Se a situação fosse outra — se eu não estivesse concentrando cada fibra de força para impedir que o fogo borbulhante no peito irrompesse — teria gargalhado do nível de cafonice da declaração. Mas não há mais espaço em mim nem mesmo para bufar em desdém.
Não me dou ao trabalho de virar-me dessa vez, dizendo por sobre o ombro:
— Morrerá tentando.
Gustav não consegue replicar nada, apenas percebo seu choque de relance. Os olhos verde-oliva permanecem pregados em minhas costas quando percorro o espaço que falta até a sacada.
Largo o anel para agarrar com ambas as mãos trêmulas o parapeito de pedra lioz. A brisa fria acaricia minha pele ao mesmo tempo que chicoteia meus cabelos.
E, ainda assim, o ar é insuficiente.
O coração consome todo meu fôlego como uma caldeira incendiária a pleno vapor.
O céu é apenas um borrão de nuvens carregadas e as luzes da cidade são pontinhos indistintos através das lágrimas me espicaçando.
Não posso gritar.
Não há nada ao meu alcance imediato para atirar — e mesmo se houvesse, não poderia fazê-lo aqui.
Não faço ideia de quanto tempo tenho para me recompor. O jantar atrasou alguns minutos por todos estarem entretidos na minha conversa com Gustav, esperando por um espetáculo como o do ano passado, ou foi apenas na minha cabeça que ela durou uma eternidade?
Jantar… Se antes do encontro com Gustav já tinha minhas dúvidas se seria capaz de comer algo, agora meu estômago se revira e se aperta e queima.
Queria poder me encolher no canto da sacada e esperar até a maré borbulhante de raiva frustrada — e tudo que ela traz — passar. Mas permaneço de pé, a coluna tensa recebendo as flechadas de dezenas de olhares que aguardam qualquer sinal de descontrole. E por continuar sustentando a armadura ao meu redor, trancando tudo dentro, o mar de lava corrói a mim.
Levo a mão em direção ao peito e agarro o anel e a medalhinha ao mesmo tempo, no esforço de tentar ancorar a respiração e os pensamentos; no esforço de não arranhar a pele exposta no colo para arrancar a flecha flamejante e invisível cravada no centro do peito.
Por que meus pais simplesmente não interferiram? Adoram fazer isso quando bem entendem. Por que permitiram que Gustav voltasse à corte? Dane-se se o delito dele não foi compatível a uma pena criminal, ou que sua mãe seja uma das fidalgas, parte do Conselho.
Por que o permitiram voltar justo hoje?
Não previram que ele poderia causar alguma cena ou que eu ficaria irritada por vê-lo?
E agora preciso ficar aqui fora… me contendo e queimando… para não causar qualquer escândalo diante dos convidados.
Que tipos de histórias já estão especulando após o pequeno espetáculo oferecido por Gustav? Como estão costurando ao boato de meu encontro com Escórpio na biblioteca? E isso porque ainda nem sabem do noivado…
Levo a outra mão cerrada à boca, mordendo o indicador com força para trancar o grito frustrado que implode apenas dentro de mim.
O que a prende aqui, afinal?
Vai passar o resto da vida se sacrificando pelos outros enquanto está presa a um casamento com alguém que foi escolhido para você?
A torre não para de ecoar, a voz cavernosa por vezes se misturando a retalhos da conversa com Escórpio.
E, mesmo com o incêndio no peito, gelo escorre pela espinha.
Como vou me casar com alguém se nem mesmo com Gustav, com quem namorei por cinco meses, fui capaz de sentir o que as pessoas supostamente devem sentir num relacionamento amoroso? Beijos, abraços e toques ocasionais não me incomodavam tanto, mas qualquer coisa além disso… Os sentimentos e sensações e atos que são descritos das mais diversas formas nos folhetins românticos… Até mesmo imaginar ter isso com ele era estranho e desconfortável.
Por isso, quando meus pais estabeleceram como condições para o namoro nunca irmos sozinhos aos jardins ou que só podíamos ter privacidade em espaços em que as pessoas estivessem a poucos metros, não fiz qualquer objeção. Para mim, isso estava bom. E Gustav nunca expressou qualquer reclamação ou tentou me convencer a burlar isso, embora algumas vezes aparentasse certa frustração.
Na verdade, sua reclamação mais frequente era em outro aspecto.
“Não confia em mim, mas se agarra à lembrança de quem já a deixou há anos! Confia mais em quem não está aqui do que em mim, que estou!”
Embora isso me irritasse, também machucava… porque não era mentira.
Se estávamos namorando, não deveria ser mais fácil me abrir, confiar nele? Antes do namoro, nossas conversas corriqueiras pela biblioteca eram mais leves e me divertiam, era a primeira pessoa na corte com quem conseguia conversar de forma descontraída e natural. Quando aceitei o namoro, imaginei que iria continuar assim… mas então já não parecia mais o bastante. E algumas coisas que pareciam ser tudo bem quando éramos amigos, não o eram mais quando mudou a nomenclatura.
Por que nunca tirava aquelas joias… aquele anel?
Por que precisava ficar sozinha nos aniversários de Alexander?
Qual o sentido de continuar o relacionamento se não permitia que ele estivesse ao meu lado quando eu estava mais sensível?
E o pior é que, de tanto ele reclamar, comecei a cogitar que talvez só achasse estranho tê-lo comigo nos aniversários de Axl porque estava acostumada a ficar sozinha desde os onze anos… que se não desse esse voto de confiança, iria perder a única pessoa com quem ainda conseguia conversar.
E então o vi no jardim com Annabella. E mesmo que suas mãos estivessem suspensas ao lado do corpo quando ela o puxava, ele estava correspondendo. Os olhos até mesmo estavam fechados…
Balanço a cabeça para mim mesma, tentando varrer as lembranças intrusivas do relacionamento para longe. A discussão recente e o vestígio da mão suada de Gustav ainda impregnado em meu pulso esquerdo, ultrapassando a renda até a cicatriz, é lembrança mais do que o suficiente. Mas, com isso, o noivado eminente volta ao primeiro plano dos pensamentos caóticos… e, invariavelmente, meus pais também.
Eles impuseram centenas de regras de segurança para permitir meu namoro com Gustav, mas e quanto ao tal noivo? Só porque fomos prometidos quer dizer que estará tudo bem eu ficar sozinha com ele no quarto?
Sozinha no quarto com ele…
Um calafrio me desce e abraço o corpo.
Escórpio ao menos não tem pretensões desse tipo comigo, como um marido se achará no direito de ter. Apesar da mania irritante de agarrar meu pulso ou me abordar em lugares escusos, ele nunca fez qualquer tipo de investida tampouco me olhou com malícia. Se ao menos conseguisse que ele parasse de me tocar… e de falar.
Qual seria a reação de Escórpio se eu concordasse em fugir contanto que ele fizesse voto de silêncio?
Até parece que ele seria capaz, bufo para mim mesma.
Mas a outra opção…
Apenas respire. Não pense nisso agora
É mais fácil escutar o bom-senso do que segui-lo.
O vento com cheiro de morangos me envolve, mas não preenche; o corpete ainda parece mais apertado do que deveria. A cabeça gira com o redemoinho de pensamentos e lembranças que, se permitir, irão me consumir tanto quanto o núcleo de fogo no peito. Algumas lágrimas escorreram, fora de meu controle, e foram carregadas pelo vento; graças a isso, as luzes da cidade agora parecem mais nítidas.
Muitas mais luzes do que o normal, na verdade, por conta das lanternas para o Festival de Primavera, daqui dois dias.
Involuntariamente, viro a cabeça para a direita, para o canto oposto da sacada. Muito tempo atrás, eu e Hector — então com seis e oito anos — nos esprememos ali, entre implicâncias murmuradas e cotoveladas competindo por espaço, na esperança de conseguir qualquer ruído ou vislumbre do festival e mal notamos a aproximação de Axl.
“Estão quietos demais aí, patinhos. O que estão tramando agora?”, ele falou, se abaixando perto de nós dois, tentando descobrir se o jogo da vez colocaria nossas vidas em risco. Quando contamos, atropelando o outro como sempre, Axl se levantou e avaliou as luzes distantes; o sorriso foi se espalhando lentamente, denunciando que a cabeça estava trabalhando em algo brilhante. “É impossível ver qualquer coisa daqui… E se formos até lá?”
Fecho os olhos, murmurando a melodia familiar de uma de minhas caixinhas para tentar bloquear a nova invasão de lembranças. As memórias desse tempo estão por todo lugar, como pedaços de vidro colorido e afiado. Letais.
É menos difícil lidar com a raiva e seu calor corrosivo do que com as saudades.
— Com licença, Alteza? — uma voz masculina desconhecida chama, cauteloso, por trás de mim. — Perdão pela intromissão, mas o jantar já será servido e aguardam sua presença.
— Estou indo — digo com o fiapo de fôlego que consigo reunir ao me recuperar da surpresa.
Respire
Inspiro tão fundo quanto possível e discretamente passo a mão pelo rosto, me certificando de que o vento secou qualquer vestígio de lágrima.
Só falta mais um pouco para a noite acabar… Mas isso não é exatamente um consolo considerando o que me espera durante e após o jantar.
A raiva reduziu minha armadura a uma fina e frágil camada e não sei por mais quanto tempo sou capaz de mantê-la quando já está tão cheia de rachaduras.
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