Apesar do meu estômago, me forço a engolir colherada após colherada da sopa de abóbora e da salada servidas no primeiro e segundos pratos, enquanto ignoro as vinte e cinco damas fuxicando sobre seus pratos.
O salão conta com duas mesas: a principal, na qual meus pais e convidados da noite ficam. E a das damas “em treinamento”, onde ficam relegadas aquelas que vieram para a corte estudar e debutar, e são ainda menores de idade ou solteiras. E onde estou presa até a coroação e o casamento… se não houver um desvio dos planos.
Sentada na cabeceira, por conta da minha posição, os comentários e especulações sobre meu humor, vestimenta e os boatos espalhados chegam até mim como pedrinhas arremessadas contra uma vidraça: irritantes, mas sem potencial para estrago.
Até que alguém decide ser mais ousada.
— Alteza, é verdade que o senhor Troyán teve permissão de voltar a frequentar a corte? Vão se reconciliar? — pergunta uma garota de cabelos pretos, quase na outra ponta da mesa. Deve ter uns quatorze anos, idade mínima para começar o treinamento na corte.
Lanço apenas um olhar gelado até ela.
Em dias razoáveis, seria capaz de responder a esse tipo de intromissão banal com uma resposta curta e minimamente polida. Mas hoje não é desses dias — e a maioria das garotas que estão aqui há mais tempo conseguem perceber isso. Uma outra garota a repreende.
— Senhorita Graffín, cuidado com o palavreado! Não são modos para o jantar, e tampouco para uma dama, repreender uma colega a chamando de “burra” — Thereezee adverte a segunda garota, usando de seu tom severo de costume. E ouvidos capazes de captar ruídos mínimos. — E, princesa Alissa, não revire os olhos e tampouco bufe para mim. Coma direito seu jantar, precisa se alimentar direito para aguentar o baile amanhã!
Forço mais comida para dentro, apenas para ela me deixar em paz.
Funciona, por ora, e Thereezee volta a prestar atenção nas garotas mais novas que chegaram recentemente à corte. Sendo Dama-Real, braço direito de minha mãe, ela tem certo prestígio na corte, e por isso fica à minha esquerda. Os cabelos castanho-claros, pendendo para o acaju, sempre presos num apertado coque alto e a pose austera passam a impressão de uma senhora de setenta anos, embora ela tenha apenas quarenta e oito.
O terceiro prato é servido.
Os fuxicos voltam a ganhar ânimo. E a curiosidade se torna mais forte que a noção.
— Alteza, é verdade que esteve se encontrando com o príncipe Escórpio? Estão tendo um caso?
— Repararam como ele não parava de olhar para a princesa enquanto ela conversava com o senhor Troyán…? Mas estão falando que não seria permitido pela posição de herdeiro dos dois. É por isso que está de luto, Alteza? Todo mundo está dizendo-
— E nada disso é da conta de ninguém — retruco, a voz saindo mais como um rosnado do que a polidez gélida pretendida.
As damas piscam, surpresas por um segundo, e voltam a cochichar lançando mais olhares, discutindo se minha resposta foi algum tipo de confirmação.
Aperto a saia com a mão esquerda sob a mesa. Se eu tivesse acertado Escórpio com um livro mais cedo, talvez não estivesse aturando esse tipo de coisa agora.
— Se não queria esses comentários, não deveria se encontrar num lugar tão público quanto a biblioteca — Annabella se intromete, usando o tom de superioridade aprendido com Thereezee.
— E se não quer salmão em seu cabelo, não deveria me dirigir a palavra — devolvo, lançando a ela, à minha direita, um olhar incisivo.
Annabella crispa os lábios rosados, incerta se eu me rebaixaria a isso. Com o rosto redondo de lua, os cheios e ondulados cabelos e os característicos olhos verde-mar, ela é, aos quinze anos, o “lírio da corte”. Ter peixe em seus lustrosos cabelos dourados não condiz com a imagem de perfeita dama.
Thereezee arfa.
— Alteza, isso é um absurdo! Jamais ousaria tal coisa! — E toda empertigada, acrescenta: — A rainha me instruiu a deixá-la quieta durante o jantar-
— E por que está descumprindo?
— …mas tenho certeza que isso era válido apenas no caso da Sua Alteza se comportar devidamente. O que não é o caso! Deveria ter mais cuidado com suas atitudes, se não aguenta lidar com os comentários. É uma vergonha que a herdeira ao trono tenha tais atitudes em qualquer situação, mas à véspera de um evento tão importante como o de amanhã é inadmissível!
Reviro os olhos e me forço a comer algo apenas para ocupar as mãos enquanto a torneira verbal de Thereezee começa a jorrar sermões — embora eu possa dar um crédito por ela ter se segurado por dois pratos inteiros.
— …dar o exemplo! Sua irmã, mesmo sendo mais nova e não estando na posição de herdeira, é bem mais consciente das próprias atitudes que a senhorita.
Bufo em desdém.
— Com certeza. A exemplar Annabella. Me diga então, minha irmã, onde no jardim eu deveria me encontrar? E com o namorado de quem? — Viro-me na direção dela, com sorriso cínico, enquanto o gosto do vinho se torna enjoativamente doce.
— Já pedi desculpas por isso — ela grunhe entredentes, o rosto ficando mais rosado, se em irritação ou vergonha pelas outras damas voltarem o olhar para ela, não sei.
— Porque foi obrigada. Grande gesto.
Annabella abre a boca, mas não responde, voltando ao seu prato e se escondendo entre a vasta cortina dourada dos cabelos.
Bufo novamente, um cutucão abrasivo no peito.
Nunca fomos próximas, não como fui com Axl; ela nunca podia brincar conosco, não podia “se misturar a nossa agitação” devido à saúde delicada nos primeiros anos de vida — como Thereezee fazia questão de ressaltar sempre que tentávamos nos aproximar. E cada nova tentativa, nos últimos sete anos, só parece aumentar o abismo entre nós — semelhante ao que acontece com papai, o tom sempre parece sair errado. Até mesmo as vezes que me esforço para cuidar de seu bem-estar e segurança, tentando manter os olhares de rapazes mais velhos longe dela, é tomado como… não faço ideia. Competição? Perseguição?
Tampouco entendo o que a fez beijar Gustav.
E embora ainda impeça qualquer estúpido recém-saído da Academia de se aproximar dela, tenho feito isso mais à distância para me poupar de novas discussões. Já estou no limite de paciência para acreditar que um dia seremos capazes de nos entender.
Por que continuar tentando?
Meu estômago gira.
E Thereezee ainda está falando.
— …erro como de sua irmã não deve ser usado como justificativa para a série de erros e grosserias que comete de propósito, Alteza — ela diz, batendo com o longo indicador direito na mesa de mogno. — Se seus pais tivessem me ouvido a tempo e a deixassem sob meu cuidado integral desde cedo, como com sua irmã, em vez…
Thereezee fala e fala. As damas cochicham e cochicham.
Suas vozes se tornam um zumbido distante e o gosto estranho e familiar, doce e enjoativo — sem qualquer relação ao vinho ou aos acompanhamentos do peixe — se intensifica.
Meu estômago se encolhe e os batimentos tropeçam.
Inspiro fundo, agarrando a borda da mesa, tentando me firmar.
Algo sopra em meu ouvido esquerdo.
Num piscar, o salão e os convidados estão desfocados.
No outro…
A chuva outonal bate contra as janelas da Sala de Jogos, mas é abafada quando eu e Alexander irrompemos em risadas. Me jogo de costas contra as almofadas do banco sob a janela, onde já estava esparramada. Axl se dobra em dois, caindo dramaticamente de joelhos no chão, segurando a barriga.
— Chega… chega! Me rendo… você leva essa, Santi! — ele declara, usando o braço livre para bater no banco e indicar derrota.
— Se render! Isso é atitude de um príncipe-herdeiro? Ora, francamente, Alteza! — Hector replica, em falsete empertigado, imitando com perfeição o tom e trejeitos afetados de Thereezee.
Alexander se sacode numa gargalhada aguda, o rosto avermelhando.
Por conta da típica chuva de início de dezembro desabando sobre Thempesta, somos obrigados a ficar reclusos no palácio. Os meninos decidiram fazer o espetáculo-competição de imitações, no qual sou relegada — por ser a mais nova e não ter talento para o jogo — a sortear os nomes dos membros da corte e marcar os pontos na pequena lousa em meu colo, enquanto meu pato de pelúcia, Peto, é a plateia.
A disputa estava acirrada até que o nome sorteado foi o de Thereezee.
Assim que Hector prendeu os cabelos no coque alto, ergueu o queixo e pôs a mão na cintura, Axl começou a declarar derrota.
— Princesa, está ouvindo? Não esqueça de marcar minha vitó-
— Que algazarra está acontecendo aqui? — Thereezee, a verdadeira, adentra a sala e vê-la faz Axl rir ainda mais. — Alteza! Que modos são estes? Recomponha-se! Princesa, isso não é forma de uma dama sentar! E você, garoto-
Os olhos amendoados de Thereezee se estreitam ao ver Hector — que se cala no susto da entrada dela. Numa rápida vistoria, ela nota os papeizinhos com nomes e o quadro de placar, a toalha de mesa ao redor dos ombros de Axl, o coque de Hector… E então a agarra a orelha direita dele.
— Isso é um disparate! Os três estão sem qualquer noção de controle ou modos. O rei e a rainha precisam tomar uma providência, antes que seja tarde… Para a biblioteca, os três!
— Eles estão em reunião e sabe o quanto papai odeia que vá perturbá-lo. Não há necessidade disso — Alexander diz, se levantando e tentando forçar uma compostura mesmo que o rosto ainda esteja vermelho e ele, ofegante. — Solte-
— Solta ele! — mando, saltando do banco e atirando o toco de giz branco em Thereezee. O projétil improvisado a atinge no peito, marcando o veludo terroso do vestido. — Não tem vergo…vergonha… como é mesmo, Axl?
— Vergonha na cara? — Alexander adivinha, com sorrisinho.
— Isso! É o que papa-
— Altezas! — Thereezee protesta, largando Hector para espanar o vestido, mas só aumentando a mancha de pó. — Isso é um ultraje! Os três! Já! — Ela aponta para a porta, branca de cólera.
Antes que ela possa agarrar novamente a orelha de Hector, Axl o puxa para perto de si e faz o mesmo comigo, envolvendo nossos ombros de forma protetora. Me espicho para puxar pela pata meu pato de pelúcia antes de sairmos da sala. Como carcereira, Thereezee segue ao nosso lado com passos duros e punhos cerrados. Troco um olhar com Hector — os seus castanhos, arregalados em apreensão desde a aparição da mulher — mas ele balança a cabeça; ela está muito perto, não conseguiremos sair correndo.
Tento me consolar com a certeza de que Thereezee está nos arrastando à toa. Nossos pais não vão interromper uma reunião importante para lidar com algo tão besta relacionado à nós… mas quando chegamos na biblioteca, eles estão no saguão menor, acompanhado de um punhado de nobres.
Papai, com os cabelos dourados eriçados e o casaco sobre os ombros largos, presos apenas por uma corrente prateada, já está com a testa franzida em impaciência antes mesmo de perceber nossa aproximação.
— Majestades, sinto em interromper-
— Então não interrompa.
Mamãe, parada ao seu lado usando um vestido lilás que se molda ao corpo de curvas mais largas, lança ao papai um afiado olhar de advertência antes de se voltar para sua dama com um suspiro cansado, mas cordial.
— Pois não, Thereezee? — Ela repara a marca de giz e nossa presença, e parece ainda mais cansada. — Por Solluas, o que foi agora?
— Esses três, majestades! Estão incorrigíveis! Precisam fazer algo imediatamente antes que se torne irreversí-
— Pare de sentenças dramáticas e vá direto ao ponto, Thereezee, temos mais o que fazer — papai corta, apertando a ponte do nariz. — Qual crime eles cometeram agora? Alexander, o que estavam fazendo? E por que inferno estão vestidos assim? — gesticula para os meninos.
Eu e Hector empurramos levemente Alexander, confiando em sua lábia para defender nossa versão.
— Estávamos na sala de jogos brincando de encenações, nada demais. E então…
— Diga o que estavam encenando, Alteza! — Thereezee intima, cruzando os braços. Mas ela não dá tempo para ele responder. — Estavam imitando membros respeitáveis da corte como se fosse piada!
Mamãe arqueia uma sobrancelha para Alexander e ele encolhe os ombros.
— Um jogo inocente de encenações, como eu disse — repete, com voz ainda marcada pelo riso recente.
— Inocente! — Thereezee protesta, indignada. — Majestade, quando cheguei, o príncipe estava jogado no chão e a princesa esparramada no banco de forma nem um pouco adequada e este garoto… abusando de toda consideração e respeito… estava nestes modos vergonhosos imitando a mim! E quando o repreendi, com todo direito, a princesa atirou um giz em mim e-
— Perguntei se ela não tem vergonha na cara — completo, orgulhosa de mim mesma por conseguir lembrar a expressão dessa vez. Alexander tem um engasgo de riso e o abafa com a mão. Meus pais viram para mim, sobrancelhas erguidas. — Mas ela não tem, ué! Papai vive dizendo isso.
— Alissa! — mamãe repreende a mim, mas lança o olhar acusatório para papai, que cerra os punhos e os lábios.
— Majestade, isso é só mais um indício do que venho dizendo desde o começo — Thereezee aponta, empertigada. — É absurdo permitir que estes três passem tanto tempo juntos. A princesa só tem a se prejudicar a longo prazo ficando apenas na companhia de garotos, sem qualquer freio… o príncipe até a ajudou a terminar a frase para me chamar de sem-vergonha! Até mesmo a princesa Annabella tem mais modos.
— Annabella tem dois anos, Thereezee — papai a lembra, vincando mais a testa.
— Justamente! Até um bebê tem mais modos! Percebem o problema? — ela replica, e os nobres-urubus murmuram em aparente concordância. Aperto a asa de Peto enquanto Thereezee continua: — Sem mencionar que o príncipe já tem doze anos. Não é cabido que continue brincando com crianças desse tamanho. Seria de esperar que, com toda sua inteligência prodigiosa, e sendo o único a quem esses dois escutam, ao menos usasse sua influência para corrigi-los… mas não! Ri das tolices dos dois, o que só os torna mais incorrigíveis!
— Majestades — um conde, membro do conselho, se intromete. — Devo manifestar minha concordância com a Dama-Real desta vez. Entendo que por quase não haver crianças na corte, eles tenham se aproximado, mas… já fazem demais acolhendo o garoto para aprender na corte. Permitir tantas liberdades, como um quarto na Ala Familiar, só porque o príncipe se afeiçoou a ele é um tanto imprudente e só reforça os boatos sobre ele ser filho bast… — O homem se interrompe ao perceber que Hector o olha curioso, as grossas sobrancelhas franzidas. — Bem, conhecem os boatos…
— Exatamente, Majestades, não tem cabimento. Como este garoto pode ser boa companhia para dois membros da realeza? — Thereezee gesticula para o coque e fantasia de Hector, que parece querer se esconder dentro do casaco.
Me ponho diante dele, olhando feio para Thereezee, apertando mais o Peto e ela franze os lábios.
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