Kitsune estava nervosa, seus dedos tamborilavam com força sobre a pele de sua coxa, deixando marcas avermelhadas por conta das longas unhas. Não conseguia acreditar que havia encontrado Sen depois de tanto tempo, no entanto outra coisa lhe roubava todos os pensamentos, tinha algo muito esquisito com aquele baixote que acompanhava seu irmão, mas o que seria?
Desde que seus olhares se encontraram na cafeteria, aquele jovem humano fez morada na mente da divindade, ela quase podia jurar que ouviu um eco distante ressoando daquele ser tão insignificante. Precisava conferir o que diabos era aquilo e não descansaria enquanto não descobrisse a verdade. Estava tão concentrada em seus pensamentos que até mesmo o barulho indecente que se instaurou em frente ao grande santuário principal lhe passava despercebido.
Como poderia se aproximar de Sen e consequentemente do humano? Como?
Já conseguira perceber que não seria fácil, apesar da graciosidade e simpatia, o senhor Takashi Hideyoshi parecia intransponível como mil mares e mil montanhas. Tinha de inventar alguma desculpa para revê-los e logo. Kitsune parou de bater os dedos e trincou os dentes, aquilo já estava passando dos limites.
— Basta — proferiu em baixo tom de voz, mas foi ouvida por todos que se aglomeravam ao seu redor. Lentamente as vozes foram silenciando uma a uma até que apenas o vento restou, trazendo uma canção temerosa em seu soprar.
— Tenham decência, ela pode estar fora, mas ainda estamos diante do santuário da grande senhora Ária.
Com essa frase até o vento calou-se. Todos aguardavam ansiosamente pelo pronunciamento de Kitsune, afinal ela vira de perto o desaparecido Sen. Ashuramaru também o viu e também se fazia presente na reunião, entretanto era impossível conseguir qualquer informação com ela e todos os demais sabiam disso, já que eram conhecidos de longa, muito longínqua data.
O olhar áureo de Kitsune vagava entre os presentes, desejava partilhar todas as informações que conseguiu, porém a cada instante que se passava um receio desconhecido crescia em seu peito, conhecia seus irmãos, sabia muito bem do que eles seriam capazes... Ela mordeu o lábio inferior, não queria prejudicar Hideyoshi, não antes de descobrir o que aquele humano ocultava.
A divindade de cabelos negros suspirou, recostando-se num dos pilares de mármore branco. Sentia no mais profundo de seu ser as vibrações de frequências tão distintas e tão iguais, vibravam eternamente juntas e transmitiam o estado de espírito de cada um, ora mais intensas, ora mais suaves. Kitsune olhou para a figura mais barulhenta e sorriu ao fitar os olhos azuis.
— Sim, é verdade que encontramos Sen — começou, cruzando os braços. — No entanto, a situação é muito mais complicada do que parece.
Desviou rapidamente o olhar para a figura vermelha e pôde ver que Ashura concordava com um meneio de cabeça firme e decidido que não deixava espaço para questionamentos. Kitsune sorriu com afeto genuíno, certamente Ashura era quem a entendia melhor nessa ocasião, no fim das contas ela também estivera lá.
— Fala logo, porra! — Exasperou-se uma deidade de aparência muito jovem e sedutora, os cabelos pareciam nuvens em dias ensolarados, tão brancos quanto açúcar refinado, e se moviam para lá e para cá conforme ela batia um dos pés.
Kitsune não incomodou-se nem um pouco com a falta de modos da irmã, era acostumada e outros de seus irmãos se portavam de forma bem menos cortês, felizmente eles não estavam presentes.
— Esse seu lenga lenga ainda vai me matar, Kitsune! — Disse por fim o ser divino de cabelos de açúcar refinado, seus cristalinos olhos azuis estavam franzidos e miravam direto o ouro derretido nas órbitas de Kitsune.
— Dá um tempo, Saatoshi — Kitsune respondeu, indiferente. — Então, como eu estava dizendo, a situação de Sen é muito complicada. Digamos que ele... perdeu a memória?
Quatro pares de olhos se arregalaram ao mesmo tempo, a incredulidade escancarada em seus semblantes divinos. Saatoshi riu enquanto Shiro recuou um pouco, Kitsune apertou os lábios, sabia o quanto devia ser difícil para Shiro. Olhou para Naagato e Tsunami, ambos permaneciam tão imóveis que poderiam ser comparados com esculturas de mármore reluzentes.
— Isso... não pode estar falando sério — Shiro foi a primeira a manifestar-se, seus olhos negros se mostravam enevoados, cobertos por uma fina camada semi transparente que Kitsune bem sabia ser gelo. — Tipo, qual foi? Nós não perdemos a memória, nunca! Podemos não lembrar de todos os pequenos detalhes sobre todas as coisas, mas isso... é impossível!
— Pois é, agora é possível — Ashura aproximou-se do grupo, postando-se bem ao lado de Kitsune para apoiá-la, tinha os braços cruzados e um semblante sério e fechado. O vento soprou gélido ao extremo, remexendo os cabelos de todos e causando certo desconforto, pois havia luz e ainda assim era um momento sombrio.
Os pequenos flocos de neve que saíam dos cabelos branco-gelo de Shiro logo se condensavam, formando uma tênue bruma ao redor de sua face e ocultando sua expressão, mesmo após tantas eras, Sen continuava a ser um tópico bastante sensível para ela. Por sorte, Tsunami, que era muito próxima de Shiro, também viera à reunião e assim poderia dar o apoio necessário.
— Kitsune, sabe o quanto confio em ti, mas queira explicar melhor, é difícil acreditar que um de nós está sofrendo de amnésia.
Dessa vez quem tomou a palavra foi Naagato, um dos irmãos mais próximos de Kitsune. Ele havia sido concebido por Deus no mesmo exato momento que Saatoshi e por isso os dois estavam unidos de forma singular, porém em tudo o mais eram diferentes, desde a aparência até o modo de pensar. Enquanto Saatoshi era mais energética, Naagato era mais introspectivo. Enquanto ela possuía longos cabelos cor de açúcar, ele era dono de cabelos curtos e negros de azeviche. Só havia dois atributos físicos que os conferia similaridade: os olhos azuis e cristalinos e a beleza sem igual que somente os seres divinos possuíam.
— O negócio é que ele não lembra nem de mim, nem de você nem de nenhum de nós — Kitsune levou a mão até a própria face, suspirando. — Ele não lembra nem o próprio nome.
Antes que os outros tivessem oportunidade de falar qualquer coisa, Kitsune continuou, só queria se livrar disso o mais rápido possível para que pudesse continuar a pensar em Takashi Hideyoshi e em formas de se aproximar dele e de Yamano.
— Sen está vivendo em Tóquio há alguns anos, de acordo com o tempo humano. Ele atende pelo nome de Chihiro Yamano, jura de pé junto que é humano e mora com outro humano, eles parecem ser bem próximos.
Shiro soltou-se do abraço de Tsunami e se aproximou de Kitsune, os olhos negros arregalados. Ela tomou a mão da irmã, transmitindo-lhe toda sua frieza infinita, e falou de forma hesitante.
— Chihiro Yamano, você diz?
Kitsune assentiu positivamente e os olhos de Shiro tornaram-se ainda maiores, a divindade portadora do frio eterno largou a mão que segurava para virar-se para os demais, sorridente e saltitante.
— Eu o conheço — afirmou Shiro, parecendo bastante orgulhosa em confessar isso. Todos viraram-se para ela, incrédulos.
— Você o quê? — Kitsune perguntou calmamente, ainda processando essa informação. Como isso era possível?
— Eu o conheço — Shiro repetiu, girando em torno de si mesma. — Mas ele não sabe disso ainda, tipo, que eu sou eu. Ele me conhece sim, só que por outro nome, somos amigos num jogo online.
Dessa vez foram os olhos dourados que saltaram, surpresos. Kitsune sorriu, acabava de encontrar a porta de entrada que precisava, definitivamente ela se tornaria amiga de Yamano e Hideyoshi, definitivamente ela iria descobrir o que havia por trás do olho cor de mel. Seus belos lábios ergueram-se num sorriso radiante exibindo até mesmo seus caninos proeminentes, era tudo o que precisava, porém logo o sorriso se desfez.
Ninguém esperava por isso e todos foram pegos de surpresa, antes que qualquer uma das entidades presentes pudesse fazer algo para evitar, Naagato já tinha o pescoço de Shiro em suas mãos. Ele suspendia a irmã sem nenhuma delicadeza e seu olhar azul profundo era desprovido de qualquer boa intenção. Shiro sacudia as pernas suspensas incansavelmente e todo o seu corpo se debatia.
— Diga onde ele está — o homem de cabelos negros proferiu, apertando seus dedos em torno do pescoço pálido.
Shiro levou suas mãos trêmulas até os braços do irmão, de seus dedos delicados floresceram cristais de gelo que rapidamente começaram a se espalhar e cobrir o corpo de Naagato.
— Por que você não... se mata? — A voz de Shiro, meio rouca pelo sufocamento, saiu quase como um suspiro.
De longe, Kitsune observava toda aquela cena, algo decepcionada, embora conhecesse o comportamento dos irmãos esperava que nessas circunstâncias eles poderiam se unir e ser mais compreensivos uns com os outros. O som de seus saltos batendo contra o chão de pedra branca foi abafado pelos gritos, ameaças e ofensas trocados por Naagato e Shiro. Suspirando, Kitsune pousou uma mão sobre o ombro do irmão e uma sobre a camada de gelo que recobria a mão da irmã.
Não suportava ver dois de seus irmãos mais próximos brigando desse jeito, sabia que não se matariam, sabia que estavam sendo pressionados pela falta de tempo e de sorte, mas mesmo assim julgava aquilo totalmente incabível para seres como eles. Ora, eram criações do próprio Deus, deveriam agir como tal e não como adolescentes birrentos quando os pais negam alguma coisa.
Ela confiava em Naagato, eram muito próximos um do outro e mantinham boas relações, no entanto não se sentia confortável para compartilhar com ele a localização de Sen, pelo contrário, estava receosa do que o irmão poderia fazer, ele não era do tipo paciente e poderia ser um pouco extremo às vezes. Por outro lado, também confiava em Shiro, com quem também mantinha ótimas relações e imaginava que ela seria de grande ajuda para convencer Yamano e Hideyoshi.
— Chega — repetiu três vezes, precisava desesperadamente atenuar os ânimos e distrair a todos para conseguir chegar onde desejava. — Será que não se envergonham de fazer tais coisas desonrosas?
Tanto os olhos negros quanto os azuis fitavam os olhos dourados, enfim a frequência divina, que antes vibrava de maneira desordenada e agressiva, retornou à estabilidade. O gelo derreteu e condensou-se, transformando-se em um fino nevoeiro que desapareceu em seguida. Naagato soltou o pescoço de Shiro, que pousou delicadamente no chão. Os dois se olharam por um instante, tempo o suficiente para Kitsune enxergar o desprezo que estavam sentindo um pelo outro.
Ela balançou a cabeça negativamente, precisava encontrar Deus e com urgência.
— Ninguém tem permissão para procurar Sen, estamos entendidos? — Inquiriu Kitsune, com os olhos pintados franzidos e o tom de voz indicando que não aceitaria objeções. — Eu e Ashuramaru resolveremos isso. Não, não quero ouvir mais nada. Estão dispensados. Vão em paz.
Com essa fala, ela deu as costas para todos e seguiu andando na direção de seu próprio santuário, queria ficar sozinha e pensar um pouco. Apesar da teimosia dos irmãos, sabia que não a desobedeceriam, pelo menos não abertamente. Mesmo que ela fosse a mais nova entre eles, Deus a escolheu para governar o reino celeste e isso fazia com que os outros mantivessem ao menos um pingo de consideração.
Sentia saudade Dela, aquela que a criou. Gostaria que Ela estivesse entre eles, desejava estar em Sua presença divina uma vez mais.
Seu santuário ficava a uma distância considerável do grande santuário de Ária, as luzes do firmamento já começavam a esmaecer quando alcançou sua floresta de bétulas, os ladrilhos brancos do caminho principal que percorria todo o plano divino deram lugar a uma modesta trilha de pedras douradas com ornamentos vermelhos nas margens.
Enfim avistou os torii escarlates, a partir dali até o pátio do seu santuário os portais vermelhos se fariam presentes. Estavam posicionados a exatos cinco metros (pelas medidas humanas) um do outro, guiando os visitantes até uma construção charmosa. Era de altura mediana e contava somente com dois andares, um térreo e um superior, no qual havia uma pequena varanda na parte da frente. As paredes eram douradas e as telhas e demais adornos vermelhos, duas estátuas de jade repousavam na pequena escadaria que levava ao terraço do santuário, uma de cada lado dos degraus. Tinham a forma de duas raposas sentadas sobre as patas traseiras, seus semblantes eram neutros e não demonstravam nem bons nem maus sentimentos, mas seus olhos entreabertos davam a impressão de vigiarem o lugar.
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