A pizza chegou no instante que saiu do banheiro.
— Voilá — eu disse, satisfeito. Paguei o entregador, e trouxe a pizza, sentando-me na cama para aproveitar a delícia. Havia trocado de roupas, e você estava usando o conjunto improvisado de Dave. Eram apenas uns shorts vermelhos e uma camiseta gráfica de uma banda que nós dois já tínhamos deixado de gostar. O olhar que você dignou à camisa foi cômico.
— Prometo que tenho um gosto melhor agora. — Indiquei que se sentasse na cama, do lado esquerdo. Eu nunca abdicaria do lado em que eu costumava dormir, nem mesmo para Dave. Nem para você.
— Não estava julgando — e sorriu.
Aquilo me fez erguer uma sobrancelha. Era o maior número de palavras que você falara na minha presença. De qualquer modo, era bem-vindo. Pelo modo que seus ombros pareciam relaxados, e a maneira despojada com a qual se sentou na cama, com uma perna na cama e outra tocando no chão, você parecia bem mais à vontade no meu pequeno apartamento.
Uma boa notícia.
— Pizza?
Você assentiu, pegando uma fatia com a mão direita, e comendo em um novo silêncio, mas ficamos próximos. Na outra, segurava com firmeza o celular. A caixa da pizza aberta nos separava, mas em poucos momentos devoramos o conteúdo, e o cheiro delicioso foi substituído por nossos estômagos cheios.
Eu me joguei contra o colchão macio, e fiquei observando meu companheiro improvável. Havia algo no modo em como a franja loira caía sobre os olhos azuis, firmes e profundos, a atenção presa no acender e apagar de cada mensagem recebida pelo celular. Mas ao contrário do que eu esperava, não respondia a nenhuma ligação. Apenas encarava a tela.
— Não vai quebrar se você responder de volta — arrisquei, apoiando a cabeça com uma das mãos, ainda com os olhos centrados nele. Você pareceu sair de seu estupor, e baixou o braço, colocando o celular no colo.
— Às vezes, as pessoas só querem expiar a própria culpa — foi sua resposta, enfim.
— Quer elaborar mais?
Você ficou alguns momentos em silêncio, mas então balançou a cabeça negativamente.
— Prefiro fazer algo mais interessante…
Havia um ar diferente em seu rosto. Um sorriso. Era isso que eu via de diferente. Era a primeira vez que o via sorrir de canto de boca, um de cafajeste, e droga, lhe caía muito bem. Eu tive que me chutar mentalmente que não o trouxera ali para namorá-lo ou qualquer coisa do tipo. Era só para tirá-lo da chuva. Como um cão abandonado.
Ou um gato.
Você se moveu de quatro sobre a cama, andando em minha direção. Achei que fosse se deitar ao meu lado, mas continuou avançando… e avançando…
Até que seu rosto ficou a centímetros do meu, e suas mãos estavam lado a lado da minha cabeça, e eu fiquei sem saber como agir. Não sabia o que aquilo significava, ao menos, não sabia o que eu queria que aquilo significasse.
Abri a boca para falar algo, mas as palavras não saíram. Meus olhos estavam focados em você, Jesse, especificamente em sua boca…
Você fechou os olhos, e eu não percebi quando eu fiz o mesmo.
Seu celular tocou.
Nós abrimos os olhos.
— Tsc — disse quando se afastou, mas não antes de piscar um olho. — Você fica adorável vermelho desse jeito, Alex. — E acariciou minha bochecha levemente, antes de voltar a dar atenção ao celular, encarando o visor.
Quanto a mim… Meu coração estava prestes a sair pela boca. Eu nunca tinha sentido algo parecido. Essa animação, esse frio na espinha… Essa vontade de sentir a pele do outro na minha. Eu engoli em seco. Quem quer que fosse, você mexia com todos os meus sentidos. Aquela era a primeira pista.
Por outro lado, ao voltar a olhar o celular, seus ombros se tencionaram. Recebera alguma notícia ruim. Ergui meu torso, e fiquei sentado na cama. Dava para ver as lágrimas que ele se recusava a derramar. Você, Jesse, acima de tudo, era orgulhoso. Aquela foi a primeira pista.
— Tudo bem?
Você voltou a me encarar, e eu entendi que não sabia responder aquela pergunta.
Eu cobri a mão que segurava o celular, e a apertei um pouco.
— Vai ficar tudo bem. Vamos dormir. Amanhã é um novo dia.
E tirei o celular de suas mãos, colocando-o ao lado do meu, deixando-os para que carregassem de forma silenciosa em cima da cômoda. Seu silêncio perdurou comigo, mas eu parecia ter feito algo certo, porque apenas assentiu e murmurou em uma voz baixa:
— Obrigado.
***
— Vamos mesmo dormir na mesma cama?
— Você vê outra opção por aqui?
Não era como se tivessem outra escolha. A outra opção seria um dos dois dormir no chão da cozinha com algum dos lençóis servindo de colchão improvisado, mas eu tinha uma alma de velho em um corpo de um jovem de vinte e três anos, e você era visita.
Além do mais, era um pedido.
— Não quero me impor…
— Oras, claro que pode. — Eu dei de ombros, me livrando de qualquer modo da caixa de pizza. Eu ainda iria tirar o lixo para fora, mas já estava tarde, então iria acordar cedo no dia seguinte antes que o caminhão passasse para tirar todo o lixo da casa. — Você também pode ser mimado um pouco, Jesse.
Eu não percebi o quanto minhas palavras o afetaram, mas o sorriso que deu era verdadeiramente genuíno. Você subiu na cama, deitando-se e cobrindo-se com as cobertas, e eu o segui, apagando as luzes em seguida.
Deitei-me de lado, dando as costas para ele, para que tivesse mais alguma privacidade, embora não fosse a forma que costumasse dormir, então era desconfortável para mim. O que importava era que você ficasse bem, não era? O silêncio reinou entre nós, e eu esperava que ele tivesse um boa noite de sono. Eu mesmo sofria um pouco de insônia, então fiquei encarando os celulares em cima da cômoda.
A tela do dele acendia com cada nova mensagem, com cada nova vibração, até que simplesmente apagou por volta das três da manhã.
Acho que desistiu, foi o que pensei. Mas quem mandaria mensagens tão insistentes, quando você mesmo, Jesse, afirmou que não tinha lugar para retornar? Quando falou que não tinha família, ou amigos…
Podia ter brigado com alguém. Claramente tinha brigado com alguém, pelo ferimento no rosto. Talvez tenha sido por isso o motivo do comentário da “consciência pesada”. Eram provas de que acontecera algo com você.
Bem, isso e estar no meio de uma ponte no meio do nada, fazendo Deus sabe o quê…
Decidi perguntar a você quando acordasse na manhã seguinte. Talvez uma conversa mais séria fosse necessária, descobrir o que faria a partir dali. Precisava de acompanhamento sério psicológico, de um médico para ver aquele ferimento no rosto, de uma conversa com a família…
Se tivesse família.
Quando o sono estava começando a tomar conta de mim, senti duas mãos tocarem minhas costas e puxarem de leve minha camisa. Quase não senti o toque, tão necessitado, tão desesperado, tão quieto…
— Jesse?
Você não disse nada, mas virei meu rosto em sua direção. Você percebeu a minha movimentação e colocou o rosto contra mim, e finalmente senti a umidade contra elas. Suas lágrimas um sacrifício para o altar em minhas costas.
— Jesse…
— Não se vire.
Você se agarrou com desespero contra mim, e era um encaixe perfeito com meu corpo. Como se fossemos duas peças de dois quebra-cabeças diferentes, mas feitos da mesma forma. Tínhamos o mesmo formato. Os mesmos problemas.
Apenas não sabíamos daquilo.
— Deixe sair — eu disse, anda não ousando me mexer. — Deixe tudo sair.
E você apenas chorou. Não disse uma palavra, não soltou um som. Apenas o choro gutural de sentimentos presos no peito, de uma vida inteira de não os expressar.
Por fim, não foi a tristeza que o alcançou, e sim o cansaço. Quando finalmente dormiu, eu ainda demorei algum tempo observando suas feições e com pensamentos diversos. Memórias. Estava prestes a me afogar nelas, quando o sono me atingiu.
Até mesmo o deus do sono era gentil.
Quando acordei, os lençóis estavam revirados, mas eu me senti estranhamente com frio. Estava com preguiça de abrir os olhos, mas precisava me levantar, para jogar o lixo do lado de fora, mas foi então que percebi…
Estava sozinho na cama.
Ergui-me de repente, no susto. Olhei ao redor, e como o apartamento era pequeno, foi fácil constatar a verdade que me assombrava:
Você foi embora.
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