Os ponteiros do relógio se arrastam.
Cinco minutos levaram décadas para passar e ainda restam outros cinco para me liberarem.
Embora mamãe e as damas da corte tenham frisado exaustivamente sobre como o “baile de maioridade de uma dama é um grande marco por si só e ganha mais importância quando se trata da herdeira ao trono”, ainda me é o cúmulo do absurdo ficar confinada nessa minúscula antessala até ser anunciada no salão.
É impossível relaxar.
Basta ficar um segundo parada que os pensamentos voltam numa torrente — como aconteceu de madrugada, me impedindo de dormir por serem mais barulhentos que a tempestade desabando. E, ao mesmo tempo, não posso ficar andando de um lado para outro para não me desarrumar nem cansar antes da hora.
Me deixo cair mais uma vez no banco acolchoado próximo a porta do salão e a ampla saia rodada se espalha ao meu redor.
O coração bombeia frio. A tiara pesa com todas as expectativas sobre esse baile… com o que todos os convidados que vieram me prestigiar esperam encontrar… com as infinitas possibilidades de como poderei estragar tudo dessa vez…
Hoje não será como há quatro anos, tento garantir a mim mesma.
Tem certeza? A corte não mudou e há mais pessoas para cumprimentar… Acha que é capaz disso?
O eco da torre ressoa como saindo das paredes, como se eu mesma estivesse numa prisão dentro dela. Lampejos do desastre que foi meu primeiro baile, quão rápido minha paciência se esgotou e de que forma “as grandes expectativas” se concretizaram…
Cerro os lábios e balanço a cabeça, num esforço para bloquear os ecos da torre.
Levo a mão à garganta institivamente, mas em vez da medalhinha ou do anel, esbarro na fria pedra de berilo vermelho incrustada no pesado colar de ouro entre minha clavícula.
Claro, por ser um evento formal, não poderia estar com meus amuletos.
Sem poder me agarrar ao conforto familiar, meus pés voltam a bater no piso, fora do ritmo da música orquestrada que passa por baixo da porta. Tento me concentrar nela e respirar fundo, girando com os polegares os anéis de berilo em meus dedos médios — bem onde termina as mangas do vestido.
No começo, tentei me distrair contando as folhinhas outonais bordadas com pedrarias ao longo da manga de tule translúcido, espiralando pelos braços desde os ombros — onde se concentram como mangas caídas — até se amotinarem nos pulsos, mas logo perdi a paciência. Agora, tento me concentrar na música. No movimento dos pés. No girar dos anéis. Na brisa fria vinda da única janela, me acariciando o rosto com dedos finos e invisíveis. No aroma de morangos soprando as lembranças de quatro anos atrás para longe… trazendo uma lembrança melhor para me agarrar.
Uma mais recente, dessa mesma manhã: Hector aparecendo em meu quarto às nove horas, escancarando janelas e batendo palmas, me acordando com uma cantoria dos infernos — que logo se transformou numa risada incrédula quando minhas ameaças de morte grunhidas contra o travesseiro se transformaram num choro patético assim que ergui a cabeça e o vi. Não era acordada dessa forma desde os oito anos, meu último aniversário em que Alexander esteve bem.
Por um momento, quando vi Hector, foi como se Axl estivesse ao seu lado, como costumava ser, tentando tocar a flauta doce entre risadas enquanto Hector me esfaqueava os ouvidos ao cantar propositalmente mais desafinado que o normal.
Por um momento, foi como regressar para uma época em que meus aniversários traziam alegria em vez de aflição e dor.
Então, após um abraço apertado e um afago travesso no topo de minha cabeça, Hector se afastou dizendo que precisava ir, pois só conseguira entrar porque tinha uma autorização de meus pais para que levasse uma parte de suas roupas para a suíte.
E a realidade voltou contra a minha cara.
O Tratado. O noivado que meus pais esconderam por anos. A tradição de dividirmos o quarto começando nessa mesma noite…
Como se o baile não fosse preocupação demais para um único dia!
Balanço a cabeça e inspiro fundo novamente, tentando me acalmar, embora os pés batam mais rápido que o ritmo animado da música orquestrada.
O vento sopra suave, e a cada inspiração varro os pensamentos para o porão, os trancando lá.
Visto aos poucos a armadura, hoje mais grossa e pesada para aturar todos os cumprimentos e comentários com a cordialidade exigida; grossa o suficiente para bloquear a saída do porão. Tão pesada que é sustentada por centenas de cabos de…
Uma batida na porta.
Pulo do banco tão rápido quanto o vestido me permite e me posiciono bem ao centro das portas duplas. Respondo com duas batidas na porta direita, sinalizando estar pronta… tanto quanto sou capaz.
A orquestra vai baixando até se tornar inaudível sob meu coração.
Inspiro fundo e o estômago se encolhe.
— Com grande honra, Vossa Alteza Real, a Princesa-Herdeira Alissa Roxanne Laviolette d’Ahon-Tempesbryd!
As portas do cárcere abrem três segundos após a proclamação do grão-mestre de cerimônias, enquanto solto o ar devagar. Então dou os passos que me colocam à vista no amplo patamar intermediário da escadaria.
A orquestra, em algum canto à direita, inicia o pomposo hino da Casa Real.
“Olhe para os convidados por dez segundos e então desça”, a instrução de mamãe reverbera; a lembrança do ensaio se mistura ao martelar do coração, aos acordes da orquestra e aos burburinhos.
É tarde demais para voltar e me trancar na antessala.
Centenas de pares de olhos, bem mais do que ontem, se pregam a mim, escrutinando. Como um cardume multicolorido, os convidados se aglutinam ao centro do salão de baile, e a luz cintila em suas joias finas e taças de cristal. Todos os rostos parecem indistintos à distância de vinte degraus…
Menos um.
Hector, em meio à multidão, atrai minha atenção como a puxando por uma linha. Seu assombro boquiaberto é engraçado e desconcertante ao mesmo tempo, mas não é o que me faz incapaz de desviar o olhar. Com um conjunto formal de terno grafite e camisa vinho, parte dos cabelos ondulados caindo sobre a testa numa deliberada e elegante bagunça, ele está absurdamente…
O discreto pigarro do mestre de cerimônias me sobressalta.
Esqueci completamente a contagem certa. Ótimo. Logo os comentários sobre como “a princesa paralisou no topo da escada” irão se espalhar… se já não estão.
Forço-me a desviar os olhos e mover os pés — por mais que ainda sinta a presença dele como uma trilha de fio esticado presa à minha nuca. Ignoro e me concentro na escadaria.
Em papai me esperando ao fim desta.
É sempre esquisito vê-lo em trajes formais. Apesar da posição que ocupa há anos, no dia a dia ele prioriza seu conforto acima dos trajes completos e convencionais, deixando-os apenas para quando estritamente necessário. O que quer dizer que ao menos não sou a única desconfortável hoje. Ele parece todo rígido com o terno que, diferente dos lisos monocromáticos dos demais nobres, é fechado até a garganta e uma faixa dourada atravessa o peito, contrastando com o vermelho-bordô do tecido — no mesmo tom de meu vestido e das cores da Casa Real… e pouco mais escuro que nossos olhos.
Ele me estende a mão direita quando alcanço o terceiro degrau, a expressão insondável. E, de forma tão mecânica quanto estabelecida no ensaio — no qual ele não esteve, claro — apoio os dedos em sua mão, termino de descer as escadas e faço uma mesura diante dele.
Então, aceito o braço que ele me oferece, dobrado.
— Feliz aniversário — o cumprimento parece sair por entre os dentes quando começamos a vagarosa caminhada tradicional. Resmungo um agradecimento por reflexo. — Há algo que eu e sua mãe deixamos com Hector. Abram apenas após o baile.
— Por que não me entregaram pessoalmente? — à muito custo, consigo dizer isso mantendo o tom e expressão neutros, sem me virar para confrontá-lo.
— Não tem bolsos, tem? — retruca enquanto caminhamos, contornando o bolsão semicircular entre os convidados e a escadaria. — Imagino que vá entender quando ver, no momento certo. Que não é o baile.
— Momento certo — bufo pelo nariz. — Estou cansada de tanto ouvir isso.
Não tenho certeza se ele ouve o resmungo, pois bem nesse momento passamos diante da orquestra, ou se apenas decide ignorar… Como ontem à noite, quando não fez qualquer comentário sobre a forma que eu e Hector conduzimos o anúncio — limitando-se a um solene aceno de cabeça com os lábios apertados, afirmando para a corte em polvorosa que o noivado tinha sua aprovação.
E agora essa de entregar “algo” para Hector, que devemos abrir apenas mais tarde… juntos? Quando estivermos na suíte?
Fazemos a curva. Foi por onde vi Hector, mas desse ângulo não o encontro mais… E não posso procurar.
A armadura vai se tornando mais pesada conforme diminuem os metros até os convidados. Engulo em seco e meu peito é um instrumento de percussão retumbando mais alto que a orquestra.
— Sabe o que teria sido um ótimo presente? Não me obrigarem a comemorar meu aniversário, não me forçar a passar por isso. — As palavras escapam sob a respiração apertada e o sorriso repuxado pelos mesmos cabos que sustentam a armadura. — Se não comemora os seus, por que me faz comemorar os meus?
— Isso não é hora, Alissa — ele grunhe. — E pelo que lembro, não quer ser como eu. Então não seja — acrescenta, em tom mais baixo e rígido, quase inaudível. Apesar disso, e de não haver qualquer indício da emoção por trás… ainda me atinge como raio.
Não tenho resposta.
Mas, ainda se conseguisse encontrar alguma entre o turbilhão de vergonha e ressentimento que arrasto comigo como um estilhaço venenoso no peito — uma marca permanente de quatro anos atrás, além da cicatriz no pulso direito — já estamos diante dos convidados; que, com cerimoniosas reverências, abrem caminho para passarmos, formando um corredor.
Em geral, não fico nervosa com multidões… desde que não seja um evento social da corte no qual eu seja o centro da atenção.
A necessidade de ser a “perfeita herdeira” transforma a coroa dourada em afiados cacos de vidro se afundando em minha cabeça, pesando toneladas e toneladas.
Aristocratas e a elite dos quatro reinos se dobram em mesuras cordiais e sorrisos afetados… e tenho a incômoda sensação de que os lustres de cristal sobre nós exalam o calor de centenas de sóis e que o fino tule translúcido gruda em minha pele com suor; os bordados de folhas pinicam ao longo dos braços, assim como todos os olhares que esperam mais um deslize para comentar.
O chão se agarra aos meus pés, oferecendo resistência, e o percurso que deveria ser de uns trinta metros se alonga por quilômetros.
Os cabos exercem mais tensão para manter o sorriso cordial no lugar, e as bochechas doem enquanto minhas unhas se fincam com mais força no braço de papai.
— Estamos quase lá. Respire e concentre na música. — Embora permaneça tenso, o tom é mais ameno ao murmurar pelo canto da boca… e, com a outra mão, cobrir a minha numa estranha mistura de dois tapinhas e breve aperto.
Por irônico instinto, agarro seu polegar antes que ele se afaste.
Papai congela, a mão pairando um centímetro acima da minha.
O coração acelera e tento engolir o bolo que se forma na garganta travada, esperando quando ele irá se recuperar da surpresa e se afastar. Mas eu mesma sou incapaz de ser a primeira a soltar. Uma parte de mim, tão forte quanto a mágoa, querendo manter por mais ínfimos segundos a inusitada tentativa de conforto.
Esse tipo de gesto vindo dele já era raro mesmo antes do acidente de quatro anos atrás. Nos últimos tempos, fora nossas valsas anuais, sou capaz de contar numa única mão todas as vezes em que me tocou assim — a última sendo seis meses atrás, quando segurou minha mão enquanto continha o sangramento pós-drama com Gustav. Na maioria das vezes que ficamos próximos assim é como um rei ao lado de sua herdeira, e não…
A calidez volta a cobrir minha mão, os dedos longos se fechando ao redor dela e apertando de leve.
O pinicar dos braços sobe para os olhos.
Não é mais do que uma migalha e, ainda assim, exige todo meu esforço manter a armadura no lugar. O encoberto corte ínfimo na lateral da mão lateja com o aperto, mas não digo nada. Em vez disso, aperto mais sua mão, a ponto de sentir a minha tremer. Me obrigo a inspirar fundo e engolir a dor insignificante e a emoção inconveniente.
O ar tem o gosto salgado das lágrimas não derramadas.
O chão de mármore não se agarra mais aos meus pés.
Os burburinhos e olhares dos nobres parecem insignificantes enquanto tenho algo a me agarrar e focar minha atenção.
A vista desanuvia a ponto de conseguir enxergar o brilho acobreado no vestido de cetim de mamãe e no rosado de Annabella…
Num piscar, o estrado provisório montado próximo a uma das enormes janelas, que até então parecia a quilômetros de distância, já está bem diante de nós.
Papai me ajuda a subir o degrau único e me guia até a cadeira baixa de estofamento chumbo… então, após um breve aperto, solta minha mão.
Tudo não durou mais de um minuto e ele se desvincula com certa parcimônia, ainda assim… Por que a sensação é de um afastamento brusco de uma vida inteira?
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