Só podia ser brincadeira, uma loucura total, um surto generalizado. Não tinha como aquilo ser real. Nunca, nem em um milhão de anos.
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A mulher de olhar dourado como a luz do sol do meio-dia falava, falava e falava, mas nada fazia sentido. Ou melhor, sentido até fazia, desde que estivessem falando do roteiro de uma animação ou de um RPG. Antes de iniciar, Kitsune parecia insegura e pensativa, no entanto, uma vez iniciado, o monólogo demorou para que encontrasse seu fim.
— Sabe, Yamano-san — começou Kitsune, bebericando o restinho do seu macchiato antes de dar continuidade. — E se houvesse uma realidade... diferente? Estou tentando não soar tão fantasiosa, já que vocês humanos tendem ao ceticismo, mas é assim que as coisas são. Em algum lugar, num plano diferente, há uma realidade diferente que se entrelaça, se desliga e volta a entrelaçar-se com essa de tempos em tempos. Houve um tempo em que eram intrínsecas uma à outra, as duas realidades, mas isso ficou no passado e não nos interessa agora. Nós, Yamano-san, viemos de lá.
Ao dizer nós, Kitsune fez um gesto dando a entender que o rapaz também estava incluído. Chihiro piscou, exatamente como ela disse, os humanos tendem ao ceticismo.
— Acho que não está dando certo — a jovem de beleza sobrenatural balançou a cabeça negativamente. — Vamos tentar outro método, um mais tangível. Chihiro Yamano-san, você acredita em Deus?
Novamente, Chihiro piscou os olhos com ênfase. Que raios de pergunta era aquela? Kitsune sorriu, seus olhos áureos reluziam com um brilho estranho. Ela apoiou a face sobre uma das mãos e continuou a falar, sem dar espaço para que Yamano respondesse.
— Entre vocês, humanos, costumam existir certas crendices. Os justos são recompensados, os maus recebem castigos e punições. Certo e errado são duas coisas instáveis, mas no fim sempre haverá uma entidade responsável por julgar, guiar os destinos dos homens. Não é assim?
Yamano assentiu. Ashura deliciava-se com seu bolo de chocolate.
— Independente de como se manifesta, bom, mau, afável, tempestuoso... Todas essas crendices populares levam a uma entidade comum: um ou mais seres de caráter divino. Bem, não estou aqui para debater teologia, apenas quis introduzir o assunto de uma forma compreensível sem soar fantasiosa. É fato que Deus existe. Também existem outras entidades divinas que o acompanham, ajudando a reger as forças da Terra e da Cidade Celestial e a manter a harmonia existencial.
"O problema, Yamano-san, é que essa harmonia está ameaçada. Clichê, eu sei, porém a realidade é essa. Deus desapareceu, tomou um chá de sumiço e puff, nunca mais voltou nem deu sinais. Isso aconteceu há mais ou menos uma década no tempo humano. Como o tempo divino se dá de maneira diferente, demoramos mais do que devíamos para perceber. O reino celeste não consegue suportar-se sem a força primordial oriunda de Dela, Aquela que atualmente é Deus. Procuramos por todas as partes, utilizando todos os meios possíveis. Nem Ela, nem o antigo Deus foram encontrados. Sem uma dessas divindades, o plano superior irá colapsar.
"Isso não diz respeito aos humanos, porque, veja bem, nós, seres divinos, rompemos o contato direto há tanto tempo que já nem me recordo. Para nós tanto faz se seu mundo explodir e se transformar em nada além de pó, assim como para vocês, que sequer sabem da nossa existência. Se nosso mundo fenecer, vocês não darão sequer um suspiro em lamento.
"Só que acontece, Yamano-san, que você não pertence a esse mundo humano. Por algum motivo que desconheço, você se escondeu aqui e se escondeu tão, mas tão bem que levamos muitos anos para achá-lo desde que nos demos conta. Eu não quero ser enfadonha, irmão, no entanto precisamos de você. Não, não do humano Chihiro Yamano que está diante de mim agora, mas da entidade divina conhecida como Sen, que era quem você costumava ser entre nós.
"Sen, que foi o primeiro de nós a ser concebido por Deus. Sen, que entre todos os nossos irmãos e irmãs, era o mais próximo de Deus. Tenho certeza que você, perdoe-me, que Sen saberá onde Ela se encontra e por qual motivo nos deixou. Precisamos encontrá-la, precisamos restaurar o equilíbrio da morada divina. Sei que você me entende, irmão. Sinto no âmago de seu ser.
E então, Sen, o que vai ser?, a voz soturna de Ashura ecoava em seus ouvidos, as vibrações soavam e ressoavam numa agitada consonância sem igual. Yamano, instigado pelas vibrações, sentia-se nervoso, apesar de toda a sua descrença. Não estava gostando do rumo desse papo.
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— E então, Yamano-san, o que vai ser? — Perguntou Kitsune, seus olhos dourados brilhando com a incerteza.
— Desculpe, não estava ouvindo — Yamano respondeu, de fato se perdera em pensamentos há algum tempo.
— Nós precisamos de você, irmão — a ruiva o fitou, havia nos olhos rubros o mesmo brilho que podia ser encontrado nos olhos áureos. — Volte conosco para os céus.
Por um momento, ele congelou. Céus?, era impossível. Os olhares vermelho e dourado caíam sobre ele, ansiosos, desejando intensamente uma resposta. De repente Yamano encheu-se de tristeza, não queria decepcioná-las, mas como poderia aceitar tal proposta? Não as conhecia e muito menos acreditava em sequer uma frase dita por elas. Além de tudo, tinha Hideyoshi. Jamais iria a lugar nenhum sem ele. Estava triste, teria que desapontar as simpáticas beldades de olhos brilhantes.
Chihiro Yamano suspirou, nem um pouco contente. O sino que havia na porta de entrada tilintou, sinalizando que a porta do café estava sendo aberta. Seus olhos esmeraldinos arregalaram-se ao sentir o inconfundível e quase imperceptível aroma do shampoo de morango, era ele. Virou-se bruscamente, o olhar de pistache encontrou o de mel.
Os cabelos castanhos moviam-se com surpreendente donaire, tão brilhantes, sedosos e bem cuidados como só ele era capaz de cuidar. Seu andar acompanhado do tilintar metálico de inúmeros brincos era o mais gracioso de todo o mundo, seus passos tão leves e silenciosos quase davam a impressão de que ele não tocava o chão enquanto caminhava. Apesar de escondida pelo folgado moletom cinza, a cintura curvilínea dele estava ali, saber disso fazia o coração de Yamano bater mais rápido, desejoso de deslizar seus próprios dedos por aquela pele macia e alva como a primeira neve de uma clara manhã de inverno. Por um momento perdeu-se nele, somente nele, o senhor de seu destino e sua vida, Takashi Hideyoshi.
Inconscientemente levantou-se. Ele caminhava em sua direção, já podia ver o canto de seus lábios curvados para cima num sorriso discreto. Parou bem diante de Yamano e ergueu a cabeça para fitá-lo. As mãos de Chihiro tremiam, ansioso por tomá-lo para si num abraço apertado seguido de um beijo ardente, mas tal demonstração afetiva ainda não era bem vista por muitas pessoas, não poderiam correr esse risco. O olho cor de mel de Hideyoshi brilhava, certamente sentia-se do mesmo jeito, sufocado, incapaz de extravasar todos os seus sentimentos.
Discretamente Yamano levou sua mão até a de Hideyoshi, o toque entre as peles gerou uma leve corrente que eriçou os pelos dos braços dos dois. Os lábios do mais baixo separaram-se, sussurrando algo que somente Yamano seria capaz de ouvir.
— Se a cada vez que eu pensasse em você eu ganhasse uma flor...
Chihiro sabia exatamente como a frase terminaria. Não esperou que o outro recitasse o fim.
— Andaria eternamente por um jardim infinito — sussurrou de volta, completamente dominado pelo olhar docemente amarelado como mel.
Sorriram um para o outro, o mundo de Yamano iluminou-se como o raiar da aurora. Toda e qualquer vez que seus olhos encontrassem Takashi Hideyoshi seria como um novo alvorecer. Infelizmente após cada alvorada vem um entardecer, logo a mulher de cabelos negros manifestou-se, mesmo que cordialmente, e atrapalhou o momento mágico dos dois.
— Queiram sentar-se, por favor. Todos vocês.
Hideyoshi pela primeira vez desviou o foco do seu olhar e fez uma cara esquisita ao fitar Kitsune. Yamano adiantou-se e puxou uma cadeira para que o mais baixo pudesse sentar-se bem ao seu lado. Não havia mais cadeiras disponíveis na mesa, portanto a loira não tão excepcional quanto suas duas colegas puxou um assento de outra mesa e sentou-se perto das conhecidas. Além dela havia uma ruiva de pele sardenta e bronzeada como ouro que o rapaz não conhecia, o olhar esverdeado era enigmático como as águas de um lago.
Ela imitou a loira Mynea e buscou também uma cadeira para sentar-se, acomodou-se ao lado de Hide com as pernas cruzadas delicadamente e os cotovelos apoiados sobre a mesa envernizada.
Com seis convivas ao redor da mesinha, estava terrivelmente apertado.
Ashura levantou a mão para chamar um atendente, dessa vez veio um rapaz que provavelmente fazia bico na cafeteria para fugir dos clubes do colégio. Os olhos escuros do jovem saltaram ao ver a ruiva, tão bela e estonteante, digna da capa de qualquer revista de moda em todo o mundo.
— Por favor — Ashura disse de forma cordial tal como Kitsune —, peçam o que quiserem. A conta fica por mim e Kitsune.
Hide negou educadamente com um meneio.
— De jeito nenhum, faço questão de dividir.
Tanto a mulher de cabelos negros quanto a de cabelos vermelhos sorriram e assentiram e os pedidos foram feitos. Diversas bebidas acompanhadas de uma infinidade de guloseimas em breve seriam postas à mesa para torná-la ainda mais apertada. Yamano hiperventilava, estava nervoso, não sabia o que aconteceria daqui para frente. Pelo menos Hideyoshi fora côrtes e não entrou como um vendaval enfurecido. Apesar do tamanho, ele poderia ser bastante indelicado quando convinha.
Chihiro sentiu um leve toque em sua perna, olhou de soslaio para o rapaz ao seu lado, logo em seguida chegando mais para perto. O que está acontecendo?, sussurrou Hide de forma quase imperceptível, embora Yamano tivesse certa dúvida acerca da capacidade de percepção das moças ali sentadas. Você me chamou de repente, continuou Hideyoshi, até me escreveu um bilhete...
Eu?, pensou Yamano, confuso. Franziu as sobrancelhas. Não havia escrito carta nenhuma.
Negou com a cabeça, seus cabelos negros moveram-se com donaire.
Hideyoshi estreitou o olho visível. Epa, tem caroço nesse angu. Em conjunto, olharam para Ashura, Kitsune e Mynea, enraivecidos. Essas filhas de uma mãe armaram uma tramoia desgraçada para conseguirem o que queriam! O rapaz de cabelos negros como obsidiana cerrou os punhos por debaixo da mesa, porém o de cabelos castanhos pousou a mão sobre sua coxa a fim de tranquilizá-lo. Trocaram olhares, em consenso. Em seguida entraram no cordial e agradável jogo de apresentações que se iniciara.
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