Um vento forte e seco soprava naquele início de tarde azul, fazendo os longos cabelos purpúreos agitarem-se e dando-os a aparência de uma moita emaranhada de capim roxo. O tempo estava bem ameno e agradável, já devia ser aquilo que os humanos gostavam de chamar de hora do almoço.
Tomava o maior cuidado para não ser reconhecido, não desejava problemas com as autoridades justamente no dia que resolvera folgar e aproveitar uma vida normal, portanto mantinha sempre o capuz negro de seu moletom ligeiramente levantado a fim de cobrir-lhe o rosto. Ou pelo menos quase sempre, afinal ali naquele subúrbio de fim de mundo sentia-se plenamente seguro e permitiu-se baixar o capuz para exibir por aí seu belo rosto jovial, duvidava que nos cafundós de Tóquio alguém fosse reconhecê-lo.
Talvez uma ou outra pessoa ficaria com a sensação de já tê-lo visto em algum lugar, mas não passaria disso, ninguém se prestaria a fazer alarde por conta de um rosto familiar.
Encarou-se por um momento na vidraça da livraria, como sempre, estava radiante. Os cabelos púrpura caíam-lhe até metade das costas e contrastavam bem com sua pele escura, porém contrastavam melhor ainda com seus ariscos e ladinos olhos carmim.
Mexeu com a língua no piercing que repousava no canto inferior direito de seus lábios e sorriu, se tinha uma coisa que o ser divino apreciava nesse mundo era ele mesmo. Apreciava também os badulaques metálicos que perfurava em seu corpo para enfeitá-lo, os tinha desde as orelhas até a língua e os mamilos e em lugares ainda mais íntimos. Apreciava a corrente prateada ao redor de seu pescoço, que carregava seu bem mais precioso em forma de pingente, pois fora um presente Dela. E surpreendentemente também apreciava uma boa leitura.
Penetrou um pouco mais no recinto, passou os olhos por prateleiras incontáveis até que encontrou um pequeno romance fantástico, deslizou os dedos por sobre a lombada com muito zelo antes de retirá-lo da estante levemente empoeirada. Folheou-o rapidamente e decidiu levá-lo consigo, mas era tão curtinho que optou também por escolher mais um ou outro título. No fim se viu com o romance fantástico, uma ficção científica e os dois volumes iniciais de uma alta fantasia medieval.
Na hora de realizar o pagamento pelos livros, logo foi atendido por uma senhorinha de aparência gentil, ainda que marcada pelo tempo. A criatura celestial passou os livros num de seus cartões com dados falsificados e rapidamente recebeu uma sacola com suas compras, além de dois marcadores de página com as informações da livraria. Ele sorriu, certamente voltaria ali mais vezes.
Não importava quantas vezes realizasse compras no mundo humano, nunca deixaria de achar engraçado o conceito de dinheiro e valor comercial. De onde vinha, esses conceitos apenas não existiam. Para ele economia não fazia o menor sentido, por que uns tinham tanto e outros tão pouco? O bem estar da população não deveria estar em primeiro lugar?
No fim nada fazia diferença, seu aspecto interior, a matéria da qual fora feito, continuaria reinando por sobre este mundo falho e fadado à ruína até o fim dos dias.
Ali perto, sabia ele, estava localizada uma cafeteria de muito bom gosto e foi para lá que se dirigiu em seguida, tomado por uma inexplicável vontade de bebericar um doce macchiato de caramelo. Andou por algum tempo sempre buscando as sombras projetadas pelos infindáveis prédios até que algo estranho aconteceu, seu interior pulsou de uma forma esquisita.
Primeiro pensou que estivesse imaginando coisas, depois pensou que fosse outro de seus irmãos infelizes e por último resolveu ignorar e continuar a caminhar, entretanto seu corpo fervilhava por inteiro, sentia o chamado dos outros e certamente eles também sentiriam o seu.
Que merda, pestanejou, não estava nem um pouco a fim de topar com seus infelizmente parentes. Talvez encontrasse a única dentre eles que gostava, mas as chances eram ínfimas, Ashuramaru não estimava o mundo humano.
Entretanto...
Algo não está certo.
Suspirou e manteve-se caminhando pela sombra até que aquilo tornou-se insuportável, era tão forte quanto naquele dia em que se viram pela última vez. Os olhos carmesim saltaram em espanto e seu belo rosto verteu uma careta incrédula. Não, não, não. Não poderia ser ele. Tudo menos ele. Enfim parou numa esquina, ainda aterrorizado com a ideia de encontrar aquele ser tão patético, não era possível que por todo esse tempo ele estivesse vagando nesse mundo inferior.
Mas... essa pulsação,
esse chamado,
só pode ser...
Então era isso. Por todos esses anos, aquele desgraçado se escondera como um rato num mundo ordinário como esse. Uma explosão de sentimentos o atingiu com tanta força que deixou-se cambalear: raiva, mágoa, ódio, desprezo... e... Trincou os dentes, inteiramente fora de si. Sentia a Loucura dominá-lo, como era desde o início dos tempos.
E, como um raio que atinge a copa de uma árvore e a incendeia, algo chocou-se contra ele.
Sentia aquela energia pulsando, percorrendo cada centímetro do seu corpo, não conseguia acreditar, tampouco queria, mas era o que era e não podia mudar a realidade. Os olhos vermelhos fixaram-se nos olhos esmeraldas e Hyouka viu-se frente a frente com a criatura que mais odiava em todos os mundos existentes e inexistentes.
Que Ela me ajude, rogou aos céus enquanto tremia dos pés à cabeça. Somente a Senhora seria capaz de me deter agora.
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