Apertamos as mãos por três segundos e então — num gesto
familiar, ainda que em desuso há anos — as deslizamos na outra até que os três
dedos do meio se enganchem no outro, como mecanismo de fechadura, enquanto
tocamos os polegares e mindinhos.
— Três, dois, um… E a chave vi-rou — dissemos em uníssono, virando as mãos três vezes, de um lado para outro, até parar na posição inicial.
Quando crianças, vivíamos inventando jogos e desafios com regras aleatórias nada razoáveis, que em geral terminavam com os dois machucados e discutindo por não aceitar perder. Não raro, Axl precisava ser o embaixador da paz; em geral, quando algo saía do controle e era necessário um pedido de desculpas real — como quando acertei o nariz de Hector com o Livro de Etiqueta. Mas, após o aperto de mãos, estava tudo resolvido. Era nossa lei máxima: a chave virou, a briga acabou. Na maioria das vezes, já estávamos nos reaproximando dez minutos depois, girando a chave e prontos para um novo desafio.
E, como no passado, é muito simples girar a chave, apesar de tudo.
O problema é que a última parte do toque de mão…
Eu e Hector tomamos ar, mas então hesitamos.
— Acho que não será bem aceito se cuspirmos no salão, não é? — ele indaga, com sorrisinho enviesado.
— Não. — Um calafrio desce pela espinha, relembrando onde estamos. Repentinamente, volto a ser superconsciente de cada par de olhos sobre nós. — A corte já teve demais por uma noite.
Hector inclina a cabeça por um segundo, pensativo.
— Podemos substituir essa parte.
Então me puxa para outro abraço.
Não há nada de impetuoso nesse abraço, diferente do primeiro. É sereno, terno e cálido, como voltar para casa. Seu cheiro — embora não seja mais de suor e sabonete de mel e aveia, e sim uma mistura de frescor cítrico com leve toque de alfazema — ainda é familiar, como sua própria essência, e é tranquilizante.
Ainda há muito que precisamos conversar, especialmente sobre o futuro. Mas não quero pensar em nada disso. Só quero desfrutar dessa inesperada e leve paz, que há anos desconheço, capaz de, ao menos por ora, tamponar o caos borbulhante no peito e dissipar a sombra da torre.
Cedo demais, Hector se afasta. O sorriso largo que forma duas meias-luas carrega o brilho cálido do sol.
— Você demorou bastante a perceber, hein? — provoca. — Se não visse o anel, teria realmente pensado que me esqueceu.
— Como esperava que o reconhecesse de cara? — devolvo, em superficial indignação, afastando os resquícios de lágrimas do rosto.
— A reconheci assim que me atropelou no corredor.
— É diferente. A última vez que o vi, seu cabelo era maior, sua voz não tinha começado a mudar e você era mais baixo que eu!
— Mais baixo, o caramba! — Ele balança a cabeça, rindo. — Sempre tive pelo menos um centímetro a mais que você e já estava passando disso quando fui para Bérthia!
— Não se apegue a detalhes tão mínimos.
— Não adultere os fatos.
Reviro os olhos.
— Você só estava uns três dedos mais alto que eu, não isso daí. — Gesticulo para a diferença absurda. — Esticaram você na Academia?
— Só o óbvio acontecendo… falei que estaria bem mais alto que você quando voltasse, e não acreditou. — Dá um risinho presunçoso. — Mas agora estou realmente curioso… O que a fez me reconhecer tão de repente? Porque num segundo parecia prestes a rasgar minha garganta e no outro… — Aponta para o sobretudo manchado de lágrimas.
— Ninguém mais teria audácia para testar minha paciência nesse nível ridículo.
— Que paciência? — ele ronca uma risada e ergue as sobrancelhas. — Há anos atestei que não existe. Até Alex dizia que você não esperou nem para nascer. — Direciono um leve murro em seu ombro, mas ele desvia a tempo com sorrisinho presunçoso. — Está vendo? E imaginei que quanto mais infantil fosse, mais fácil seria de me reconhecer. E você acaba de confirmar que a teoria estava certa.
— Poderia não dar certo e você passaria o resto da noite com o nariz sangrando.
— Era um risco possível.
— E ignorou.
— Claro. Que graça teria a vida sem alguns riscos? Era praticamente nossa filosofia de vida.
— E por pouco hoje não foi a causa da sua morte — bufo para ele, embora incapaz de conter o sorriso. É surreal estar trocando implicâncias com Hector com tanta facilidade mesmo depois de anos sem o mínimo contato.
Ele dá uma risada despreocupada.
— Sempre era por pouco… Inclusive, em muitos momentos quase pude ver Alex puxando os cabelos, em desespero para que eu parasse de provocá-la… como ele fazia toda vez. — A ternura nostálgica se infiltra no sorriso. Ele dá um risinho e balança a cabeça, devagar. — E depois que tudo estava bem, começavam as provocações… você lembra?
Ergo as sobrancelhas.
— De qual provocação deveria me lembrar? Eram tantas…
— Aquele sacana sempre dizia que iríamos nos casar — esclarece, afastando para trás o cabelo que o vento bate em seu rosto. — Foi um dos motivos para minha crise de riso quando soube do noivado.
Meus olhos se arregalam com as lembranças. Não podíamos ficar um segundo pacífico perto do outro que começava…
— “Mas que patinhos bonitinhos…
— …mal posso esperar para ser o padrinho do casamento.” — ele completa, imitando o tom sonhador e provocativo de Alexander.
— “Claro, vamos nos casar, sim, Axl”.
— “Continue acreditando em seus sonhos, Alex”.
Trocamos um olhar, e então, diante da situação atual, fazemos o mesmo que Axl quando dávamos essas respostas: caímos na risada.
Ainda incrédula, escondo o rosto numa mão ao rir. Mais cedo acreditei que Alexander não saberia a identidade do noivo, pois teria sido incapaz de guardar segredo… E ele realmente sabia. E dizia.
O tempo todo.
Como iríamos imaginar que provocações tão corriqueiras, que víamos como revanche pelas “palpitações” que lhe dávamos por nossas travessuras imprudentes, seriam um aviso?
— Qualquer dia acertamos as contas com Alex… mas agora creio que seja melhor sairmos daqui e anunciar logo isso — Hector diz, interrompendo a risada subitamente.
— Por quê?
— Thereezee está vindo — avisa, com breve olhar sobre minha cabeça.
Meu rosto se contorce numa careta involuntária. Se a conversa com Gustav já foi motivo para sermões e boatos… Só posso imaginar o quanto ela terá para falar após meu rompante de socos e abraços com Hector. O quanto todos devem estar especulando…
— Ainda estou com cara de choro? Meu nariz-
— Está tão vermelho que parece ter sido picado por um marimbondo.
— …
— Foi você quem perguntou. — Ele encolhe os ombros, com meio sorriso de desculpas. — Se serve de consolo, está uma graça.
Suspiro, exasperada comigo mesma. De que adianta me preocupar com isso agora, se a corte me viu chorando de soluçar?
Engulo a mortificação eterna.
— Vamos lo-
— Alteza! — a voz estridente e austera soa mais perto do que gostaria.
— Tarde demais — Hector murmura. — Correr não é opção, é?
— Alguma vez adiantou?
Me viro para confrontá-la, cruzando os braços. Embora a raiva tenha esfriado, quando se trata de Thereezee, minha paciência está permanentemente no negativo.
— Achei ter dito para não voltar a me perturbar hoje. O que quer aqui?
— Tentar impedir que continue causando vexame, Alteza. — A mulher diz, parando a pelo menos cinco passos de mim, erguendo o queixo em sua pose altiva. E o ergue mais, lançando o olhar azedo para Hector pouco atrás de mim. — E o senhor também. Deveria se envergonhar por manter a princesa diante desta janela nessas condições e a agarrar tantas vezes diante do salão inteiro. Nem depois de crescido aprende a ter modos, senhor Michaelis?
Hector dá um risinho e vem para minha esquerda, passando o braço ao redor de meus ombros com a casual familiaridade.
— Até Thereezee me reconheceu mais rápido que você. Não sente vergonha?
— Não pode afirmar isso — resmungo. — Se ela esteve bisbilhotando a conversa, não teria qualquer dificuldade em identificá-lo com base na minha reação.
— Duvi-
— Não me ignorem! Os dois não-
— Já estávamos saindo daqui, Thereezee — corto, exasperada. — Então pode nos deixar em paz.
— Temo que não, Alteza. — Ela se empertiga e enrijece a coluna, como se pudesse voltar a ter a vantagem de altura como antigamente; mas até quando estou sem salto ela é meio palmo mais baixa que eu. — Pensei que seu comportamento não poderia piorar hoje, e estou horrorizada com quão errada estava! Os boatos já-
— O que as pessoas conseguiram ouvir? — Hector verbaliza meus pensamentos.
Thereezee lhe direciona um olhar venenoso; se ele ainda fosse criança, decerto teria uma orelha puxada.
— Não me interrompa, rapaz! Seria de pensar que após a Academia teria aprendido a se portar melhor. De que adianta ser herdeiro a um título tão honorável como o de barão, mas não agir com a respeitabi-
— Responda de uma vez, Thereezee — corto com grunhido impaciente.
— Só ouvimos suas ofensas e uma cobrança sobre escrever. Mas não é essa a questão aqui. A questão é o que todos vimos, Alteza. O que, somando a todos os outros boatos já correndo, torna tudo mais escandaloso! — responde em azedume.
— Ah, também ouvi esses… Anda bem disputada, não é? — Hector provoca com um risinho ao me cutucar o ombro.
— Cala a boca, Hector — bufo, devolvendo o cutucão com o cotovelo.
— Isso não é motivo para risadas, senhor Michaelis! — Thereezee protesta, indignada com a curta gargalhada. — Espero que durante sua estadia aqui não prejudique ainda mais a imagem da princesa. Não são mais crianças e certos tipos de atitudes… — ela lança um olhar afiado para o braço dele ao meu redor — são totalmente inapropriados para a posição de ambos, especialmente a dela!
— Durante minha estadia… — Hector diz devagar, saboreando as palavras enquanto um sorriso cínico se alastra. Ele inclina a cabeça para mim. — Por quanto tempo será minha visita mesmo? Creio que estávamos justamente indo esclarecer isto com seus pais, não?
Por mais que sinta vontade de rir da encenação tosca, e que ter reencontrado minha dupla de desafios torne a situação menos angustiante, a lembrança do anúncio de noivado traz um sopro gelado ao estômago.
— Estávamos.
— Bom, se é assim… — Thereezee aquiesce, não muito satisfeita. — Continuamos esse assunto depois. Vá falar com seus pais e não esqueça de se desculpar pelos modos vergonhosos de há pouco.
Hector ainda está com o sorriso de travessura cínica quando solta meus ombros para me oferecer o braço e um aceno de cabeça para Thereezee — que crispa os lábios.
Nos afastamos em passos largos para tomar distância dela e não dar chance de outros nobres se aproximarem. Mas então ele vai diminuindo o ritmo enquanto se treme num riso silencioso.
Bufo, balançando a cabeça para ele.
— Voltou de Bérthia com quantos anos, afinal? Sete?
— Ah, por favor, não seja tão rabugenta — replica sob a risada gutural. — Vai me dizer que também não acha graça ao imaginar a cara que ela vai fazer ao descobrir por quanto tempo será a visita?
— … não disse isso — murmuro, com sorriso apertado.
— E se eu disser que, enquanto ela estava falando, tive uma ideia para-
— Que tipo de ideia?
Meus pés param no meio do caminho.
— Não precisa me olhar desconfiada assim. Nem todas as minhas ideias eram ruins — defende-se, levando a outra mão ao peito. Arqueio uma sobrancelha. Ele solta o ar exageradamente. — Certo, a maioria era. Mas as suas eram tão catastróficas quanto.
— Que tipo de ideia, Hector? — insisto entredentes, tentando ignorar os olhares da corte convergindo para nós, em agulhadas frias, agora que estamos no meio do salão.
Hector se vira para mim, e meu corpo formiga numa mistura de apreensão e expectativa. O brilho familiar em meio aos lagos de chocolate de suas íris, os cabelos caóticos e o sorriso fazem parecer que mergulhei em outra lembrança.
— Mais cedo, no gabinete do seu pai, para matar tempo enquanto esperava você, perguntei sobre como seria o anúncio… se é necessário comunicar sobre o Tratado ou se só precisam saber que estamos noivos — ele diz, rápido e baixo, se aproximando para garantir que apenas eu escute. — E os representantes dos outros reinos, que são quem importa, já sabem. Então… posso estar interpretando livremente aqui e seus pais arrancarem minha cabeça depois… acho que isso quer dizer que, por ora, só o que as pessoas precisam saber é que estamos noivos.
Franzo a testa, sem muita certeza se entendo o que ele está sugerindo.
O sorriso de Hector é torto, formado por uma única meia-lua, quando retrocede um passo e enfia a mão esquerda num bolso lateral do sobretudo.
— Não sabia em que estado estaria nossa relação, mas não seria burro de vir para seu aniversário sem presente… por mais bobo que seja. Pretendia entregar meia-noite, mas essa situação é melhor.
— Que presen-
Diante da corte inteira, ele se abaixa, apoiando-se num único joelho. E, tirando a mão do bolso, a estende, revelando uma sapatilha do tamanho de sua palma, feita em madeira com delicados entalhes.
Meus olhos arregalam e a cabeça se esvazia, ecoando os burburinhos perplexos da corte e as batidas de meu coração.
— O que…? — ofego.
— Ainda perde seus sapatos por aí, não é? Digamos que enfim encontrei um que faça mais jus a você — replica com o sorriso enviesado, tocando brevemente o berloque de sapatinho na pulseira.
“Na loja, não tinha nem fogo nem um raio, que era o que pretendia colocar pra representar você… mas tinha sapatos. E você vive perdendo os seus. Combina.”
O eco de sua voz infantil, de quando me presenteou com a pulseira em meus onze anos, volta enquanto encaro incrédula os entalhes na madeira: chamas e relâmpagos.
— Mas o que está fazendo…?
— Não é óbvio? — replica, num sussurro bem-humorado. — Não é porque nos jogaram no meio disso que não podemos fazer algumas coisas à nossa forma… E é melhor do que parecer um funeral, não acha?
Abro a boca, ainda desnorteada. Mas não tenho tempo de dizer nada.
— Princesa, me aceita como seu companheiro até o fim de nossas vidas?
A pergunta reverbera no salão.
A corte arqueja e engasga em uníssono. E então cai em silêncio tenso, com fôlego suspenso, os olhares mais agudos em minha pele. Nem eu tenho certeza se estou respirando, com a onda de calor se espalhando do peito e inundando meu rosto.
Hector arqueia uma sobrancelha, em desafio, aguardando a única resposta possível.
Embora para a corte seja uma inesperada proposta de noivado, quando ele formula o “pedido” dessa forma… Para nós é mais do que um teatro para o público, mais do que o anúncio de um compromisso ao qual já estávamos prometidos.
É o resgate e renovação de uma promessa bem mais profunda.
Em meio a tantas perguntas que brotam de todas as direções enquanto encaro o lago profundo de chocolate em suas íris, a única certeza que tenho é de que o laço entre nós permanece o mesmo, apesar dos anos de silêncio.
“Amigos até que a morte nos separe?”
Sorrindo, coloco a mão sobre a sua. E dou a única resposta possível, a mesma de sete anos atrás:
— Para além dela.
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