— Percebem? Ele foi trazido para cá para poder aprender a se comportar de acordo com a nova posição que o pai conseguiu, mas só influencia negativamente a princesa! E continuar permitindo que ele durma na Ala Familiar só vai fazê-lo se achar mais importante do que realmente é. Então apelo que me ouçam, Majestades: deixem a princesa sob meus cuidados; movam Hector para a Ala de Visitantes, onde eu e as demais damas ficamos… ele acaba de completar oito anos, já está grandinho o suficiente. E o príncipe precisa de companhias adequadas a idade e nível dele. Não tem por que esses dois continuarem sendo um peso a ele, que é o príncipe-herdeiro, não uma babá.
— Eles não são um peso pra mim, são meus irmãos — Axl protesta, indignado. — Não pode simplesmente ir assumindo que-
— Alexander! — papai corta, numa advertência, os olhos flamejando toda sua irritação e a voz, soando como os trovões do lado de fora, silencia até os burburinhos dos nobres. Ele se volta para Thereezee com um bufo desdenhoso. — Crie vergonha na cara antes de vir me perturbar a paciência com esse tanto de baboseira ridícula só porque se ofende de graça com uma brincadeira besta de crianças. Não tem trabalho a fazer pela corte?
Eu, já de braços cruzados e impaciente com essa conversa sem sentido, resmungo:
— Ela tá irritada porque Totor é uma Thereezee melhor do que ela aí ela sabe que vai perder o lugar.
— Mas nunca ouvi tamanho disparate em toda minha vida! Me comparar a este garoto! Absurdo dos absurdos! Exijo que se desculpe agora mesmo, Alteza! — Hector me replica, por reflexo, em sua melhor imitação de Thereezee.
— …
O silêncio chocado se estende no saguão.
Hector arregala os olhos escuros e segura a manga de meu vestido, percebendo que todos o escutaram. Está irremediavelmente encrencado.
Thereezee abre e fecha a boca, parecendo prestes a ter um ataque, o bege-claro de sua pele se tingindo de púrpura.
— Estão vendo, Majestades?! Tamanha petulância… um afronte, um absurdo!
Alexander não consegue mais se conter; escorando-se no encosto da poltrona ao lado, ele treme e se dobra em dois ao irromper em risadas. Alguns nobres tossem. Mamãe pousa uma mão sobre a boca e vira o rosto. Mas papai… ele cerra tanto os lábios e punhos que uma veia parece prestes a explodir na testa.
— Não suporto mais isso. Resolva você, Roxanne — ele diz, num fôlego brusco, dando a volta e se fechando no gabinete.
Mamãe cerra os lábios ao olhar na direção que ele foi. Então suspira, cansada, e se volta para nós novamente retornando a sua impassível pose regencial.
— Realmente, temos muito a fazer hoje. Thereezee, não há porque tanto extremismo por conta de uma brincadeira tão boba, por favor. — Ela se volta para nós e balança a cabeça. — Não obstante, os três devem se desculpar com Thereezee pela indelicadeza. E Alissa: não fique repetindo as grosserias que seu pai diz e tampouco atire nada nas pessoas. Alexander, da próxima vez, tenha a prudência de escolher lugares menos expostos para esse tipo de jogo não ofender ninguém.
— Terei esse cuidado — Axl promete, tentando soar solene, embora ainda trema de rir.
— Mas, Majestade, e-
— Alteza? Alteza, está tudo bem? — a voz feminina parece me puxar debaixo d'água.
Pisco, desnorteada, com minha vista voltando a entrar em foco e percebo as damas me encarando curiosas, cochichando. Os burburinhos do salão se tornam mais altos, como agulhadas na cabeça.
E a servente do castelo, com a mão rosada pousada em meu ombro, aguarda uma resposta, um tanto preocupada.
— Desculpe, o que disse? — Forço a voz pela garganta árida.
— Ainda vai comer, Alteza? Estava encarando o nada tão pálida… alguma coisa na refeição causou mal-estar?
Nego com a cabeça, mas estendo a mão para pegar minha taça de água, que Thereezee aproxima de mim rapidamente. O gosto estranho e doce se desfaz aos poucos, dando lugar a um amargor característico — mas não posso afirmar ter relação com a comida.
— Está tudo bem, pode levar. Obrigada.
A moça faz uma reverência e se retira levando o prato. Thereezee se remexe na cadeira.
— Alteza, não acredito que esteja bem em absoluto. Estive falando com a senhorita por longo tempo e ficou parada encarando o vazio… Deve avisar seus pais que isso vol-
— Apenas não aguentava mais ouvir você falar — resmungo, abrindo e fechando a mão esquerda formigante sob a mesa. — Pare de fazer alarde e ir perturbar meus pais por coisas tão triviais.
Thereezee balança a cabeça, de lábios apertados — mas sei que na primeira oportunidade irá relatar tudo à mamãe, como sempre.
Minha cabeça ainda gira num tornado, a pele formigando como se o sangue voltasse a correr após longo tempo preso. Faz meses desde a última vez que fui assaltada por esse tipo de memória repentina. Num segundo estou aqui e então… o gosto estranho se insinua na boca e um sopro no ouvido… e estou submersa na memória de tal forma que é como reviver tudo nos mínimos detalhes. E quando volto, há só amargura e confusão e dor.
Alexander mal conseguindo rebater os absurdos de Thereezee com a eloquência costumeira por conta da recente crise de riso e a imitação de Hector teria sido de uma nostalgia divertida se meu humor fosse outro… e se na mesma lembrança não revisse nossos pais lidando com tudo da forma mais rápida possível para voltar a afazeres mais importantes — papai se irritando e indo primeiro.
Bebo mais água. Passo discretamente a mão mais fria pelo rosto e base da garganta. Bebo uns goles do vinho.
O amargor continua. As aguilhoadas no peito também.
— Tem certeza de que está bem, Alteza? Ainda parece um pouco pálida… não parece, Gabi? — a voz de Ellana, a duas cabeças de Thereezee, soa terrivelmente aguda nesse momento, mas consigo me impedir de encolher.
Quero responder que não e fugir para o quarto, mas isso só vai piorar tudo.
Se meus pais souberem agora, o anúncio do noivado será feito às pressas, de forma tão ridícula quanto me foi contado, e mais uma vez serei arrastada ao hospital para ser submetida a vários exames inúteis que não apontarão nada além de um possível colapso nervoso. O Médico Real continua sem explicações clínicas para os episódios repentinos de “submersão em memórias”, para o que as dispara ou mesmo a ligação entre elas.
Será só mais uma perturbação que novamente não levará a nada.
Por isso, suspiro exasperada e empurro mais isso para o porão mental, para lidar depois.
— Estou bem o suficiente — digo com tanta polidez quanto consigo reunir, me dirigindo à Ellana.
A garota de cabelos cacheados cor de mel, só um pouco mais escuros que a pele castanho-dourada e olhos castanhos, é alguns meses mais nova que eu. Ellana faz parte de um seleto grupo de damas da corte que não me esgotam a paciência em bajulações vazias. Em alguns momentos, me pergunto como seria fazer parte de seu pequeno grupo de amigas, ter com quem desabafar e rir e compartilhar segredos… Mas, diferente de como acontecia com Gustav, que nos víamos com frequência pela biblioteca por conta de seu cargo, meus horários livres geralmente só coincidem com os das garotas durante eventos e o jantar.
Por que se dar ao trabalho? Sabe que só iriam suportá-la por conta de sua posição.
Trinco os dentes para a constatação da torre.
— Perdão pela intromissão, Alteza, mas ouvimos dizer que o senhor Troyán vai pedir um posto de guarda para continuar no palácio e se reaproximar da princesa… é verdade? — uma das garotas toma coragem para a pergunta ao ver que respondi Ellana.
— Não imagino por que eu saberia ou teria interesse no que inferno Gustav pretende fazer — replico, franzindo a testa para a garota de cabelos acobreados que não recordo o nome.
— Então realmente não vai dar uma nova chance ao rapaz? — Thereezee, claro, torna a se intrometer.
— E qual seria o seu interesse nisso, Thereezee? — retruco, torcendo o guardanapo sobre o colo. Ela é tão incapaz de me deixar sossegada por um segundo?
A mulher se empertiga.
— O de qualquer outro súdito, Alteza: em breve assumirá o trono e precisará se casar. Não é melhor que faça isso com alguém que goste da senhorita? É mais do que alguns aqui conseguem — diz ela, erguendo o queixo pontudo. — O senhor Troyán não é o herdeiro e vem de uma longa linhagem respeitável de baronetes. É bom o suficiente para consorte. Tenha os pés no chão!
Uma risada seca me escapa enquanto tudo dentro de mim se revira. De todas as bizarrices do dia, ainda preciso lidar com um “conselho” matrimonial de Thereezee?
Sem mencionar…
— Não sabe de nada então — bufo.
— Alteza, uma dama não deve ficar bufando… E não sei sobre o quê? — ela replica, tentando manter o ar de austeridade digna, mas é visível que está incomodada.
As outras damas parecem mais interessadas na conversa do que nos pratos de carne postos diante de nós.
Bufo novamente.
— Se nem meus pais se deram ao trabalho de falar para você, não serei eu a fazer isso — digo, forçando um sorriso desdenhoso apenas para provocá-la, embora também me surpreenda que mamãe nunca tenha contado a ela. — Cuide de sua maldita vida, não está em posição de me dar conselhos pessoais.
— Alteza, é extremamente rude responder com esse tipo de grosseria a um conselho. Mesmo que não solicitado, digo isso para seu bem. Terá de se casar um dia e dificilmente encontrará alguém que seja apropriado a sua posição e isento de erros ao mesmo tempo — replica, seu tom agudo e comedido. — O senhor Troyán reconhece o próprio erro e a senhorita deveria ao menos ouvi-lo apropriadamente… é de espantar, com a quantidade de historinhas românticas e bobas que seu irmão contava, que não tenha aprendido ao menos a rejeitar a declaração apaixonada de alguém com mais gentileza. Deve-
A menção ao Alexander me acerta como uma nova flechada flamejante. A derradeira.
Bato na mesa com as duas mãos e me impulsiono da cadeira. Uma taça tomba e o estilhaçar do cristal ecoa o de minha armadura.
— Alte-
— Não ouse… — A respiração passa chiando por entre os dentes quando me inclino para Thereezee. A caldeira dispara, bombeando sangue fervente para minha cabeça. — Não ouse mencionar Alexander nesse tom irônico.
— Não estou-
— Estou farta de seus conselhos e de você sempre se intrometendo em tudo. Vive dizendo a todos para que se coloquem no próprio lugar, mas parece não lembrar o seu — sibilo. O corpo inteiro arde, e maior parte desse calor se concentra no centro do peito e na lateral da mão esquerda.
Thereezee comprime os lábios finos e dá uma olhadela nervosa na outra mesa. Então volta para mim, constrita.
— Alteza, isso não é hora nem lugar-
— Alissa! Sua mão está… — Annabella arfa, tão surpresa que esquece do desagradável tom pomposo.
Baixo o olhar para onde sinto a ardência formigando. Um fio de sangue escorre devagar até a pequena poça de água. Apenas um pedaço da taça se partiu com a queda, mas claro que ia encontrar minha pele.
— Alteza, deve-
— Crie vergonha na cara antes de voltar a me dirigir a palavra, Thereezee — corto, com um bufo, pegando o guardanapo reserva.
Dou as costas para a mesa de jantar, ignorando o olhar fulminante de meus pais e os cochichos dos outros nobres enquanto me afasto para a Sala de Jogos pressionando o corte com o lenço.
A sala não é muito grande: uma mesa de sinuca ao centro, duas mesas redondas para jogos de carteado e tabuleiros a um canto, um alvo de dardos e um grande armário — onde estão guardados os jogos e uma maleta de primeiros-socorros para pequenos acidentes.
Coloco a maleta sobre a mesa de sinuca e avalio o ferimento.
Apesar de o sangue ainda brotar, o corte é minúsculo. Nada para causar desespero.
Torno a pressionar o lenço sobre ele. Com a mão esquerda virada, expondo o pulso à forte luz artificial da sala, a antiga cicatriz diagonal de cinco centímetros é visível sob a renda preta — um lembrete debochado e encorajador ao mesmo tempo.
Desde aquela madrugada de seis meses atrás — quando, de forma patética, minha mão vacilou na água de um dos vasos quebrados e precisei lidar com tudo sozinha até ser capaz de sair da suíte para pedir ajuda aos guardas e ser levada ao hospital; e então suportar os malditos pontos que horas depois Gustav apertou — qualquer cortezinho como o de agora é insignificante, mera chateação. O ardor não passa de um formigamento, que por breves segundos se intensifica para um latejar agudo quando espirro o anti-inflamatório cicatrizante.
Antes de guardar a maleta, passo uma leve camada de pomada nos hematomas que começam a surgir em meus braços, onde apertei as unhas. Ao menos estes serão encobertos pelo vestido amanhã. Minha mão, por outro lado… Faço uma careta, antevendo como todos os convidados vão apertar justo a mão machucada — como se não bastasse ser ímã para vidro.
A raiva ainda borbulha, mesmo após a pequena explosão, e se mistura ao sangue de feridas reabertas pela lembrança repentina. Embora permanecer nesta sala — que tem o eco de nossas risadas infantis gravadas nas paredes azuladas — cutuque ainda mais estas feridas, voltar para o jantar será ainda pior. Por isso, aproveito a solidão para lidar com o turbilhão de emoções misturadas de uma das poucas formas que sei: atirando dardos.
A perturbação de Gustav. Os boatos me ligando a Escórpio. Os sussurros da torre. Thereezee. Annabella. A constante falta de tempo de meus pais e o modo que resolvem as coisas. A saudade inflamada pelos únicos amigos que fui capaz de ter…
Cada pensamento e lembrança que sobe à mente é descarregado no dardo, arremessado e atingido. De novo e de novo.
E de novo.
Diferente do rompante na suíte, não há nenhum dardo desperdiçado no chão.
Já estou quase ao fim da terceira rodada, com ambos meus braços doendo pela alternância e força com que jogo, quando escuto passos entrando na sala. A pessoa não diz nada, mas até mesmo o olhar silencioso me enerva, cutucando minha nuca.
Trinco os dentes e atiro com mais força.
Então fico de mãos vazias novamente, a respiração arfante. Uma fina camada de suor frio me cobre a pele, mesmo com o vento constante das duas janelas escancaradas, e meus braços tremem um pouco. Mas posso continuar jogando isso noite adentro, até drenar o suficiente da lava corrosiva em meu peito… ou até ficar tão exausta que seja incapaz de levantar os braços.
— Sinto até pena da pessoa a quem dirige toda essa raiva — o intruso comenta, e reconheço o tom que é uma mistura de diversão e assombro.
Minhas costas enrijecem e trinco os dentes com mais força. Três partidas não foram suficientes. Minha paciência é vapor e sou incapaz de reerguer uma nova armadura de fria polidez para aturar qualquer pessoa, mesmo o rapaz que me ajudou a não cair de forma patética no corredor.
— Não estou com paciência para mais conversas, então-
Minha voz morre de brusco quando me viro e o encaro.
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