugar e vai para perto de papai.
— Por que isso? — Hector sussurra assim que se põe ao meu lado.
— Fique quieto — murmuro sob o sorriso congelado.
O retratista avalia a composição e prepara a câmera.
Uma suave brisa sopra vindo das janelas à oeste, carregando consigo a mistura dos perfumes refinados e dos arranjos florais decorando o salão. E de morangos. Este último alivia um pouco do nó de ferro em meu peito; o frio acariciando minha pele, meu ombro esquerdo, assim como a proximidade cálida de Hector.
Dois rápidos lampejos de luz.
Mamãe suspira resignada e chama Annabella para o canto, para que eu tenha o outro retrato. Ela passa por nós lançando apenas um breve olhar de curiosidade, mas o desvia assim que se percebe flagrada e reviro os olhos. Mais cedo, ela mandou entregar em meu quarto um cartão com um floreado “feliz aniversário”, e não faço ideia se foi uma tentativa de inesperada gentileza ou de provocação — já que não é segredo que detesto comemorar.
— Senhor, pode se colocar ao lado dela e olhar para cá? — o retratista pede.
Ergo a cabeça e noto a inquietude de Hector, vasculhando ao redor com testa franzida enquanto esfrega o peito, quase sobre o coração.
— O que foi?
Ele vem para meu lado, mas ainda desorientado.
— Não sei. Só tenho a sensação… está sentindo esse cheiro?
Ergo as sobrancelhas, num pedido para que seja mais específico.
— Morangos.
Me sobressalto, os olhos arregalando.
— Está sentindo?
— Desde ontem. Mas agora parece que espirraram essência de morango na minha cara, como se… — Balança a cabeça, olhando para sua esquerda, sem concluir.
— Às vezes o vento carrega…
— De onde?
Encolho os ombros, ainda perplexa.
Há muito, desisti de tentar descobrir. Um dia, anos atrás, simplesmente percebi o cheiro de morangos flutuando nas brisas de Thempesta, em momentos inusitados, mas tão tranquilizante quanto o aroma da chuva. Só que ninguém mais parecia sentir.
Até agora.
As ondas de impaciência contida de mamãe se chocam contra minha armadura.
— Depois falamos disso. — Faço uma careta involuntária e balanço a cabeça para mim mesma, engolindo o choque para voltar ao meu papel. — Vire para o retrato antes que mamãe mude de ideia. Ela já concordou a contragosto porque ainda não somos… não é de praxe.
— E por que quis esses retratos?
— Está parecendo um príncipe charmoso dos contos do Axl. Precisava registrar esse feito — digo, com dar de ombros. Embora seja verdade que ele está lindo…
Não é toda verdade, é?
— Era o mínimo que eu poderia parecer hoje, considerando de quem estou noivo — replica num bufo irônico ao se recuperar da surpresa. Inclinando a cabeça, pressiona os dedos em meu ombro ao acrescentar: — Antigamente, você teria preferido comer terra a admitir algo assim… Está bem nervosa hoje, não é?
— Você era do mesmo jeito. Mas algumas pessoas crescem e aprendem a elogiar em vez de ficar encarando o outro como se visse uma assombração descer as escadas — murmuro forçando um sorriso implicante para não responder.
Hector franze a testa até compreender; então as grossas sobrancelhas se erguem em divertida surpresa.
— Foi isso que pareceu pra você?
Dou um mínimo aceno, apertando os lábios para conter a risada ao relembrar a expressão de assombro. Em vez de replicar outra provocação, Hector balança a cabeça devagar, como consternado consigo mesmo. E, no outro segundo, se apoia no encosto baixo da cadeira e inclina-se em minha direção com um largo sorriso reluzindo nos lagos de chocolate.
— Na verdade, esta-
Um rápido lampejo branco ofusca a nós dois e corta a resposta espirituosa.
Desnorteados e com segundos de atraso, viramos para o retratista, relembrando sua existência. Na rapidez do ato, o braço de Hector vacila em seu apoio e ele quase cai sobre mim — recuperando o equilíbrio antes de nossas testas colidirem.
Cerro os lábios e mãos, trancando rápido a inconveniente gargalhada, que reverbera apenas em meu peito.
— Perdão, Alteza! A câmera disparou por acidente, não sei o que aconteceu… — O homem se justifica, ansioso, interpretando errado minha reação. — Posso tirar outra!
Apenas aceno em concordância.
Não ouso verificar a expressão de mamãe — embora seja capaz de imaginar — tampouco a de Hector. Posso sentir o tremor de riso contido ecoando o meu. Ainda assim, tentamos ficar o mais imóveis possível para um novo retrato e a luz nos ofusca novamente.
De certo ficaremos com uma cara ridícula, mas ao menos não seremos dois borrões dessa vez.
Estou prestes a provocá-lo sobre isso e indagar o que ele iria dizer, mas nem consigo formular a primeira palavra.
Mamãe mal espera o retratista se afastar e já está pigarreando diante de nós.
— Vocês dois — chama, o tom tão solene e suave quanto navalha de gelo. Hector engole a risada silenciosa de imediato. — Espero que ambos se comportem hoje. Hector, imagino que não esteja familiarizado com os protocolos para um baile desse porte na nova posição que ocupa, mas Alissa decorou as regras sobre como devem… não decorou?
Seus olhos se transformam em fendas ao notar a leve contorção nos cantos de minha boca.
— Se está mencionando a seção “Caso a Celebrante Já Esteja Comprometida em Noivado”, então não. Pulei esse capítulo — admito, e Hector parece murmurar algo como “misericórdia”. Os lábios de mamãe se afinam numa linha e ela aperta as mãos diante do diafragma. Arqueio a sobrancelha: — Se não preciso decorar todas as leis, então por que perderia tempo decorando três páginas de regrinhas minuciosas se era impossível que eu viesse a noivar em uma semana? Apenas apliquei as orientações que recebo na mentoria.
Mamãe solta o ar, exasperada, e aperta mais as mãos após um breve olhar atravessado para papai, à sua direita, quando ele faz um som semelhante a muxoxo — embora a expressão seja tão insondável quanto de costume, com lábios comprimidos. Como se ele fosse o único responsável. Ela quem jogou o livreto em mim; se quisesse que o decorasse inteiro, que desse um motivo ao menos razoável.
Se tivesse contado do noivado antes…
— Apesar de serem noivos, não devem ficar grudados a noite inteira — mamãe arremata, categórica. — É esperado que passem tempo juntos… mas não se fechem no mundinho de vocês. Hector, deve circular um pouco de tempos em tempos; há algumas pessoas ansiosas por conhecê-lo. Dê oportunidade para que se aproximem. Alissa, receba alguns cumprimentos aqui por meia hora e então circule pelo salão também.
— Essa parte eu sei — resmungo, a armadura pesando mais e repuxando os cabos de tensão.
— Ótimo. Só queria me certificar, já que você e seu pai têm o péssimo hábito de só lembrarem das regras que são convenientes para vocês — replica, seca. Não sou a única a franzir a testa, mas ela ignora tanto a mim quanto papai. — Relevamos o comportamento de vocês ontem por conta das circunstâncias. Mas, hoje, lembrem que não são mais crianças. Modos.
Com último olhar de advertência, estende a mão para papai, que, ainda de testa franzida, automaticamente estende o braço. “Não discutir com mamãe/Roxanne quando se trata de protocolos inúteis de etiqueta” ocupa o segundo lugar na curta lista de tópicos em que concordamos sem discutir — sua mínima intervenção durante os retratos foi quase milagre.
Sem mais palavras, eles se afastam para circular o salão, e o breve momento compartilhado a caminho do estrado agora se parece um distante devaneio nervoso.
Hector solta o ar pesadamente ao meu lado.
— Tinha esquecido como a rainha pode ser… afiada às vezes.
— Não viu nada — bufo sem humor. — Hoje é um baile de grande porte, ela está tentando controlar o que pode e o que não pode.
Se decorar regrinhas estúpidas e ensaiar dezenas de vezes fossem o bastante para garantir que nada de ruim ocorra, eu também me agarraria a isso. Faria sem reclamar. Mas é impossível cobrir todos os imprevistos num par de ensaios com algumas damas interpretando papéis tolos com “possibilidades”.
E a consciência disso me faz sentir sufocada e mais nervosa…
E é quando tudo começa a dar errado.
Comments (0)
See all