Estranho, muito, muito estranho. Por que aquela pessoa mandaria uma mensagem tão esquisita assim, do nada? Hide se virou para o rapaz ao seu lado, por um instante quase se perdeu na imensidão verdejante.
— Por que parou? — Questionou Yamano, seu semblante intrigado. Hide matutou um pouco, olhando para a tela, para Torotomo e para Yano.
— Kuroishi também te mandou uma mensagem esquisita?
— Mensagem esquisita?
— É, esquisita.
Os cabelos negros remexeram-se para um lado e outro, em negação. Hideyoshi arregalou os olhos, apavorado. Kuroishi e Sentochihiro eram amigos de longa data, mantinham boa relação em jogo e era natural que trocassem mensagens, porém hoje assim que a Imperadora entrou em Higure!, apenas dirigiu mensagem para Torotomo, embora não fossem próximos. Em qualquer outra ocasião ele teria relevado e respondido normalmente, até teria feito graça, mas, depois dos acontecimentos que antecederam a jogatina, Takashi estava meio cabreiro e totalmente paranoico.
E se Kuroishi fosse alguma daquelas enxeridas?
A mente de Hideyoshi se encheu de dúvidas enquanto seu personagem permanecia inerte em Menyarn, a possibilidade de ter sido enganado por pessoas que permitiu se aproximarem era muito dolorosa e o fazia desejar jamais interagir novamente com desconhecidos. Já não era muito de fazer amizades, mas se tivesse sua confiança traída quando, pela primeira vez em muitos anos, baixou a guarda e deixou que outros penetrassem no seu escudo quase intransponível, ele muito provavelmente jamais deixaria que outra falha como essa ocorresse. Essas ideias o deixaram retraído e inseguro e ele segurou firmemente a mão de Yamano, buscando algum conforto.
Tal conforto certamente pôde ser encontrado naquele olhar doce e familiar, naqueles braços quentes que o puxavam para um abraço carinhoso. Ficaram assim, juntinhos, por algum tempo antes de retornarem cada um ao seu assento, cada um para o personagem colorido que interpretavam.
Hide mostrou ao outro a mensagem de Kuroishi e criou coragem para respondê-la, afinal seria descortês um Imperador não responder a outro e poderia gerar atritos entre as nações dentro do jogo. O que quis dizer?, digitou rapidamente e enviou, entretanto não ficou online o suficiente para ver a resposta, esse ocorrido e todas as possibilidades de traição de confiança o deixaram paranoico e pesado e portanto Hideyoshi fechou o jogo e desligou o computador.
Juntos, os dois rapazes deitaram-se um de frente para o outro na cama de Takashi, ficaram em silêncio, apenas um olhando o infinito dentro dos olhos do outro, e então se aconchegaram e dormiram. Apesar de tudo e todos eles estariam sempre juntos. Sempre.
Um sonho estranho veio ao senhor Takashi naquela madrugada, sacudindo ainda mais sua mente já tão perturbada e lhe trazendo memórias há muito esquecidas.
Caminhava sobre os ladrilhos da trilha de um santuário de aparência abandonada, as lanternas de pedra não portavam chama e a neblina engolia os arredores, escondendo-os. As únicas cores existentes eram cinza e vermelho: as vermelhíssimas flores da morte o seguiam por todo o caminho cinzento. Não havia som além do vento, que assobiava baixinho em seus ouvidos. Mesmo assim Hideyoshi não sentia medo, de alguma forma aquele lugar lhe era familiar e lhe trazia paz.
Continuou andando sem pressa até alcançar um pequeno pátio que em tudo lhe lembrava um santuário xintoísta, o grande torii[1] vermelho como as flores estava posicionado bem na entrada, convidativo. Não havia qualquer placa com inscrições sobre o lugar.
Respirando fundo, Hide curvou-se em respeito a seja lá qual fosse a divindade daquele santuário e prosseguiu. No fundo uma construção que muito provavelmente era o local de adoração estava fechada, no entanto nas proximidades também havia uma pequena fonte cristalina que exalava fumaça quente e aroma de ervas e o jovem chegou mais perto, encarando seu próprio reflexo na fonte termal natural. Frio e desolador o vento soprou, sua melancólica melodia se fazendo ouvir no topo daquela montanha, um calafrio percorreu a espinha de Takashi, agora na superfície da água existiam dois reflexos.
Naturalmente levantou-se, olhando para trás.
— Você não me é estranha — disse, observando hesitantemente a figura de negro.
Ela trocou o peso do corpo de um pé para o outro, um pequeno sorriso formou-se em seus lábios finos e charmosos. Seu rosto, apesar de jovial, era marcado pelo cansaço e seus olhos vermelhos eram apequenados, carregando o peso de sua existência.
— De fato — a mulher respondeu, sua voz era tão suave quanto um último suspiro num leito de morte e tão aconchegante quanto o abraço de uma mãe. Os olhos de Hideyoshi tornaram-se úmidos por um motivo que não reconhecia. — Nós já nos conhecemos.
Trajava-se de modo simples, uma camisa de botões feita de cambraia branca e fina e uma saia média e negra que aderia bem ao corpo, por cima de tudo repousava um sobretudo preto e surrado, mas que lhe conferia uma elegância sem igual. Entretanto o que mais chamava a atenção eram os grilhões prateados em seus pulsos, eram pequenos e finos e não a prendiam em lugar algum, mas mesmo assim faziam parecer que ela sofria.
A mulher aproximou-se de Hideyoshi, ficando ao seu lado e encarando a si mesma na fonte termal, seus longuíssimos cabelos cor de algodão quase tocavam o chão. Ela voltou a falar, mais uma vez atingindo os sentimentos do rapaz de forma inexplicável.
— Faz tanto tempo... temo que não lembre mais.
Abaixou-se e tocou a superfície cristalina com a mão de pele alva e unhas bem feitas, gerando ondas que embaçaram seus reflexos. Não parecia importar-se com o fato de seu cabelo estar espalhado pelo chão. Hideyoshi a acompanhou, ficando bem ao seu lado, algo naquela mulher o chamava tanta atenção. Sentia que precisava dela desesperadamente, mesmo que aquela fosse a primeira vez que se lembrava de tê-la visto. Sentia que a amava desesperadamente, embora fosse um amor completamente diverso daquele que sentia por Yamano.
— Realmente, se já nos vimos não me lembro e peço perdão — respondeu, sua voz embargada pelo choro que segurava.
Com sua própria mão procurou a dela, seus olhares se cruzaram e ele não foi mais capaz de conter as lágrimas que mantinha presas desde o primeiro instante em que pusera o olhar sobre ela.
— Quem é você?
Ela sorriu, tocando-lhe a face com carinho.
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[1] - Torii é o nome dado àqueles portais que marcam a entrada de santuários e templos japoneses, eles representam a mudança do mundo terreno para o plano sagrado.
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