Tão vermelhos eram aqueles olhos, tão vermelhos, tão mordazes... não dispôs de mais tempo para refletir sobre aqueles anormais olhos carmesins, o golpe desferido em seu tórax o jogou longe, fazendo-o cair de costas numa calçada. Chihiro Yamano sentiu o ar ser expelido para fora de seus pulmões com o impacto e suprimiu um grito, soltando apenas um leve gemido.
Um desconforto sem igual se espalhava por seu corpo, sentia suas costas arderem e já não conseguia enxergar nitidamente, além disso em seus ouvidos ecoava um zumbido detestável e tudo ao redor girava de forma esquisita. Nunca em toda sua vida sentira-se dessa maneira, em todos os seus vinte anos vividos nunca soubera o que era desconforto físico.
Dor? Essa palavra apenas não constava em seu dicionário.
Antes que fosse capaz de voltar a si, sentiu um peso sobre o peito, forçando-o contra o concreto.
Muito lentamente moveu os olhos para vislumbrar a figura de cabelos purpúreos, não conseguia divisar seu semblante, estava oculto pela sombra projetada por alguma construção, mas sabia que os penetrantes e ferozes olhos vermelhos estavam lá, brilhando, deleitando-se com a visão de seu sofrimento. Somente... não entendia o motivo. Por que hoje tantos estranhos haviam tirado o dia para implicar com ele e atormentá-lo? O que, com todos os diabos, fizera de errado? Como pudera ofender tanta gente que sequer conhecia?
Já estava farto.
Aquela força continuava a pulsar dentro dele, sentia-se como uma panela de pressão, chiando e chiando, vibrando com um sentimento desconhecido dentro dele. O estranho pisou com força sobre seu peito, deixando a marca da sola do sapato no moletom de Yamano. Uma corrente elétrica percorreu todo o seu corpo, seus pelinhos eriçaram-se. Chihiro abafou um gemido e se esforçou para fitar os olhos carmim, com muito esforço foi capaz disso e então não conseguiu mais conter a força aterradora. A panela de pressão explodiu.
Segurou com demasiada firmeza a perna do desconhecido, que soltou um palavrão e trincou os dentes, mas Yamano não parou. Com um impulso, puxou a perna do outro, fazendo-o perder o equilíbrio e, tomado por uma onda de adrenalina, Chihiro aproveitou-se desse momento para levantar-se e empurrá-lo para o chão.
O desconhecido cambaleou, porém não caiu. Com um pulo para trás ele se recompôs. Yamano cuspiu e espanou a sujeira da roupa, finalmente conseguiu ver claramente o rosto de seu agressor, foi antipatia à primeira vista.
O homem de cabelos lilases novamente investiu contra ele, mas dessa vez Yamano não estava desatento e desviou-se, agarrando-o pelo capuz do casaco e dando-lhe um safanão na nuca.
Novamente o estranho cambaleou e não caiu, apenas distanciou-se um pouco para recobrar o ar. Chihiro suspirou, cansado daquela briga sem sentido, e subitamente lembrou-se de suas perseguidoras, será que havia as despistado? Há algum tempo não as via nem sentia seu corpo vibrando em consonância com o delas, pelo contrário, agora seu corpo estava fervilhando, mas correspondia ao chamado do corpo do homem desconhecido.
Seus olhos se arregalaram em espanto, seria ele aliado delas?
Um rosnado furioso escapou pelos lábios do homem de pele marrom, mas seu semblante trazia uma frustração enigmática para Yamano. Ele chutou as pedrinhas no chão e bateu o pé, cruzando os braços.
— Diz alguma coisa, caralho! — Rosnou o desconhecido. — Ficar olhando pra você assim, dessa forma patética, me deixa puto!
— Eu nem te conheço, porra! — Exasperou-se Chihiro, impulsionado pelas vibrações perigosamente explosivas de seu corpo. Um passo em falso, uma palavra dita de forma errada e ele sentia que seria capaz de mandar pelos ares todo o distrito.
Os olhos vermelhos saltaram e um semblante surpreso verteu na bela face repleta de badulaques metálicos. Yamano estreitou os olhos, preparando-se para uma possível reação impulsiva da parte do desconhecido, entretanto ela não veio. Então foi a vez dele mesmo ficar surpreso: a pessoa de cabelos lilases estava chorando.
Aquilo, apesar da coloração escura e diferente da translúcida comum, eram lágrimas e vertiam compulsivamente dos olhos carmesim. Por um instante, a cena tocou os sentimentos de Yamano, fazendo-o parar de amaldiçoar o outro mentalmente, contudo ainda não entendia o motivo de tanto exagero, pois aquela era a primeira vez que seus caminhos se cruzavam.
— Como... — balbuciou o desconhecido. — Como você consegue mentir desse jeito?
— Hein?
— E ainda continua a fingir! — Os olhos vermelhos, ainda úmidos, se estreitaram. Yamano sentiu a vibração consonante aumentar, era como uma forte rajada de vento açoitando seu corpo, cada nova oscilação mais forte que a anterior.
Tão veloz quanto o bater das asas de um beija-flor, o homem avançou novamente contra Chihiro e, no lugar de desviar, o rapaz apenas deixou que se chocasse contra ele para que pudesse pegá-lo desprevenido. E funcionou, tinha o outro preso por uma chave de braço e, tão logo quanto os olhos carmesins se estreitaram, Yamano desferiu um soco com toda sua raiva no rosto tão garboso do outro.
O desconhecido cambaleou, desnorteado por um instante, e tentou afastar-se, mas o jovem de cabelos negros o agarrou pelo capuz do moletom e com um movimento ágil o derrubou no chão com uma rasteira. Rapidamente os olhos verdes percorreram o perímetro, não era possível que nenhuma das pessoas que passavam por ali não estivessem vendo aquilo!
Ainda sem soltar o outro, Yamano o pressionava contra o concreto da mesma forma como o desconhecido fizera com ele instantes antes. Os olhos esmeraldas fitavam os olhos cor de vinho, o estranho trincou os dentes e Yamano sorriu, sentindo-se um pouco mais aliviado por ter extravasado a raiva de alguma forma. Pretendia questionar o outro sobre o que diabos fora isso tudo e principalmente se ele estava a serviço das jovens com quem cruzara mais cedo, entretanto não havia mais tempo.
Em sintonia, tanto Chihiro Yamano quanto o desconhecido sentiram. Seus corpos deixaram de ressoar unicamente um com o outro para se juntar à uma ressonância ainda maior, outras duas frequências intrometeram-se no dueto.
Em questão de instantes havia quatro almas se chamando, clamando umas pelas outras num ressoar sem fim, cada qual com um chamado único e diferente das outras, porém ao mesmo tempo infinitamente semelhantes.
Pulsavam e pulsavam e a vibração jamais cessava, pelo contrário, somente se intensificava.
Juntos, os olhos esmeraldinos e os olhos rubros moveram-se na direção de onde ecoavam aqueles dois chamados e juntos se arregalaram, incrédulos. Elas vinham caminhando lado a lado, se aproximando passo a passo. Yamano e quem ele mantinha preso se entreolharam e voltaram a fitá-las, atônitos.
Ambos pararam de fazer força e apenas quedaram-se a observar, sem saber o que fazer. Mil coisas se passavam na mente de Chihiro, só desejava voltar para o aconchego do quarto de Hideyoshi.
E então lá estavam elas, as duas belas damas. Era tão forte que deixava o garoto tonto, a vibração consonante de seus corpos fazia até mesmo o ar fervilhar. Vermelhos, dourados, verdes e carmesins, quatro pares de olhos se encaravam.
Um arrepio percorreu sua espinha, queria correr, fugir diretamente para os bracinhos de Takashi Hideyoshi, no entanto não havia escapatória. A ruiva segurou delicadamente o pulso do rapaz, o contato de suas peles foi demais para Yamano, que trincou os dentes, a corrente elétrica que passava de um corpo para o outro o deixava mais e mais febril.
Suas mãos tremiam e as dela também, se por acaso fosse tentar contar aquela sensação para Hide, não conseguiria, era impossível descrever aquilo com palavras. A beldade de cabelos vermelho sangue o ajudou a se erguer e logo em seguida ajudou o estranho de cabelos roxos a levantar-se também, porém não o soltou, continuou mantendo-o sob controle.
Enfim estavam os quatro em pé, frente a frente, a belíssima mulher de cabelos negros como o céu de uma noite sem estrelas sorriu, seus estreitos e delineados olhos dourados fecharam-se como consequência. Era linda. Incomparavelmente linda.
— Ora, ora — riu. — Pelo visto o tempo cura tudo.
Seu olhar irônico e dourado estava fixo no homem de cabelos púrpura. Ele cuspiu e fez uma careta, tentando libertar-se da ruiva sem sucesso.
— Me poupe do seu sarcasmo, Kitsune — ele revirou os olhos. — Se possível, me poupe da sua voz. Ei, Ashura! — Dirigiu-se agora para a ruiva. — Qual foi? Me deixa ir!
Ela assentiu.
— Vá em paz, irmão — disse a ruiva, Ashura, ao soltá-lo. A morena, Kitsune, apenas deu de ombros, expressando indiferença.
O ainda desconhecido para Yamano deu-lhe um último olhar raivoso e tristonho antes de afastar-se, desaparecendo na sombra escura de um prédio. Yamano piscou, embasbacado. Aquela pessoa apenas sumiu, sem mais nem menos, sem deixar um rastro sequer. Apesar disso, não se sentia nem um pouco aliviado.
A companhia de Beldade Um e Beldade Dois só transmitia tensão, horror e desespero.
E raiva, muita, muita raiva.
Lembrou-se de Hideyoshi, Kitsune o dera um tapa tão forte que o garoto desaparecera no ar quase da mesma forma como o desconhecido de cabelos púrpura desapareceu nas sombras. Sem que percebesse, cerrou os punhos e franziu o cenho. Somente relaxou um pouco quando a mulher de olhos dourados ergueu as mãos num sinal de paz, a ruiva, Ashura, quedou-se a fechar os olhos e cruzar os braços.
— Calma, calma. Viemos em paz — proferiu Kitsune, ainda sem abaixar as mãos com unhas delicadamente pintadas de vermelho e dourado.
Yamano não conseguia acalmar-se na presença daquelas duas, o olhar dourado e a calmaria rubra instigavam a vibração no âmago de seu ser, as três frequências ressoavam juntas, incomparavelmente distintas e impossivelmente semelhantes, mesmo que agora transmitissem ondas suaves, o rapaz não era capaz de sentir-se confortável.
Cada lapso de memória da cena de Hideyoshi desaparecendo o enchia de uma raiva que interferia em sua frequência, causando dissonância em relação às outras. Kitsune falou novamente, sua voz soturna quebrando a concentração de Yano, que há muito se perdera entre as vibrações e ressonâncias.
— Você gosta de café?
— Hein?
— Café — repetiu Ashura, descruzando os braços. — Aquela bebida escura, servida em copinhos com asinhas desse tamanhinho — ela usou as mãos para representar o tamanho de uma xícara de café. Yamano piscou os olhos esmeralda.
— Sim, isso eu sei — respondeu, ainda confuso. — Quentinho, escuro. Café.
— Então vem com a gente — Kitsune sorriu, seus olhos delineados tornaram-se ainda mais estreitos —, conhecemos um lugar bacana.
Ainda sem saber o que o fez segui-las, Chihiro Yamano caminhava um pouco atrás das duas mulheres bonitas. Seus cabelos rubronegros balançavam de um lado para o outro com o movimento, eventualmente as orelhas brancas no topo da cabeça de Kitsune se moviam também. Estavam se dirigindo para algum lugar no qual se podia tomar café, mas mesmo assim o rapaz não conseguia entender o que o motivara a concordar com isso. Sentia-se inseguro, em apuros e revoltado, queria estar indo na direção de sua casa, no entanto apesar de tudo isso ainda assim consentiu. Ainda continuava caminhando por livre e espontânea vontade para o desconhecido.
— Não precisa se preocupar — Kitsune respondeu ao questionamento, a encantadora face apoiada em ambas as mãos. — Não fiz nada de mal a ele.
Yamano estreitou os olhos, desconfiado, no entanto assentiu com a cabeça.
— Inclusive — continuou ela, desviando seu olhar dourado para outro lugar —, tomei a liberdade de convidá-lo também. Mynea foi buscá-lo.
Os olhos esmeraldinos se arregalaram, surpresos. Como pudera não ter dado falta de uma delas antes? Subitamente ficou nervoso, temendo por Hideyoshi.
Um forte aroma de chocolate e café permeava o ambiente, tornando-o ainda mais agradável. Toda a mobília era de uma madeira clara e envernizada, que refletia quando iluminada pela luz e combinava perfeitamente com o chão, também de madeira envernizada. A cafeteria era fechada, porém nem um pouco abafada e as mesas estavam dispostas a uma distância considerável umas das outras a fim de manter a privacidade dos frequentadores.
Num geral era bastante aconchegante, mas mesmo assim Chihiro Yamano não conseguia sossegar. Sua perna tremia incansavelmente após a notícia sobre Hide, deveria estar lá com ele para protegê-lo de qualquer coisa, contudo se deixara capturar, se entregara por vontade própria para as desconhecidas que fizeram mal ao seu amado e agora só restava o arrependimento, a agonia e a aflição.
Tentou não demonstrar seus nervos à flor da pele e somente assentiu novamente, graças aos céus não precisou fingir por muito tempo, logo uma jovem de uniforme marrom e branco aproximou-se deles com uma bandeja. Havia nela três xícaras que rapidamente foram depositadas sobre a mesa, um cappuccino para Ashura, um macchiato para Kitsune e um forte, muito, muito forte expresso para Yamano. Além disso, também pediram fatias de bolo de morango e torta de limão para acompanhar. Quando a atendente terminou de dispor os pratos e todos os aparatos na mesa, Kitsune agradeceu-a e Yamano pôde perceber que a jovem funcionária enrubesceu ao cruzar seu olhar com a deslumbrante mulher de cabelos negros. Não a culpava, era impossível não perder a compostura ao olhar para as duas damas pela primeira vez. Eram absurdamente belas.
Porém igualmente assustadoras, pensou Yamano enquanto observava Ashura deliciar-se com seu bolo de morango.
— Então, Sen... — começou Kitsune, mas logo foi interrompida pelo rapaz.
— Yamano. Chihiro Yamano.
O canto direito dos lábios rosados da moça estava sujo de creme, ela despretensiosamente passou a língua no local, limpando os resíduos. Ashura enfim ergueu os olhos vermelhos, deixando seu bolo de lado.
— Como queira — a mulher de cabelos negros tornou a apoiar a face entre as mãos. — Por que se escondeu de nós por tanto tempo? E por que você... está assim?
Lançou-lhe um olhar repleto de compaixão, porém ele não entendia bulhufas daquela conversa. Não estava se escondendo de ninguém, aliás o primeiro contato com as duas belas damas havia sido hoje mesmo, pela manhã. Nunca as vira antes, tinha a mais plena certeza. Definitivamente houve uma falha de comunicação. Yamano pigarreou e deu um gole em seu expresso.
— Não me escondi — afirmou entre um gole e outro. — Eu nem conheço vocês.
— Como? — Ashura manifestou-se pela primeira vez, seus olhos sempre desinteressados agora arregalados.
— Eu nunca as tinha visto até hoje de manhã — ele depositou a xícara sobre o pires e cruzou os braços, recostando-se na cadeira.
As duas mulheres se entreolharam em silêncio.
— Seus olhos não mentem — disse Kitsune por fim, suspirando. — Eu só... não consigo entender. O que o fez ficar assim, irmão?
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