— Por que a pressa? Só vim conversar.
O aperto no meu pulso contradizia o tom plácido.
— Não quero.
— Isso não são modos de falar com um futuro rei, são? Nós dois somos herdeiros agora, temos que nos unir, prima.
Meu rosto se enrugou numa careta involuntária, e tentei puxar o braço; me afastar tanto da ideia quanto dele. Escórpio era só meio palmo mais alto e não tinha começado a formar os músculos atuais, mas eu havia perdido alguns quilos nos últimos tempos, e a força era desigual.
— Pensava que você e Alexander eram próximos — ele comenta, alheio à minha tentativa de escapar. A frase, porém, me faz parar e encará-lo, sem entender. Seus olhos ônix ainda tinham algum brilho fosco e estavam repletos de um interesse contemplativo. — Mas ouvi comentarem que você percebeu que ele não estava bem e não contou nem pros seus pais… e nem chorou quando ele morreu. Não sabia que queria tanto a coroa a esse ponto.
A suposição me fez arfar. Meus olhos pinicavam, numa agonia seca, como se cheios de areia.
— Não foi assim! Todos viram que ele tava mal, mas preferiam dizer que ele era fraco… E ele também achava que era só cansaço… me fez prometer… — balbuciei inutilmente, num fio de voz trêmula. — Nunca quis o lugar dele… nem a coroa. Não sou você!
Não sei o que me fez dizer a última frase; talvez uma autodefesa por sua afirmação fria de termos que nos unir.
Escórpio inclinou a cabeça, erguendo as pálidas sobrancelhas, surpreso a princípio. Mas então estas se franziram e seu aperto ficou mais forte em meu pulso.
— E como você pode afirmar isso com toda certeza? — replica. E, sem me dar tempo de responder, emenda: — O que sei é que se você se importasse mesmo com seu irmão, não ia ser a porcaria de uma promessa que ia impedir de fazer o necessário para protegê-lo. Mas não fez nada, só ficou assistindo. Agora, assim como eu, você é a herdeira, enquanto Sirius tá trancado no manicômio e Alexander tá apodrecendo no cemitério.
Balancei a cabeça, horrorizada, tentando em vão não ouvir. Mas suas palavras sórdidas me atingiram como ferrão envenenado, se entranhando e criando raízes em meu peito. Não conseguia encontrar em mim nada para respondê-lo. As palavras dele se juntaram às reprimendas do médico e dos meus pais por não ter contado, e tudo girava e ecoava dentro de mim num redemoinho angustiante, lacerando uma ferida ainda aberta e inflamada.
O oxigênio não passava pela garganta, congestionada por soluços e lágrimas que não encontravam o caminho para sair, me afogando a céu aberto.
Escórpio apenas observava, testa franzida em confusão e impaciência.
— O que está fazendo? Por que apenas não aceita as conseq-
— Solta ela!
A ordem veio de algum ponto a nossa esquerda, seguido por um torrão de terra voando na lateral da cabeça de Escórpio.
***
Outra rajada de vento invade o quarto, balançando as vidraças e derrubando algo. Me sento num sobressalto, à procura do que pode ter sido.
Na mesa-de-cabeceira esquerda, o porta-retrato está tombado entre a caixa de música e a luminária. Num pulo, passo por cima do encosto do sofá e atravesso a suíte correndo, o coração martelando na garganta.
Não há lascado no vidro.
O nó no peito se desfaz num suspiro de alívio e abraço o porta-retrato contra o peito. É um dos poucos objetos, além da caixa de música — que guarda outras duas caixinhas musicais, como um baú do tesouro — que nunca precisaram ser substituídos, e jamais poderiam ser. Nunca fui capaz de atirar qualquer um deles contra uma parede, mesmo no auge de um ataque colérico.
E se os mantive a salvo até de mim mesma, não é um vento que vai destruí-los.
As folhas da janela mais próxima continuam a bater e o vento me afaga o rosto, afastando a franja de minha testa com dedos frios. O suave aroma de morangos se mistura ao de chuva carregado na brisa gélida. Estremecendo com os arrepios que descem pela nuca, deixo o porta-retrato sobre a cama e fecho rapidamente a janela.
Voltando, pego novamente o porta-retrato. Em vez de devolvê-lo ao lugar, sento na beirada da cama, encarando o sorriso congelado de Axl no desenho em grafite e no quadrado de fotografia sépia que dividem espaço no quadro.
A fotografia foi tirada numa feira no centro da cidade, e devia ser do Alexander, comigo e Hector o ladeando… Mas Axl é o único nítido entre dois vultos — seu sorriso mais parecendo um riso preso enquanto tenta impedir que eu acerte Hector ou que este saia correndo. Ao ver como ficou o retrato, Alexander caiu na risada e recusou a oferta por um novo, dizendo que nenhum outro conseguiria ser tão fiel a nós. Mas só soube do desenho em grafite que ele fez baseado na fotografia — ou como ela deveria ter saído — meses após sua morte.
“O que a prende aqui, afinal? Alexander não está mais aqui e nem aquele garoto estúpido” se repete num eco infinito.
O amargor preenche minha boca e aperto a moldura prateada do porta-retrato.
O pior de Escórpio não são suas provocações, mas as verdades entranhadas nelas, minando minha escassa paz. Axl costumava dizer que aquilo que falamos pode construir pontes e castelos no interior das pessoas, o tipo de construção variando com a natureza das palavras ditas. As de Escórpio erigiram uma torre mal-assombrada.
Como posso ir com ele para onde quer que seja se mal suporto sua presença? Ir para um lugar desconhecido onde ele seria o único familiar?
Por outro lado, o noivado também não a amarrará a um estranho? Vai dividir a cama com um estranho?
O eco cavernoso vem diretamente da torre mal-assombrada que, em algum momento ao longo desses anos, ganhou vida própria. E é impossível ignorá-la, assim como também o é impedir que as verdades desagradáveis de Escórpio me alcancem.
Com o estômago embrulhado, olho sobre o ombro para a cama espaçosa.
Uma estúpida tradição nupcial dita que o par de noivos divida o mesmo quarto; a frequência de dias aumentando gradualmente durante os sete meses de noivado. Nesse tempo, os noivos se conhecerão melhor com a convivência, mas se perceberem não serem “feitos um para o outro” a cerimônia pode ser cancelada antes da consumação.
Ou, ao menos, assim foi idealizado.
Não faço ideia se um dia realmente funcionou dessa forma. O que sei é que, mesmo sendo tão contraditória com normas de conduta mais atuais, a tradição permanece em Thempesta e Gardemona. E uma aliança arranjada pelo Tratado certamente não é passível de cancelamento, como as outras.
Sob essa perspectiva, a proposta de Escórpio não soa mais tão insana.
— O que me diz? — murmuro, tocando a cabeça de Axl da fotografia com a ponta dos dedos.
Não há resposta, claro. Nem mesmo a intuição do bom-senso, que empresta o resquício da voz dele gravado no fundo da memória, vem para contrapor a voz da torre.
Nada.
O vento me envolve num abraço frio e os olhos registrados em sépia, em vez do verde-mar, me encaram de volta em seu sorriso congelado.
— Disse que sempre estaria comigo… então me responda. Devo ir ou continuar aturan-
— Alissa!
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