Meu raciocínio se fragmenta em folhas soltas sopradas pelo vento, espiralando numa agitação confusa e farfalhante enquanto encaro o intruso.
— Estava dizendo…? — Ele incentiva, girando a mão esquerda com três anéis.
— Quem é você? — retruco enfim, franzindo a testa.
Os olhos castanhos se abrem mais por um segundo, surpreso ou decepcionado, e ele os desvia para baixo. Fica assim por um par de segundos, esfregando levemente o grosso anel prateado do indicador esquerdo sobre o lábio inferior.
— Não é capaz de arriscar um palpite, princesa? — replica por fim, reerguendo o rosto com um apertado sorriso que forma uma meia-lua no bronze da pele castanha-clara.
Franzo mais a testa. Deveria reconhecê-lo?
Olhe bem
— Nada, princesa?
— Não — retruco, vincando mais as sobrancelhas, incomodada com a provocação e com o farfalhar mental que nada tem a ver com sua beleza. É mais uma impressão estressante de sentir que há algo fora do lugar, algo que deveria perceber, mas a resposta está numa das folhas embaralhadas de meus pensamentos.
Talvez o tenha visto em algum evento da corte…?
— Está realmente sem humor para conversa, não é? — comenta, com casualidade, se aproximando dois passos para recostar-se à mesa de sinuca. E, com isso, acaba por reparar no guardanapo manchado de sangue que abandonei ali. Os olhos escuros se voltam para mim, retendo-se por breves segundos nos hematomas surgindo em meus braços então descendo para minha mão. — Ouvi dizer que se machucou com uma taça durante o jantar… está bem?
— O suficiente. — Irritada pela forma que ele encara, movo o braço para encobrir a mão entre as dobras da saia. — Se já percebeu que não estou interessada em conversa, por que continua aqui?
Ele apenas fica me olhando, com divertido meio sorriso. Sem intenção de sair.
Trinco os dentes.
Já me basta aturar Gustav e Escórpio num único dia e os boatos absurdos especulando minha vida amorosa, agora também preciso lidar com um desconhecido que acha ter liberdade de me impor sua presença? Quem ele pensa que…
O ar se agarra à minha garganta e um calafrio de compreensão se espalha pela espinha.
— Você… é você o… quem exatamente é você? — ofego, as palavras se embolando de forma ridícula na boca, incapaz de pronunciar “é você o tal noivo?”.
— Quem eu sou… — diz devagar, batendo três vezes a ponta do indicador sobre os lábios, como refletindo muito, mas há um tremor nos cantos da boca. — Sabe, uma questão com nível tão complexo de profundidade abre margem para várias interpretações e respos-
— Qual é seu nome?
— Não vou dizer.
— O quê?
O sangue ruge em meus ouvidos e não tenho certeza se escutei direito. Ele se negou a…?
— Não vou dizer meu nome — repete devagar, alongando a frase junto com o sorriso. — Sua mãe contou que você disse que saber meu nome pouco antes do noivado não adianta nada. Pois então. Honrando sua vontade, não vou dizer.
— Quantos anos você tem? Dez?
— Um pouco mais — responde, o sorriso faiscando de diversão nos olhos.
O calor abrasivo em meu peito se revolve, perto de entornar novamente; a respiração chiando como vapor raso e o tremor dos braços intensifica, formigando.
— Você…
— Sabe, a família de um amigo meu tem uma cachorrinha chamada Mimosa. Ela é deste tamanho — ele afasta as mãos no que parece uns vinte centímetros — e passa a maior parte do tempo tremendo de ódio. A forma que está me encarando agora lembra muito como a Mimosa fez pouco antes de tentar arrancar minha mão.
— …
Ele estende a mão direita e, tão chocada, encaro os pontinhos brancos minúsculos contrastando na pele castanha, entre o polegar e indicador.
Ele acabou de me comparar a um cachorro?
Um cachorro minúsculo chamado Mimosa?
O tremor se intensifica e reergo o olhar. Sou capaz de escutar o sangue correndo em estado de fervura. O formigamento nas mãos implora por acertar sua cara, deixar seu nariz ainda mais torto; ou então pegar um par de dardos e apagar o sorrisinho enervante.
— Exatamente esse olhar. Parece ter uma tempestade de fogo nos olhos, sabia?
— Qual é seu problema? Por que está aqui? — chio, a muito custo mantendo as mãos ao lado do corpo, fincando as unhas na saia em vez da pele.
— Bem, estava conversando com seus pais sobre o noivado e pe-
— Ah, claro! — bufo irritada para mim mesma.
Como sou estúpida!
Se ele está aqui, só pode significar que o jantar terminou e está na hora do anúncio.
O estômago embrulha novamente. Mas quanto antes terminar isso, mais rápido posso escapar para o quarto, chorar e atirar até limpar a cabeça o suficiente. Contendo o tremor e o gelo pegajoso se espalhando, passo reto por seu lado para sair de meu refúgio, os saltos grossos ecoando no piso de mármore.
— Não, espera…
Ignoro.
Dou apenas três passos para além da porta quando um calor elétrico sobe pelo meu braço esquerdo, a partir de onde a ponta de seus dedos roçam os meus.
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