A poucos metros do salão, meus pés se enraízam no chão. Aperto a saia com força. O burburinho ininteligível das conversas se junta ao zumbido interno.
Mamãe me alcança e para ao meu lado por um segundo, apenas para um último olhar de advertência. Controle-se e entre, é o que as íris esverdeadas dizem. É sábia o suficiente para não pronunciar as palavras em voz alta, já que não estamos mais na segurança familiar do quarto.
Não, esse é o coração da Corte Real.
E hoje, além dos nobres de costume, há os que já chegaram para prestigiar a Princesa-Herdeira em seu baile de aniversário, o último antes da coroação… ou apenas o último que irão presenciar.
Mamãe, de queixo erguido e pose majestosa, a rainha encarnada, entra no salão.
Me obrigo a inspirar profundamente, empurrando o magma entalado no peito para um porão.
Só preciso passar por essa noite e então terei tempo para pensar melhor; são só algumas horas, prometo a mim mesma.
Alexander costumava falar sobre usar a imaginação para ajudar a passar por situações complicadas; criar cenários e soluções e usá-los como escudo mental. Respiro fundo mais uma dezena de vezes, a cada inspiração vestindo uma peça da gélida armadura de indiferença, feita sob medida para enfrentar a corte. E, com a pose de herdeira que esperam encontrar, percorro os últimos metros e atravesso a porta.
O salão mais usado para jantares e para passar tempo em noites corriqueiras é mediano e vagamente pentagonal, em tons pasteis de azul, branco e salmão. Mesmo que a corte esteja mais cheia, não é o suficiente para o lugar ficar apertado. Mas é o suficiente para eu me sentir sob uma lupa quando dezenas de olhos se voltam em minha direção.
Como na biblioteca, finjo não sentir e vasculho o salão, procurando papai para a obrigatória reverência.
O primeiro lugar para qual meus olhos gravitam é o aparador de bebidas, quase imediatamente em frente às portas, do outro extremo do salão. Mas, em vez de encontrar papai conversando com algum nobre, vejo um rapaz de sobretudo preto com rosto virado e ombros sacudindo no que parece um acesso de tosse, desgarrado do punhado de rapazes me encarando de forma desconfortável.
A poucos metros do rapaz engasgado avisto meus pais.
Papai está com uma fechada sobrecasaca azul-escura que, de alguma forma, mamãe o convenceu a usar da forma “correta” essa noite. Ele franze a testa para mim enquanto mamãe, que mal lhe alcança o ombro, segura seu braço e fala algo — provavelmente o teor de nossa conversa.
Inclino a cabeça numa reverência dura, para não levantar mais cochichos, e me viro na direção oposta.
Para os janelões e a sacada.
Apesar de ser costume descer para o salão às sete, o jantar só é servido às oito. Ainda tenho uns minutos. Quinze minutos, se for o cronograma de sempre. Quinze minutos de aflição silenciosa na qual o nó em meu estômago vai continuar se apertando mais e mais enquanto preciso fingir que nada está…
— Alissa — a voz familiar me chama quando ainda estou a meio caminho.
Me viro por estúpido reflexo.
Os olhos verde-oliva de Gustav me fitam de cima à baixo e ele franze a testa.
— Vai a algum velório?
— O seu, se não me deixar em paz.
Viro as costas e volto a andar.
Ele me chama novamente.
Por que inferno Gustav está aqui?
Desde nosso término dramático, raramente voltei a cruzar com ele, que nem mesmo estava frequentando a corte. Por que hoje, justo hoje, ele decide reaparecer?
— Ei, espera. Sei que está me ouvindo. Só quero conver-
— Do que me importa o que você quer? Não tenho nada para falar com você! — Me viro de brusco, no pulsar de uma veia na têmpora, e minha voz sai um pouco menos controlada do que deveria.
Gustav se sobressalta e retrocede um passo, a pele branca parecendo cera e destacando algumas das sardas. Mas ele logo se recompõe do susto.
— Não precisa falar nada, então. Tenho direito a me defender, só peço que escu-
— Direito de se defender você diz… E o que você teria a dizer em sua defesa? Encontrou uma nova forma de tentar me convencer que “não vi o que acho que vi”?
— Sim — ele diz, de imediato, e então arregala os olhos quando arqueio a sobrancelha. — Quero dizer, não! Não é isso que quis dizer. Mas que droga… — Ele passa a mão nos cabelos loiro-escuros, mais curtos do que costumavam ser, bagunçando o topete, mas ele parece não ligar. — Escuta, eu juro que não traí você, foi tudo um mal-entendido terrível e um azar você ter apenas apa-
Uma risada seca me escapa, e Gustav se interrompe e retrocede outro passo, engolindo em seco. Ele divisa rapidamente ao redor, como se a presença de uma plateia fosse garantia para não levar um soco… embora isso de nada tenha servido na última vez.
Minhas mãos formigam e tremem, desejando ir de choque contra ele, mas cruzo os braços e cravo as unhas neles — segurando à força a armadura de gelo no lugar.
— Você é… inacreditável. Depois de meses essa é sua defesa? — digo, forçando o tom a se manter estável mesmo que o ar soprando das janelas pareça não me alcançar e o corpete do vestido tenha se tornado insuportavelmente apertado. — Foi um terrível azar eu ter visto você beijando minha irmã?
— Não! Sim, mas… não. Eu não… — Ele se interrompe, ficando ainda mais nervoso quando arqueio uma sobrancelha para as gaguejadas. Gustav esfrega as mãos uma na outra e depois nas calças cinzentas, enxugando suor. — Não fui eu quem beijei ela, droga! Foi ela quem me beijou. E o azar foi de você ter visto quando eu ainda estava surpreso demais para-
— Surpreso demais para afastar uma garota menor que você, mas não surpreso demais para retribuir? Entendi — bufo, forçando um ar de desdém enquanto finco com mais força as unhas arredondadas na pele.
— Mas eu afastei ela! Droga, Alissa, acha mesmo que seus pais me deixariam livre por aí se eu tivesse forçado essa situação? Pergunte a ela, como seus pais fizeram! Acha mesmo que eu seria capaz de beijar uma garota de catorze anos?! O que pensa que eu sou?
O burburinho na corte se espalha e Gustav se encolhe ao perceber que falou alto demais. Cerro os lábios, trinco os dentes, aperto os braços.
Se controle se controle se controle. Não dê esse gosto a eles, não dê mais munição para falarem, grito para mim mesma.
— O fato é que eu vi você a beijando no jardim — forço a voz por entre os dentes. — Ela pode ter puxado você, Gustav, mas você tinha tamanho suficiente para afastá-la… e não estava. Você estava correspondendo. E na outra noite, quando o confrontei, mentiu pra mim. Mentiu diversas vezes. E agora reaparece falando a mesma besteira e acha que devo acreditar na sua inocência?! Você…
Me interrompo ao notar que minha voz subiu o tom. Com a visão periférica, percebo alguns nobres cochichando por trás de mãos e bebidas. Cada olhar virado em nossa direção é uma agulhada que torna o corpete de tafetá mais e mais apertado. Parece não haver brisa soprando das enormes janelas atrás de mim. A armadura de gelo vai escorrendo aos poucos e aperto os braços formando um cinto para mantê-la no lugar.
Gustav balança a cabeça transtornado, dá um passo em minha direção e retrocede em seguida.
— Eu não menti para enganar você. Só estava surpreso que-
— Isso de novo? É chocante quanta estupidez é capaz de fazer quando está surpreso.
— Não precisa repetir o que aconteceu. Lembro muito bem. Eu devia sentir pena por tê-lo preocupado? — corto, balançando a cabeça com a boca franzida em desgosto, as unhas se enterrando na pele. — Só acho muito engraçado o quanto enfatiza sua suposta inocência, que nunca teria se envolvido com Annabella… mas estava lá no jardim com ela. Não me venha com-
— Não é suposta! Foi o que aconteceu! Droga, não está me ouvindo? Ela falou que você estava esperando por mim no jardim e que me levaria até lá… Só me dei conta que tinha algo errado quando ela me puxou!
Outra risada sobe como vidro por minha garganta.
Por que ainda estou parada aqui me dando ao trabalho de ouvir essas besteiras?
— E desde quando eu pediria à Annabella para fazer isso? — sibilo, me aproximando um passo para poupar meu fôlego rarefeito. — Por que eu pediria a qualquer pessoa para que o “buscasse para nos encontrarmos no jardim” quando nem podíamos ir sozinhos para lá? Mesmo se estivesse disposta a arriscar, acha que eu seria burra de pedir para passar recado? Ia falar diretamente com você. Quão estúpido consegue ser?
Gustav abre e fecha a boca.
E, por estar sem argumento e estarmos praticamente da mesma altura, seu olhar acaba deslizando para meus lábios.
Ele faz menção de se aproximar e retrocedo de imediato.
— Se isso é tudo que tem a dizer, a conversa acaba aqui.
— Amo você.
— Problema seu.
Gustav titubeia e pisca, tão chocado e magoado, que me faz bufar.
— O quê? Pensou que seria só dizer que me ama e tentar me beijar e estaria tudo resolvido? Por isso me chamou para conversar diante da corte inteira, para fazer um espetáculo de redenção?
— Eu não-
— Depois de seis meses, acha que vou acreditar em qualquer baboseira só porque soltou um “amo você” no meio? — Balanço a cabeça em desdém incrédulo. — Para alguém que conseguiu passar entre os primeiros colocados no concurso de servidor antes mesmo de se formar na Academia, como tanto gostava de lembrar, você consegue ser absurdamente estúpido.
— Ia esperar eu ser capaz de ser racional para escutá-lo? — repito devagar, entredentes. Oxigênio parece se reter apenas a garganta e o núcleo de calor se espalha para o estômago.
— De tudo que eu disse, só isso que ouviu?
— Acha que eu ficaria comovida com essa encenação ridícula de O Cafajeste Arrependido? Que conseguiria recuperar sua posição de prestígio? Não iria passar nem em teste de teatro de rua com isso.
— O cafa… quê?
— Por que não vai ajudar na administração dos negócios de sua família? Saia da corte. Pare de gastar meu tempo.
Descruzo os braços rígidos, já quase petrificados na posição, para agarrar as saias e me afastar.
Mal dou um passo quando a mão suada se fecha sobre meu pulso esquerdo.
Paraliso.
A umidade quente e pegajosa atravessa o tecido fino da pulseira… como sangue vazando de pontos rompidos…
Não há sangue. Respire. É só uma lembrança
— Ouvi o boato de que se encontrou com o príncipe Escórpio na biblioteca. É por isso? Está tendo um caso com ele? Achei que não se gostassem.
É a insinuação ridícula de Gustav que dispersa a lembrança com uma flecha flamejante.
Uma parte de mim sente vontade de rir.
Outra, de gritar.
E uma terceira, mais forte, de acertar um soco na garganta dele.
Trinco os dentes. Agarro, trêmula, o anel que pende na correntinha em meu peito. E me viro devagar…
Como provocação do universo — mais uma — percebo Escórpio num dos bancos almofadados na lateral esquerda do salão, me assistindo como se estivesse no teatro. No breve segundo que nossos olhares se encontram, ele ergue a taça de vinho discretamente, o arremedo de sorriso se esticando em zombaria.
“Vamos ver se sua resposta continuará sendo ‘não’ até o fim dessa noite.”
Desvio o rosto retorcido numa careta de desgosto, voltando ao Gustav… que notou a direção do meu olhar e franze a testa.
— Então realmente…
— Não — respondo rapidamente… como se ainda lhe devesse qualquer resposta. Mordo o interior da bochecha e aperto mais o aro do anel, as chamas chegando até a garganta. — Não é mais da sua conta com quem falo ou deixo de falar. Se ponha em seu lugar, Gustav Troyán. Não tem direito de me cobrar satisfações, se referir a mim pelo primeiro nome e muito menos — me liberto de seu toque com um puxão brusco — me tocar. Ouse fazer isso outra vez e arrancarei sua mão.
Gustav pisca, parecendo um peixe, tão pálido que as sardas parecem neon no rosto magro de maçãs salientes. Os olhos esverdeados descem. Mas, em vez de irem para meus lábios novamente, se fixam ao amuleto que agarro como âncora.
— Se fosse ele, você daria uma nova chance? — Ergue o queixo com meio sorriso de amarelo cinismo.
— Você não é.
Sem paciência para ciúme fora de hora, e sem largar a âncora, dou-lhe novamente as costas.
— Não vou desistir! Enquanto viver, vou continuar lutando para provar que mereço seu amor e uma nova chance!
A voz de Gustav ressoa no salão — quieto demais, como se todos tentassem escutar a conversa.
Paro outra vez. Aperto as mãos formigantes e trêmulas.
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