O caminho para a minha casa foi lento. E o pior, com um silêncio sepulcral. Somente a chuva nos acompanhava, caindo sobre nossos ombros como lâminas de gelo. Eu não sabia direito como me portar, porque era a primeira vez que me colocava na posição de trazê-lo, um completo estranho até então, para o meu apartamento, e porque tal estranho estava completamente mudo. Cabisbaixo, desviando o olhar a todo minuto para trás, como se fugisse de algo. Muito estranho, e preocupante.
Eu era um solucionador de problemas em primeira instância, mas aquilo parecia ser uma dor de cabeça que não teria fim. Concentrei-me apenas em alcançar o meu apartamento com passos longos, para enfrentar a tempestade que se formava sobre a minha cabeça e dentro do meu coração. O que eu faria com você?
Revirei as chaves dentro do meu bolso enquanto dava uma olhada para trás. A cabeça loura e baixa denunciava várias nuvens pesadas em além da chuva sobre nós. Eu admitia que havia uma semente de curiosidade em mim, mas tratei logo de podá-la. Não queria intimidá-lo. Mais do que tudo, queria apenas que você ficasse bem.
Talvez eu conseguisse distraí-lo um pouco… Comida geralmente me colocava de bom humor.
Eu pediria uma pizza ou algo do tipo assim que chegasse em casa, decidi. As pessoas sempre ficavam mais alegres de estômago cheio.
E dando uma última olhada em você, certamente ficaria melhor com um sorriso no rosto.
— Chegamos — eu disse, tentando parecer animado. Você finalmente levantou os olhos azuis dos tênis com padrões xadrez e olhou em volta. Se pareceu reconhecer o local, não demonstrou nada. Não estávamos longe da faculdade do qual eu era aluno, e o bairro era populado por universitários e funcionários da Universidade. Claro, havia um ou outro assalto, um ou outro assassinato, mas fatos da vida urbana, não era mesmo? Em geral, era seguro. — Venha.
Eu girei as chaves nos dedos, tentando fazer uma gracinha, mas as chaves caíram com um som pesado no chão, me distraindo e eu tive que pedir desculpas a você pela confusão. Estava me mostrando um tolo. Sem mais delongas, eu abri a porta, e o bafo quente do aquecedor caiu sobre nós. Eu limpei meus pés no carpete, e fiz menção para que você entrasse atrás de mim. Você me seguiu, atento, os olhos explorando cada canto empoeirado do corredor que dividia os apartamentos daquela casa geminada. Meus vizinhos com certeza já ou dormiam, ou estavam chapados demais para perceber que eu estava chegando em casa tão tarde da noite. De qualquer forma, não é como se eu devesse satisfação a eles.
Sua insegurança era notável, então uma necessidade inconsciente surgiu em mim, e antes que eu pudesse me conter, me vi alcançando seus fios rebeldes, que ainda estavam bem úmidos da chuva que tomamos, e acariciei sua cabeça, levemente, arrepiando e espalhando água pelo corredor. Isso pareceu chocá-lo um pouco, porque você elevou o olhar e arregalou-o, como um cervo assustado. Pensei que tivesse cometido um erro, porque era algo que eu sempre fazia quando Dave estava para baixo, mas resolvi não me perder muito naquilo. Quando me virei para encará-lo, e notei aquele machucado… Talvez você não quisesse ser tocado.
— Err… — hesitei. — Vamos entrar? — Eu dei passagem para que entrasse primeiro no apartamento, e uma escolha. Você ainda poderia dar as costas e ir embora, mas eu sabia que não tinha mais para onde ir. Ao menos, não naquela noite.
Eu era sua única salvação, como o diabo em frente à Cruz.
Coitado, pensei. Podia ter uma opção melhor do que a mim, que sou um pé rapado sustentado pela bolsa da faculdade. Podia ter sido um CEO rico que o tiraria da miséria e o sustentaria, como em um daqueles romances. Esse rapaz merecia todos os mimos possíveis.
Ao menos, era o que parecia. Tirando o ferimento que ameaçava ficar muito feio no supercílio, eu não podia negar que você era muito bonito. Muito meu tipo, eu temia. Olhos azuis profundos que eu já havia notado e escondiam muitas histórias. Eu saíra de uma correnteza, e estava prestes a me afundar em outra.
Sorte a minha.
Você, se vendo sem saída, entrou primeiro na minha casa. Mas não precisou caminhar muito para se ver em um impasse.
— Você gostaria de tomar um banho? — Eu comecei a retirar meus sapatos, colocando-os na cômoda perto da entrada, como era o meu costume. Depois me preocuparia em limpá-los, o importante seria acomodar a minha inesperada visita primeiro.
Meu apartamento naquela casa não era nada espaçoso. Quando eu falava que morava sem luxos, era porque eu realmente não tinha quase nada. “Quarto e sala” era uma grande hipérbole: era literalmente uma grande kitnet. Uma sala grande demais, com uma cozinha equipada e uma cama de casal nela. Ah, ao menos eu tinha máquina de lavar e secar no banheiro, não precisava dividir, como era o caso dos vizinhos. Era por isso que tinha escolhido aquele apartamento em específico.
E também por algo mais especial…
— É pequeno, desculpe — respondi a você, que continuava mudo olhando para o apartamento, e tudo que eu tinha.
— É… — concordou, mas tirou seus tênis dos pés e colocou ao lado dos meus na pequena cômoda.
— Me dê seu casaco, vou pendurar.
— Obrigado — aparentemente você era uma pessoa de poucas palavras, porque era só isso que eu conseguia arrancar.
— Você quer tomar um banho? — perguntei de novo, e dessa vez, você prestou atenção em mim.
— Sim… ai! — O seu casaco enroscou no ferimento, e você gemeu de dor.
— Ah, talvez devêssemos tratar disso primeiro, antes de você tomar banho. Colocar um gelo na ferida. Talvez pedir algo para comer.
— Isso aqui não é nada. — Colocou a mão sobre a ferida, antes de gemer de novo de dor. — Já sofri coisas piores.
— Vai por mim, isso só vai piorar se você não colocar gelo. Vamos, eu acho que eu tenho uma bolsa térmica ou algo do tipo por aqui. Ou posso improvisar algo. Sente na cama, por favor. — E corri em direção à cozinha, pronto para fazer o que havia prometido, já que você parecia muito assustado para fazer qualquer coisa. Eu procurei minha bolsa térmica, mas a encontrei dentro de um dos armários, e não dentro do congelador, onde ela deveria estar. Já que era assim, eu peguei algumas pedras de gelo e uma toalha, fazendo uma bolsinha térmica improvisada, e voltei ao meu convidado. — Pronto, coloque aí.
— Juro que não precisa…
— Por favor, por mim.
Você se resignou e se sentou na cama. Gemeu mais um pouco e colocou os pés com as meias em cima da cama, enclausurando-se, abraçando-se como se seu pequeno mundo consistisse apenas do que pudesse tocar, do que pudesse envolver com as mãos.
Meu coração se apertou, não parecia certo.
Aproximei-me da cama, sentando-me ao seu lado. O peso da cama afundou mais com o segundo corpo na cama, rangendo ao ato, e eu só vi os olhinhos azuis se moverem atentos a cada movimento meu. Com uma ação muda, pedi permissão para colocar a toalha contra o ferimento, e apesar da desconfiança e de sua insegurança, você abaixou os braços para que eu pudesse cuidar de seu ferimento.
Ainda gemendo um pouco.
— Está tudo bem — tentei tranquilizá-lo um pouco. — Vai ficar tudo bem.
— Só você acha isso — retrucou.
Seus olhos eram realmente azuis. Nada de lente. Um azul profundo e límpido, mas que não conseguiam encarar a mesma pessoa por muito tempo. Você desviou o olhar e sua pele enrubesceu nas maçãs do rosto, e eu pude contar cada pequena sarda de sua pele. O ferimento acima do supercílio esquerdo era feio, como se tivesse levado um golpe feio nos olhos. Só que não notei apenas isso. Você tinha um nariz arrebitado, muito adorável, e lábios cheios como um querubim.
— Pode deixar que eu seguro — disse, tocando brevemente sua mão contra a minha, e você fechou os olhos por um momento.
O silêncio que se instalou entre nós pareceu mais calmo, enquanto você segurava a minha mão. Era como se você precisasse daquilo para se firmar dentro do Universo. Eu apenas fiz meu papel como uma peça de xadrez daquele grande esquema, porque não era de mim de quem ele precisava. Era de alguma gentileza imóvel, de alguma prova de que ele não fora abandonado pelo Destino.
Às vezes, era tudo que importava.
— Você quer comer algo? — eu disse enfim, quando você parecia finalmente ter voltado a si. Seus olhos azuis voltaram a se abrir, enfim me encarando de volta. — Posso pedir algo, ou sei lá… Acho que tenho pizza congelada no freezer.
— Não precisa se preocupar… — começou, enquanto eu me afastava, já buscando meu celular em mãos, lembrando-me de repente do que acontecera com ele na ponte. É, talvez tivesse visto sua última ligação. A tela estava toda rachada, e apesar de não ter esperanças de que ele ligasse, a luz acendeu, me surpreendendo.
Quem diria que a tecnologia não me deixara na mão.
O touch screen ainda estava um pouco avariado e certamente me causaria alguns cortes nos dedos se eu não colocasse uma tela de proteção, mas eu não tinha dinheiro algum para consertar aquele estrago. Teria que ficar com aquela porcaria até juntar minhas pobres economias, ou vender alguns desenhos para algum pobre coitado. De qualquer forma, era uma boa notícia que o celular ainda estava funcionando, mesmo naquele estado lamentável. Eu ainda podia fazer minhas operações de banco, e todos os meus contatos estavam ali. Incluindo… o da pizzaria que eu mais gostava.
— Não se preocupe — eu falei, sabendo muito bem que poderia economizar acendendo o forno e gastando a pizza congelada, mas aquela era uma ocasião especial. Você não se animava comendo comida congelada. Quem mudava de perspectiva com pizza brotinho? O melhor era mesmo pedir uma pizza fresquinha. — Você paga a próxima.
— A próxima…? — você repetiu, um tanto incerto, mas então, um sorriso. — Certo então. Combinado.
Ponto para mim.
Enquanto mexia no celular, apoiado contra o balcão da cozinha, tentando descobrir o quanto ele funcionava e qual pizza pedir — eu tinha o meu pedido preferido, é claro, mas precisava descobrir o seu —, eu o vi se levantar e ir em minha direção, ainda olhando em volta.
Eu não tinha muitas coisas. A cama de casal ocupava metade da sala, e sinceramente eu poderia ter uma cama de solteiro apenas pelo fato de que ela não via outra pessoa desde o Grande Dilúvio; mas o problema era que, como muitos dos meus móveis, aquela cama era uma doação do último apartamento de Dave. Aquela fora uma herança que eu recebi de seu quarto, assim como a cômoda colorida blocada de sua infância que guardava as minhas poucas roupas de qualquer jeito, e a maioria dos equipamentos de cozinha vieram com o pequeno apartamento. O resto das decorações, no entanto, eram minhas. Fotos espalhadas, peças de arte, quadros diversos, materiais de desenho. Assim como a maioria dos meus trabalhos da faculdade espalhados de qualquer modo pelo chão. Eu também tinha uma pequena mesa de desenho, mas esta se encontrava desmontada, por ocupar muito espaço. Eu realmente só a armava na hora que precisava.
E no momento…
— O que você acha de uma pizza margherita…
Você estava a centímetros de mim. O que era engraçado, um pouco, dada a nossa diferença de altura. Eu não havia reparado nisso na ponte, quando o tive em meus braços, mas você tinha uns bons trinta centímetros a menos do que eu. Bem, dada a minha altura, era de se esperar, já que eu reinava nos céus com meus um metro e noventa e quatro centímetros de altura. Mas você era baixinho, não era?
Será que você era adolescente? Devia ser menor de idade. Céus. Você cheirava a problemas.
Eu realmente devia ter te levado à delegacia…
Você assentiu.
— Será que eu posso tomar um banho?
Acho que aquela foi a primeira frase inteira que ouvi sua. Sem contar os xingamentos.
De novo, o rubor tomou conta de seu rosto, e você apenas desviou o olhar. Eu quis clarear as dúvidas.
— Claro que pode. Eu ofereci pegar uma toalha para você. Inclusive, pode secar suas roupas na secadora que tem no banheiro, eu ia sugerir isso. Só que acho que pode demorar algum tempo. Quer algumas roupas emprestadas?
Você olhou para a cômoda e apenas assentiu, cruzando o quarto e a cozinha com apenas algumas passadas para chegar até o banheiro. Aparentemente eu teria de me acostumar com poucas palavras. Terminei de pedir a pizza, e deixei meu celular em cima do balcão. Fui até a cômoda, tirando de lá uma toalha felpuda, a melhor que eu tinha, de estimação mesmo, que felizmente estava limpa, e um conjunto de roupas que Dave normalmente usava quando passava a noite no meu apartamento. Imaginei que qualquer roupa minha ficasse muito larga em você, já que minha altura era incompatível com a sua, e quando volvi os olhos no dito cujo…
Você já estava em frente à porta do banheiro, se despindo.
Bem, quem estava vermelho agora?
Eu podia jurar que estava da mesma cor que a raiz dos meus cabelos tingidos.
Minha mandíbula levemente se abriu, até. Eu não conseguia parar de olhar. Eu era um artista por profissão e por natureza. Apesar de ter várias aulas com modelos vivos, e conhecer como era a musculatura humana, era uma coisa completamente diferente observar os bíceps e tríceps daquele espécime em específico se despindo, retirando a jaqueta vermelha e a camisa branca por debaixo, os pectorais major e trapézio contraindo e…
Bem em seu trapezoide, marcado em tinta, estava uma flor.
Mas eu sabia muito bem qual era sem precisar referenciar o Google ou uma biblioteca.
— Hortênsias — eu disse.
— Ah — você suspirou, segurando suas roupas em mãos.
Era como um feitiço. Estava bem ali, a tatuagem maldita. Eu queria tocá-la.
Foi quando notei que você estava apenas de cueca, bem no meio da minha cozinha.
O embaraço retornou novamente, e eu praticamente joguei a toalha em cima de você, para cobrir suas vergonhas.
— Aqui! Tome, por favor…
Se fosse possível, eu diria que você estava rindo de mim, mas meu visitante não riria de tamanha tragédia, não é mesmo? De qualquer forma, você foi em direção ao banheiro e fechou a porta atrás de si, e eu ouvi quando ligou a máquina de secar, e o chuveiro em seguida. Eu apenas respirei aliviado, e me joguei na minha cama.
Muitas emoções para se lidar de vez. Não estava preparado para ter um rapaz se despindo na minha frente, daquele modo. Bem, era como Dave planejara que minha noite fosse terminar, mas aparentemente, eu ainda tinha que preparar meu psicológico para ver outra pessoa nua tão de perto.
Teria você um irmão, ou simplesmente estava acostumado a tirar a roupa com frequência na frente de estranhos?
Eu não sabia.
Apenas… Eu tinha visto aquela tatuagem antes, mas você não pareceu me reconhecer.
Não era você meu date no Tinder?
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