O porta-retrato quase cai no chão com meu sobressalto. Com
o coração disparado na boca, me viro em direção a porta no instante em que
mamãe a está fechando.
Ela já está arrumada para o jantar, claro. O vestido azul-cobalto de saia drapeada se molda ao largo corpo curvilíneo e harmoniza com a pele porcelana; o cabelo escuro e cheio cascateia em ondas, apenas uma parte presa no topo para sustentar a tiara.
E, ao me ver na cama, franze a testa.
— Não acredito que ainda está de roupão! Esperava que ao menos estivesse terminando com o cabelo… Onde está Brigitta?
— Eu precisava ficar sozinha.
— O que esteve fazendo esse tempo todo em vez de… — Ela se interrompe quando, ao passar do sofá, encontra a resposta na bagunça de dardos e vidro. Balança a cabeça num suspiro cansado. — Nem sei por que ainda enviam esses vasos para cá.
Resmungo sem dizer nada, devolvendo o porta-retrato ao seu lugar de segurança. Quando me volto para ela, mamãe tem a cabeça levemente inclinada, as íris verde-mar me analisando à distância.
— Ainda está de mau-humor ou pode ir se vestir para o jantar?
— Mau-humor? — Arquejo, saltando da cama. — Acha que estou apenas mal-humorada?
Ela nem pisca.
— Conheço você o suficiente para saber que não — diz, segurando as mãos diante do diafragma numa pose solene. — Mas se for esperar até que pare de remoer suas queixas, ficaremos por horas aqui. Então diga de uma vez o que quer dizer e venha se trocar. Aristides acha que está se atrasando novamente apenas para irritá-lo e uma veia está para estourar na testa dele.
Mamãe tem uma tranquilidade quase fria ao falar. O tom reservado para reuniões diplomáticas com nobres problemáticos. Mas ouvi-la usar esse tom — o da rainha Roxanne — em vez de me apaziguar, é outra flecha em chamas, reavivando as brasas em meu peito.
— Ele não vai morrer se esperar mais alguns minutos. É justo, considerando todo o tempo em que me escondeu esse noivado e por ter contado da forma mais ridícula!
Mamãe me lança um de seus olhares gelados.
— Não fale dessa forma tão leviana quando conhece o estado dele. Entendo que esteja irritada, mas isso não justifi-
— Irritada ainda é pouco para o que estou agora! — retruco, avançando até a ponta da cama. — E como pode dizer que entende? Como pode achar que entende ou chegar perto disso? Ninguém a obrigou a se casar! Se realmente tentasse ao menos imaginar, teria… — Bufo uma risada amarga, balançando a cabeça e seguro com força a pilastra à minha direita. — Vocês me permitiram namorar o Gustav. Como puderam fazer isso? Que tipo de sadismo é esse, me deixar criar a ilusão de que eu poderia escolher com quem me relacionar só para me mostrar que na verdade nunca pude? E agora acha que é só vir aqui com toda sua condescendência dizer que entende eu estar irritada e vou esquecer?!
O ar frio entrando pela varanda é insignificante quando a flecha em chamas transformou meu coração numa caldeira novamente, fervendo o sangue, as lágrimas e as palavras que vomito. Mamãe, por sua vez…
— Sei muito bem que não esquece. Nem espero isso — diz, devagar, apertando mais as mãos. Sua tranquilidade é ofensiva, embora não tanto quanto a de papai. Ela sempre foi assim, a senhora do autocontrole; uma fortaleza de rocha com aparência de porcelana. — Mas quanto ao Gustav… Me diga: se tivéssemos falado “não pode namorar com esse rapaz porque está prometida a outro”, teria aceitado?
— Claro que não! Mas ainda tinham que ter falado! Deveriam ter-
— Sim, claro. “Deveríamos” muita coisa — replica, a voz mal se elevando. — Mas contar naquela hora e proibir que namorasse… — Ela balança a cabeça para si mesma. — Não parecia tão apaixonada por ele, então acreditamos que com o tempo-
— Não parecia… — Me interrompo com uma risada áspera. — Ah, e com certeza os dois são os melhores para perceber como realmente me sinto, não é? E baseado nisso, acham que está tudo bem apostar com a minha vida?
Mamãe não responde. Claro que não, bufo, falhando em expulsar as lágrimas irritantes que afogam meu fôlego.
— E sim, eu teria ficado irritada se tivessem me contado há um ano ou semanas atrás… Ficaria indignada com esse noivado de todo jeito. Mas teria tempo para lidar com isso, não um par de horas! Nem estou dizendo que deveriam ter quebrado o tratado por mim, só queria que tivessem a consideração de me avisar antes! Mas não… Ele sequer quis dizer com quem vou ser obrigada a casar!
Mamãe solta o ar pesadamente, tocando a testa com a ponta dos dedos por breve segundo.
— Eu disse a ele que eu quem deveria ter contado… Ele esconder justamente isso… — suspira, balançando a cabeça em resignada reprovação. — Por isso que vim con-
— Falar esse tipo de coisa agora já não adianta nada! Sabe como ele é, e ainda assim, deixou ser ele a dar notícia — corto, impaciente. — Não queria arriscar as consequências que imaginou se proibisse meu namoro com Gustav? Tudo bem. Mas faz meses que terminei com ele. Por que não contou nesse tempo? Acha que dizer a merda de um nome faltando poucas horas para o anúncio vai resolver o quê? — bufo uma risada amarga. — Grande diplomata a senhora é, não? Para tudo, consegue se adiantar para evitar os conflitos… Mas quando se trata dos próprios filhos, só age quando já é tarde demais. Foi assim com Alexan-
Não diga isso!
Uma rajada de vento bate as portas da varanda com força e mordo a ponta da língua com o susto. O leve gosto de ferrugem se mescla ao amargor. Mamãe apenas estremece, as mãos e boca apertados, os olhos ilegíveis. Sem qualquer rachadura em sua fortaleza, mas isso não surpreende. Em dezessete anos, sou capaz de contar nos dedos as vezes em que a vi ruir.
— Tem razão, não adianta — ela diz, seu tom frio e distante de rainha criando uma muralha entre os metros que nos separam. — Não importa o que eu diga aqui, só irá escutar aquilo que puder usar para arremessar de volta. Quer continuar reclamando sobre todas as formas que falhamos com você? Faça isso enquanto se arruma para o jantar. Goste ou não, acertando ou não, fizemos o necessário em nossa posição. Será rainha um dia e espero que, até lá, aprenda a escutar os lados antes de julgar de forma tão cruel. Talvez, quando estiver no nosso lugar, você entenda.
Suas palavras são um copo de água gelada em minha cara e não consigo reagir a tempo enquanto a assisto atravessar a suíte e sumir dentro do vestiário.
Entender quando estiver no lugar deles, ela diz? Com uma coroa que nunca deveria ter sido minha e precisando obrigar uma filha a casar… filha essa vinda de uma relação também indesejada? E eu que estou sendo cruel e preciso aprender a ouvir?
Dou meia volta e a sigo, pisando duro. Mas, assim que entro no vestiário, a réplica afiada que pretendia dar evapora quando vejo mamãe puxando um vestido lilás do meio das cruzetas.
— Não vou usar isso — desdenho, ofendida por ela até mesmo cogitar um tom tão alegre para a ocasião.
Ela devolve a peça com apenas um suspiro resignado, e volta a analisar as opções entre os vestidos. O vestuário é grande o suficiente para cinco pessoas, a ponto de até mesmo ter um sofá circular cor de vinho no centro. As paredes laterais são tomadas por cabideiros lotados e prateleiras de acessórios diversos… que em breve precisarão ser rearrumados para acomodar o tal noivo.
Desvio o rosto com uma careta, mas o futuro próximo é uma sombra palpável apertando meu pescoço.
Ainda não é irreversível. Não ainda. Pode ir embora. Sabe como.
O tom cavernoso da torre se mistura ao de Escórpio ao repetir a proposta tentadora. Um caminho de possibilidades se reflete no grande espelho de moldura dourada na parede do fundo…
O espelho que é também uma porta escondida.
Por anos, usei o labirinto de túneis como caminho alternativo para não ser perturbada pela corte. Por anos, vem sendo também minha esperança, uma rota de fuga caso tudo se torne demais para suportar.
Com um casamento arranjado somado à equação…
“Nunca quis ser rainha, não é?”
— Não.
— Você nem mesmo olhou!
A resposta indignada de mamãe me sobressalta, e desvio o olhar do espelho, franzindo a testa sem entender. Até ver o vestido azul-acinzentado com mangas de renda que ela segura.
— Olhei. A resposta é não.
— Escolha você, então. E rápido — exaspera-se ao devolver mais uma peça.
Esfrego a nuca, tornando a olhar para o espelho. Não há mais Escórpio nem o caminho de possibilidades. Mas a pressão ao redor do pescoço continua.
— Alissa?
— Nunca ocorreu a vocês, durante esses anos, que eu poderia fugir? Simplesmente desaparecer no meio da noite… Nunca imaginaram essa possibilidade? — a pergunta me escapa ao voltar-me para ela.
Só me dou conta da ameaça velada quando a última palavra sai. E é a primeira vez em que mamãe vacila, os olhos arregalando-se minimamente e a mão voando para a base da garganta. Mas não sei se pela ameaça, propriamente, ou se por lembrar das fugas para o cemitério — uma delas quase resultando em minha morte.
Mas, sendo a rainha do autocontrole que é, logo recompõe a fria expressão solene, apertando as mãos diante do corpo.
— Não. Não acho que seja capaz.
A voz, cheia de certeza, é um segundo copo de água na cara. Uma jarra inteira.
Não sou capaz…
O coração acelera em indignação e a respiração se torna rasa. Mas, diferente de quando estive sozinha, não permito que a emoção tome controle. Trinco os dentes, a sufocando até que se condense em magma.
Após o jantar terei a madrugada inteira para extravasar o que ainda queima e então poder pensar sobre tudo. Porém, isso não significa que estou disposta a colaborar com um vestido alegre e sorrisos até a noite terminar.
Os vestidos são organizados numa escala de progressão de tons e cor. Passo reto por mamãe e, quase do fim da parede, puxo um de tafetá com aplicação em renda. A cintura é alta e a saia se abre como uma beladona; o decote vai de ombro a ombro, com mangas de renda até o meio do braço.
Mamãe torce o canto da boca.
— Alissa, não esse de fune-
— Vai ser esse.
Quando começo a colocar o vestido, ela não tem escolha e vem me ajudar a fechar. O tom de verde-esmeralda por si só não seria problema, mas sob a aplicação de renda preta, se transforma na cor do luto em Thempesta. E o contraste com minha pele de porcelana empalidecida pelo estômago embrulhado o torna ainda mais lúgubre.
Ignorando o julgamento silencioso de mamãe, complemento o visual colocando o par de pulseiras rendadas pretas, que cobrem metade dos pulsos; no esquerdo, ajeito a pulseira prateada com berloques para que fique sobre a renda. A pulseira — carregando um sol, um sapato e um pássaro de asas abertas — assim como a medalha que trago na gargantilha e o anel de aço pendendo num cordão, é um de meus amuletos mais preciosos, dos quais só me afasto quando forçada por situações muito formais. Mas hoje não há nada que me faça trocá-las por algo mais “apropriado”, e nem mesmo mamãe ousa sugerir.
Após calçar as sandálias, saio do vestiário e me sento diante da penteadeira de forma automática. O orgulho é a única coisa me motivando a passar alguns cosméticos na cara para disfarçar os vestígios de choro.
Mamãe surge atrás de mim e, silenciosa, começa a escovar meus cabelos… Algo para o que ela nunca teve tempo nos anos anteriores à morte de Axl, ocupada demais governando Thempesta com papai como se fosse um Igual-do-Regente.
Foi apenas há oito anos — depois do incidente no dia em que Axl teria completado 16 anos — que ela começou a se esforçar para compensar os anos perdidos e estabelecer um laço de fato. E, mesmo com um desentendimento ou outro, acreditei que estivéssemos progredindo, conseguindo nos aproximar de uma relação mãe-filha… Mas talvez tenha sido apenas ilusão minha, uma fantasia infantil remanescente.
Se ela foi capaz de me esconder algo tão sério como o noivado… Como posso acreditar ser real? É uma traição ainda pior do que foi a de Gustav.
Como é possível passar por cima do passado e construir algo novo com mais esse ressentimento?
E se mal consigo me entender com mamãe, que é a mais comunicativa, como posso sequer alimentar a ilusão de conseguir algo com papai ou Annabella? Todas as tentativas só parecem piorar tudo…
E se esse é o mais longe que conseguimos ir em nossa relação… se só somos capazes de ser uma família no título…
Por que continuo aqui?
Pelo espelho oval, a observo arrumar meus cabelos, esperando que isso me traga alguma resposta… mas em vez disso só consigo pensar que é quase como ter Alexander aqui. A delicadeza dos traços, tons de pele, olhos e cabelo… Ela também o enxerga ao se olhar no espelho?
Embora alguns digam que eu e Axl parecêssemos gêmeos de idades diferentes — e ele fosse igual mamãe — a semelhança entre nós duas é mais sutil, por conta da forte herança do lado paterno. Muitos dizem, quase em consenso, que sou mais parecida com minha avó…
Ao que tudo indica, além da aparência, herdei o mesmo destino.
Se eu morrer aos vinte anos durante o parto, completo a cartela do Bingo de Herança Real, bufo para mim mesma.
— Não quer assim? — mamãe indaga, franzindo a testa ao me ouvir.
Ela prendeu duas mechas parcialmente trançadas atrás da cabeça, deixando o resto solto, caindo como cortina pesada até o meio das costas.
Dou de ombros, mas afirmo estar bom; até permito que ela acrescente um arco de prata, semelhante a uma tiara, no topo de minha cabeça.
Estou tão apresentável para um noivado quanto para um velório.
Após passar o perfume, me levanto para ir descobrir o que me espera.
— Alissa… — Mamãe chama, seu tom amenizado, e ela toca meu braço.
Me retenho, arqueando uma sobrancelha.
— Sobre o que falei há pouco, sobre não ser capaz de-
— Não importa — digo, recolhendo o braço. — Pelo que lembro, disse que estamos atrasadas.
Não preciso ouvir seus motivos.
Mesmo que meu interior se revire a cada passo que dou, sigo adiante. Após essa noite, é possível que todos seus motivos caiam por terra e eu seja capaz de virar as costas também para o destino que empurraram para mim.
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