Já era manhãzinha quando Faye deixou o estabelecimento, no céu as cores escuras se dissolviam, dando lugar às iluminadas cores da alvorada. Ela encostou-se numa parede e cruzou os braços, olhando o nascer do sol, então finalmente seria capaz de viver uma vida normal?
Aquele novo amanhecer tinha um significado especial para a ruiva, simbolizava o começo de uma nova era, uma oportunidade de começar de novo.
Enquanto caminhava para longe daquele bairro sorria e até mesmo cantarolava uma música que ouvira ontem na rádio, a letra a havia pego de jeito, deixando-a encantada. Falava sobre vivência, sobre raiva e autocuidado, sobre ser odiado pela própria vida. Era tão profunda, melancólica e ainda assim tão otimista, Faye automaticamente decidiu que adorou aquela música.
Esqueceu uma parte da canção e prontamente apanhou seu telefone e seus fones de ouvido e procurou por ela na internet, descobrindo que o nome da música era justamente Inochi ni kirawareteiru[1]. Isso a fez rir porque realmente fazia todo o sentido.
Subitamente sentiu uma vibração no bolso e uma breve pausa na melodia consoladora, seus olhos se abriram em espanto, era seu pai quem mandava mensagem. De repente havia parado de andar, seu coração batia de forma descompassada e eufórica, tudo o que mais queria era aproveitar uma vida plena ao lado de Natsuno Takahashi, a única família que lhe restara.
Vai dar certo, repetiu para si mesma. Sem que percebesse aquilo já tinha se tornado uma espécie de mantra pessoal.
[06:06] Pai: E aí filhota?
[06:06] Pai: como foi a viagem?
[06:06] Pai: tudo certinho?
Faye apressou-se em responder as mensagens, disse que chegou ontem à noite e que encontrara com algumas amigas, mas que ainda nesta manhã iria procurar a casa do tal amigo que o pai recomendou para passar um tempo até que ele retornasse ao Japão para recepcioná-la de forma adequada. Completou dizendo que sentia sua falta e que o amava e então suspirou ao guardar o aparelho no bolso novamente, daqui para frente as coisas seriam diferentes, podia sentir. Um diferente bom.
Durante boa parte da manhã ficou andando sem rumo pelas ruas de Tóquio, estava apreciando e relembrando a cidade que agora seria seu lar, até mesmo entrava aleatoriamente em algumas lojas e comprava coisas inúteis que nunca iria precisar, no entanto havia outra coisa que a motivava a continuar com o passeio: hesitação.
A pior coisa de sua chegada à Terra do Sol Nascente era definitivamente a parte de ter que se hospedar na casa de um estranho. Seu pai, que estava no exterior, insistira nisso, jurara em nome de tudo o que lhe era importante que seu amigo era alguém confiável e não lhe faria mal algum.
Faye balançou a cabeça negativamente, só iria porque prometera a Takahashi.
O sol estava bem alto quando resolveu parar para comer alguma coisa, agradeceu aos céus que o que não faltava no Japão eram estabelecimentos que vendiam comida japonesa de verdade e não aquela porcaria que tentavam vender na sua cidade.
No celular rapidamente verificou restaurantes confiáveis e com boas avaliações e logo escolheu o com melhor nota e com menor distância de onde estava. Andou por cerca de dez minutos até encontrar a fachada da loja, algumas flores coloridas davam vida às vidraças escuras e um pequeno cardápio repousava bem ao lado da porta. A ruiva avaliou cuidadosamente as opções escritas com giz branco sobre o cartaz verde escuro e entrou no restaurante já sabendo que pediria o especial do dia: gyudon e mochi.
Para beber pediu suco de laranja a fim de recordar sua terra natal que tanto sentiria falta.
As festas, as praias, as paisagens... As praias.
Não que não houvessem boas praias no Japão, afinal o país era uma ilha, mas o sentimento saudosista falava mais alto quando se tratava das praias do lugar onde nascera.
Decidiu que assim que estivesse plenamente estabelecida, iria até a praia mais próxima. Precisava ouvir o tranquilizante som das ondas e sentir o forte cheiro da maresia.
Não demorou muito até sua refeição ser entregue, comeu devagar e sem a mínima pressa, desejando saborear os pratos com toda a atenção do mundo. Tudo estava ideal exatamente como deveria, a sopa quentinha e apetitosa de entrada levantou seu ânimo para o resto do almoço antecipado, mastigou o arroz glutinoso com tanta felicidade que seus olhos tornaram-se úmidos, que saudade que sentira das delícias nipônicas.
Apesar de ter passado a maior parte da sua vida no Brasil, seu país de origem, Faye era metade japonesa por parte de pai e sempre que Takahashi estava presente ele fazia questão de cozinhar e mostrar para a filha a beleza do Japão. Faye sabia que bem no fundo o pai tinha esperanças de levar ela e sua mãe para viver com ele em Tóquio.
Isso nunca aconteceu.
A ruiva ergueu os lábios, seu semblante estava tristonho e nostálgico. Sua infância era um tópico complicado, bem como sua adolescência, esperava sinceramente que pudesse ter uma opinião melhor sobre a vida adulta. Talvez fosse para uma universidade e estudasse moda. Por mais que soubesse do desejo do pai de que ela assumisse a empresa, também sabia que a área empresarial não era para ela. Imaginou-se coordenando um desfile de roupas inovadoras e modernas, cheias de brilho e tecidos holográficos enquanto bebia o último gole de suco, talvez... Talvez.
Essa eterna dúvida a sufocava ao mesmo tempo que beijava-a carinhosamente na face, possibilidades incertas existiam e umas a levariam à plena felicidade ao passo que outras somente causariam sua própria destruição e a infelicidade de seus entes queridos.
Saiu do restaurante cabisbaixa, sem falta deveria ir até o endereço salvo nas anotações do celular, porém aquela hesitação ainda a impedia de seguir em frente. A ruiva percebeu que o estabelecimento ficava na verdade na parte térrea de um prédio que aparentemente era uma galeria e quis subir até o telhado para olhar a cidade mais uma vez antes de aceitar seu destino provisório.
Sorrateiramente esgueirou-se para dentro, subindo as escadas sem ligar para o fato de que provavelmente aquilo não era permitido para visitantes. Alcançou uma porta de ferro no último andar meio emperrada, mas que logo cedeu aos seus encantos sobrenaturais, ao abri-la o vento soprou forte contra seu rosto, fazendo com que ela desse um passo para trás.
Respirando fundo, Faye avançou e permitiu-se ser banhada pela forte luz do meio-dia, que era carregada de felicidade e bons sentimentos. Mesmo estando sol, não estava quente, pelo menos não como costumava ser na sua cidade, afinal o solstício de inverno se aproximava no hemisfério norte. Faye inspirou o ar da brisa relativamente fria e apanhou sua garrafa de água dentro da mochila, dando goles rápidos. Em seguida caminhou em direção à beirada do telhado até que percebeu que não estava sozinha.
Seu olhar pulou mais rápido do que julgava ser possível para um jovem de moletom cinzento e cabelos castanhos, tinha o cotovelo apoiado no parapeito e um cigarro aceso entre os dedos. Daquele garoto uma coisa estranha emanava, ainda que muito, muito suavemente, quase imperceptível. Faye então notou que era o mesmo menino com quem cruzara na madrugada, mas onde estava o outro, o alto de olhos verdes?
O cheiro de tabaco queimado se espalhava pelo ar e rapidamente era levado embora, se perdendo nas alturas, Faye passou a fitar as costas daquele menino. Ele moveu o braço, provavelmente levando o trago aos lábios, uma pequena nuvem de fumaça cinza subiu e desapareceu instantes depois.
— Quer alguma coisa? — Questionou ele sem se virar. Sua voz era tão calma quanto a ruiva havia imaginado, exatamente igual à coisa estranha que sentia nele.
Mesmo que ele não pudesse ver, Faye abanou a cabeça.
— Só estava me perguntando no que você estava pensando — ela explicou em tom cordial, aproximando-se do jovem e se encostando também no parapeito, apoiando a face em ambas as mãos. Olhou para as ruas, as pessoas pareciam um bando de formiguinhas lá embaixo.
— Nada em especial. Só... tentando descobrir o que fazer agora — o jovem devolveu, virando-se para ela, que pôde ver seu semblante pela primeira vez.
Ele tinha um rosto comum, mas belo e nobre, o olho cor de mel era meio caído de cansaço, mas quem não estava cansado a essa altura do campeonato? Além disso, ele era mais baixo do que ela mesma, quem sabe fosse mais novo alguns anos.
— Sei... Também procuro uma resposta para o que deveria fazer a seguir.
Faye ergueu os lábios num sorriso discreto, que lhe foi retribuído. Olhava com fascínio para o outro, estava certa de que escondia alguma coisa em seu interior. Ela com certeza não estava maluca, talvez só um pouco, mas nada suficiente para fazê-la alucinar e inventar uma coisa estranha daquelas. Jamais sentira algo parecido em toda sua vida, mesmo diante da enorme quantidade de seres e criaturas mágicas que entraram de alguma forma em seu caminho. E, mesmo assim, lhe parecia estranhamente familiar. Quase nostálgico.
O que era aquele menino?
Perdida em devaneios, a ruiva mal notou quando ele flexionou e estralou os dedos das mãos, subindo e sentando-se no parapeito. Arregalou os olhos de jade e abriu a boca até que as bochechas doessem, porém não fez alarde temendo que isso o assustasse e se tornasse responsável por mais um acontecimento trágico.
— Ei, isso não é meio perigoso? — De alguma maneira conseguiu encontrar sua própria voz, que saiu como o sopro de uma fraca e morna brisa de verão.
Ele sorriu e negou com a cabeça, fazendo impulso com os braços e desaparecendo por trás da alta beirada. Faye apressou-se em esticar-se, desesperada e profundamente angustiada, não o conhecia, mas estava farta de presenciar infortúnios.
Será que não importava o que fizesse, eles sempre a perseguiriam?
Não pôde deixar de surpreender-se ao extremo, não havia sangue, não havia comoção, mas havia algo estranho com aquele menino, que continuava vivo mesmo depois de ter se jogado do alto de um prédio.
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[1] Odiado pela própria vida.
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