Acordou com lágrimas no rosto, desejando vê-la mais uma vez. Quem era aquela pessoa tão estranha e tão familiar? Aquela que agora sabia amar antes mesmo de conhecer? Ainda que não lembrasse de quem era, lembrava de já ter sentido seu toque tão afetuoso que somente ao de Yamano poderia ser comparado e ainda assim divergiam. Tão parecidos, tão diferentes.
Não conseguiu mais dormir por um longo tempo, contudo também não desejava acordar Yano, portanto permaneceu imóvel recordando-se do breve encontro com a mulher de sobretudo negro. Seria aquilo somente o delírio de uma mente desesperada?
Quando acordou novamente já era manhã e o sol esgueirava-se sorrateiramente através das frestas da cortina, Chihiro Yamano não estava em nenhum lugar visível e Hideyoshi suspirou, frustrado. Não havia voltado a sonhar com aquela mulher. Desejava contar tudo imediatamente para o namorado, mas como ele não estava ali precisaria procurá-lo. Enquanto se levantava lembrou-se também de Faye, sua mais nova convidada, deveria cuidar para que a filha de Natsuno tivesse uma boa estadia. Havia tantas coisas a serem feitas que por um momento apenas quis enrolar-se no edredom e voltar a dormir, porém o longo dia o aguardava e não havia nada que pudesse fazer sobre isso.
De súbito seu telefone tocou, uma melodia já gravada de cor e salteado na mente do rapaz se fez ouvir, era uma de suas músicas preferidas da sua banda preferida, Amazarashi. Permitiu-se desfrutar um pouco da canção antes de atender ao telefonema com um sorriso no rosto.
— Tio Takahashi? — Indagou, quase sem acreditar.
— Sou eu, Hideyoshi-kun! — A voz alegre respondeu do outro lado da linha. — Peço perdão por demorar tanto para entrar em contato, mas acho que já sabe porque liguei...
— Sim, sei. Não se preocupe, Faye-san já está aqui.
— Graças aos céus! Tive medo que algo pudesse acontecer à minha princesinha... — Natsuno Takahashi parecia um tanto abatido e a preocupação verteu no semblante de Takashi, havia algo errado com Faye? — Fico feliz em saber que ela está bem. E você, como está?
O rapaz titubeou um pouco antes de responder que, como sempre, estava bem.
— Que bom! E Chihiro-san?
— Ah, Yano tá legal também.
— Maravilha! Não se preocupe, Hideyoshi-kun, logo estarei de volta ao Japão, mas enquanto não volto cuide da minha filha, viu?
Hide concordou, rindo. Cuidar de Faye, uma maior de idade e ainda por cima alguns anos mais velha que ele?
— Ah, preciso desligar... — o homem do outro lado da linha pareceu um pouco melancólico ao dizer isso. — Até outra hora, Hideyoshi-kun!
Ao ouvir a linha ficar muda, o rapaz bloqueou a tela do celular e guardou-o em seu bolso, finalmente se dirigindo para a porta, porém parou e retornou para sua escrivaninha. Ele sentou-se diante de uma folha de papel de cerejeira e apanhou seu grafite, fechou os olhos para melhor recordar-se do rosto tão belo e sereno, os olhos cansados, a aparência de nobreza inestimável.
Ia rabiscando lentamente enquanto cantarolava sua música preferida do Rookiez Is Punk'd, aos poucos as linhas tomavam forma e se aproximavam da mulher de sobretudo. O amanhã é uma tela em branco que se estende infinitamente, o que devo desenhar? Apesar da paleta monocromática, Hideyoshi buscou um lápis vermelho para colorir os olhos e as flores ao fundo.
Branco, preto, vermelho.
A realidade começa a colorir a tela de preto, o que devo desenhar?
Nunca tinha percebido o quanto gostava de vermelho antes.
Passou um tempo encarando o desenho que havia feito e suspirou, quem era ela? Será que tinha um nome? Uma história? Um passado? Engoliu em seco, novamente sentia vontade de chorar, por que não conseguia se lembrar?
O som de uma risada chegou aos seus ouvidos, atraindo sua atenção para o presente. Levantou-se, largando o desenho sobre a mesa, e saiu do quarto enfim. Desceu as escadas devagar, um saboroso aroma de refeição sendo preparada tomava o andar térreo e Hide inspirou lentamente, imaginando a cena na cozinha, certamente seu Yano estava preparando o café da manhã. Apressou o passo, quase corria pelos corredores, buscando a fonte do cheiro delicioso enquanto sentia seu estômago doer, estava faminto.
A cena era adorável, a luz natural iluminava todo o cômodo através das enormes janelas de vidro que mostravam uma parte florida do jardim. Faye estava sentada de pernas cruzadas e tinha os braços apoiados na mesa, sorria como um amanhecer de verão. Já Yamano parecia dançar entre a geladeira, o fogão e os armários, indo para lá e para cá carregando coisas e remexendo em panelas enquanto conversava com a ruiva. De repente Hideyoshi sentiu-se preenchido com um bom humor inabalável e cumprimentou os dois, sentando-se ao lado de Faye para observar o seu amor cozinhar.
Os três mantiveram uma conversa bastante agradável, diferente das outras garotas de ontem, Faye possuía uma aura tão natural e inspiradora que era impossível sentir-se desconfortável na presença dela. Não muito tempo depois Chihiro serviu-lhes arroz com curry de carne e legumes cortados em formato de estrela, comeram com entusiasmo, afinal o rapaz era um cozinheiro de mão cheia.
A ruiva riu um pouco das estrelinhas no caldo e riu ainda mais quando descobriu que Yamano as cortava assim por causa de Hideyoshi, Hide sentiu-se envergonhado e sabia que estava vermelho porque seu rosto estava quente, porém não negou, desde criança ele gostava dos legumes em formato de estrela, isso o fazia lembrar dos falecidos pais e de uma infância cinzenta e nebulosa.
Infância...
Sua memória vagueava através das brumas do esquecimento, quanto mais velho ficava mais sentia que perdia uma parte preciosa de sua vida, na realidade muita coisa já havia se perdido, quase todas as recordações de antes da morte dos pais estavam borradas e desbotadas. Quase todas.
Havia uma lembrança específica que ainda não perdera todas as cores para se juntar ao borrão cinzento, embora fosse engraçado porque essa memória era cinza. E vermelha.
O jovem foi chamado de volta à realidade por Yano e logo esqueceu desses pensamentos sem sentido, tornando a sorrir e papear. Infelizmente precisaria sair em breve, tinha uma reunião marcada na empresa e sua presença como presidente da companhia era extremamente necessária.
Suspirou quando depositou seu prato na pia, não queria sair de casa, somente queria se enrolar nos lençóis e voltar a sonhar novamente, desejava encontrar mais uma vez aquela pessoa mesmo que ela não passasse de delírios ou sonhos.
Precisava urgentemente conversar com Yamano.
A hora passou com tamanha rapidez que Hide precisou despedir-se de Faye sem muita cerimônia e subir correndo para o seu quarto a fim de se organizar. Foi direto ao banheiro e preparou um banho quente com ervas perfumadas no ofurô, no entanto, antes mesmo que pudesse desfrutar da água morna, alguém batia em sua porta. Sabia quem era, pois ouvira os passos suaves e a movimentação no quarto momentos antes.
— Entra.
Após conceder a permissão, a porta foi silenciosamente aberta e Hide ouviu o som singelo da fechadura sendo trancada. Sorriu, fitando os olhos esmeraldinos, eles eram seu eterno refúgio, sua eterna morada. Yamano aproximou-se dele, tocando-lhe a bochecha, mas sua mão descia, passando pelo pescoço e pelo ombro coberto de Hide, que permitiu ser despido.
Com cuidado, Chihiro retirou o moletom cinzento que envolvia o corpo magro e pálido de Takashi, dobrando a peça de roupa e a colocando sobre a bancada de mármore negro.
— Eu percebi — comentou casualmente Yamano, passando os dedos nos brincos de Hide, que suspirou.
— Eu sei — ele devolveu, incerto do que deveria dizer a seguir. — Me acompanha? — pediu, fazendo sinal com a cabeça para a banheira fumegante.
Hideyoshi sentou-se na borda do ofurô e consentiu que Chihiro terminasse de tirar sua roupa, de vez em quando sua pele meio gelada era tocada cuidadosamente pela pele quente do outro, provocando um pequeno choque térmico e um longo e gostoso arrepio. Ao terminar, Yamano ergueu o olhar para Hide e sorriu, abaixando-se novamente para beijar a panturrilha pálida de forma carinhosa.
Takashi deixou um pequeno suspiro escapar antes de levantar-se para ajudar o outro a se despir também, eram acostumados a tomar banho juntos desde a infância então não sentiam-se constrangidos com esse ato agora na juventude. Com as roupas dobradas sobre o mármore negro da bancada, entraram na banheira e puseram-se lado a lado. Novamente o rapaz de cabelos castanhos suspirou, deitando sobre o ombro de Yamano, que lhe acariciou os cabelos. Os dois desejavam ser capazes de morar para todo o sempre em seus pequenos momentos de intimidade nos quais só os dois existiam, nada os faria mais feliz do que passar a eternidade ao lado um do outro, mas infelizmente sabiam que um dia o livro de suas vidas chegaria ao último capítulo.
— Sabe, Yano — começou Hideyoshi, encarando a água esverdeada pelas ervas. — Eu tive um sonho estranho. Me encontrei com uma mulher que nunca vi, mas sinto que já a vi antes. Ela me lembra você, apesar de não terem nada a ver um com o outro.
— E você a desenhou? — O dono dos olhos esmeraldinos questionou e Takashi assentiu. — Ela é... tão serena. Aquele desenho me deixou pensativo também.
— Não é? Ela é tão misteriosa, gostaria de saber quem é...
— Mas não é estranho? Tanta coisa esquisita uma seguida da outra... — comentou Yano, apanhando um frasco de sabonete líquido de morango. O mais baixo assentiu, sua mente uma bagunça total.
— Pelo menos ainda temos um ao outro, né — Hide olhou para cima, buscando o olhar do outro. O encontrou exatamente onde esperava encontrar.
— Sim, temos.
Yamano sorriu e aproximou-se ainda mais, suas respirações se perdiam entre as brumas das águas mornas. Se olharam profundamente por um tempo antes que seus lábios fossem unidos pela força do Destino, que os guiava, ainda que não tivessem ciência disso.
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