— 17 anos sem dizer uma palavra sobre esse noivado… e quando conta nem tem a decência de me encarar…
O eco da lembrança dança diante de meus olhos e o dardo voa, se cravando no círculo mais distante do centro.
Pelo menos acertei um dos círculos dessa vez, bufo para mim mesma, interrompendo os ocasionais resmungos ruminantes.
Atiro outro.
Apenas um círculo mais próximo, do outro lado.
Com a mão direita, tateio a mesa redonda, procurando… Mas, em todas as direções, só esbarro em lâminas frias. Baixo o olhar para a mesa, franzindo a testa e boca.
Já atirei todos os dardos. Na mesa, há apenas dez facas de arremesso e um punhal que pertenceu ao Axl. As lâminas brilham, implorando serem atiradas, e passo o dedo ao longo do cabo avermelhado da mais próxima. A quantidade de incidentes por segurar as lâminas de forma errada diminuiu desde as aulas que papai me obrigou a ter após eu ter aparecido em seu gabinete com os dedos machucados, há dois anos, mas ainda acontece quando me deixo levar pelas emoções em vez de me concentrar. Em geral, as deixo bem trancadas no armário, para não serem facilmente acessíveis durante um de meus rompantes emocionais, mas esqueci de guardá-las ontem à noite.
Poderia resgatar os dardos caídos, mas, misturados no chão em meio a restos afiados de vasos que atirei anteriormente, dá quase no mesmo eu segurar as facas pelas lâminas. O mar de fogo em meu peito ainda borbulha, necessitando de uma válvula de escape, mas o ímpeto mais violento de atirar ou bater em algo já não nubla a racionalidade — senão eu teria arremessado as facas sem nem pensar e só perceberia os cortes depois. Então talvez…
Não
O vento sopra pelas janelas escancaradas, estapeando, e me abraço, estremecendo sob o roupão.
Às vésperas da primavera, os ventos noturnos de Thempesta continuam gelados. Retrocedo para o sofá e me jogo de costas, as pernas pendendo sobre o apoio de braço. O tremor nas mãos frias põe fim a questão de atirar ou não as facas.
Entretanto, é só ficar um minuto com o corpo parado e os pensamentos e lembranças tornam a se agitar num redemoinho corrosivo. A perna direita balança. Esfrego o rosto com as duas mãos e mordo a ponta de um polegar. Já não tenho mais vasos ou dardos a atirar se um terceiro rompante vier.
Tive o primeiro logo que entrei na suíte.
Não ter conseguido encontrar mamãe, a discussão frustrante com papai, a perturbação de Escórpio e o estresse acumulado em um mês de preparativos para um baile que nunca desejei… Tudo irrompeu assim que bati a porta. Atirei o primeiro vaso contra a parede. E então fui atrás do segundo. Não foi nem de longe o suficiente. Zanzei de um lado para outro, ruminando, enquanto meu interior girava e ecoava o som dos vasos estilhaçando. Meu peito queimava, meu sangue queimava, minhas lágrimas queimavam. O ar na suíte era insuficiente. Escancarei as janelas e a varanda. Não adiantou. O banho frio também não; os pensamentos me perseguiram sob a água. Saí do banheiro direto até a escrivaninha, vasculhando os poucos cadernos que mantenho no quarto, buscando qualquer mísera dica sobre o noivado nos estudos históricos — comprovando que de fato esconderam de mim, e não que fui estúpida demais para notar.
A última Princesa-Herdeira antes de mim foi minha avó paterna, e nunca foi mistério que seu casamento com o sétimo filho de um duque de Gardemona foi arranjo. Mas não há menção alguma de ter sido pelo Tratado. Sempre supus ter sido por linhagem ou algum tipo de apoio financeiro, motivos pelos quais os aristocratas costumam fazer tais acordos matrimoniais.
Pensar na avó que nunca conheci me angustiou ainda mais, e isto se juntou à raiva, me levando ao segundo rompante.
Papai foi fruto de um casamento arranjado. Seu próprio pai, a quem também não conheci, foi um crápula que quase afundou Thempesta durante o tempo em que governou como Rei-Suplente, enquanto afogava a si mesmo em álcool. Papai tem passado as últimas duas décadas para consertar os estragos, assumindo posições tão contrárias às dele e do antecessor, como se tentando provar ser o oposto deles… Mas isso não deveria se estender a uma postura diferente quanto a forma de lidar com o tratado? Não podia ter estendido a consideração que tem pelo reino à própria filha e ter me avisado com antecedência o que me espera? E quem?
Apesar de que, nem se ele tivesse revelado o nome aplacaria esse gosto amargo na boca. No máximo me pouparia da tortura de revirar a memória em busca dos nobres de Bérthia ou Lunagory, cogitando quem poderia ser o tal noivo. Mal conheço os nobres de minha própria corte, saber apenas um nome não é de grande ajuda. Embora haja um que não me amedrontaria tanto… talvez nem seja uma possibilidade, por conta de sua linhagem. E não nos falamos há séculos — ele é uma incerteza tanto quanto os outros desconhecidos quando se fala de casamento… e tudo que se espera em um.
O relógio sobre a lareira bate as sete horas e todos os ventos de Thempesta invadem meu estômago. Já deveria estar me aprontando para o jantar. Por mais que parte de mim queira terminar logo com todo suspense, o medo de conhecer o sujeito me congela no sofá. Conhecê-lo tornará tudo mais real. Sequer consigo me imaginar indo até o vestuário para me arrumar e descer para o Grande Evento sem sentir ânsia.
“Fuja comigo.”
A voz de Escórpio invade minha mente como inseto sorrateiro e balanço a cabeça para expulsá-lo. Um futuro duvidoso ao lado de alguém desconhecido é tão ruim quanto um futuro com alguém que não suporto.
Embora algumas coisas do que ele disse…
Balanço a cabeça novamente, bufando. Levo a mão direita até a medalhinha que uso numa gargantilha.
— Queria que você estivesse aqui — sussurro para o vento, agarrando com tanta força a âncora que Alexander me ofereceu em seu leito de morte, que o rouxinol e a lua crescente em relevo no metal marcam a pele. — Queria que pudesse-
“Entregue isso ao seu noivo como meu presente de boas-vindas à família. Vai conhecê-lo… um dia.”
Ofego com a lembrança repentina. Axl, em sua cama minutos antes de morrer, fechando em minha mão um de seus dourados anéis com brasão familiar.
O coração sobe para a garganta.
Com nove anos, acreditei que ele falava apenas de forma geral; de quando eu conhecesse alguém e quisesse casar… Que Alexander estava apenas sendo… Alexander — um irmão protetor e brincalhão, mesmo quando sua vida se esvaía a cada suspiro.
— Você sabia, não é? Tentou me avisar. — Isso faz dele o único. — Também sabia quem…?
Me interrompo, balançando a cabeça.
A mera ideia de que meus pais teriam contado a ele a identidade do noivo é suficiente para que um riso nasalado escape. Alexander era tão esperto quanto era tagarela. Nossos pais não podiam fazer nada se ele descobriu sobre o noivado em algum de seus estudos avançados, mas daí a arriscar falar mais a ele… Se Axl tivesse descoberto, ele diria.
Mas principalmente…
— Se estivesse aqui, iria me ajudar a encarar isso, não é? Iria segurar minha mão… se estivesse aqui…
Se estivesse aqui, Axl teria tomado para si a função de contar sobre o noivado — e teria feito isso com, pelo menos, meses de antecedência e com mais tato que papai.
Se estivesse aqui, mesmo que a ideia de descer para o salão ainda me revirasse o estômago, ele seguraria minha mão e me ajudaria a passar por isso.
Se estivesse aqui, a sombra da Coroa não estaria pairando sobre mim e a proposta de Escórpio não ficaria se insinuando como uma possibilidade.
Se apenas…
“Se você se importasse mesmo com seu irmão, não ia ser a porcaria de uma promessa que ia impedir de fazer o necessário para protegê-lo.”
Estremeço quando as palavras de um Escórpio mais jovem ressoam. Mesmo depois de oito anos, o veneno delas permanece entranhado em meu peito, ecoando pela torre mal-assombrada em minha cabeça sempre que teimo em imaginar os cenários de “e se Alexander estivesse aqui.”
Não há um dia em que eu não faça isso.
E não há um dia em que o veneno das palavras de Escórpio não machuquem como na primeira vez.
***
Foi em primeiro de setembro, quando completava exatos três meses da morte de Alexander. Era também aniversário de trinta e sete anos de mamãe. Por conta do luto, nenhuma festividade seria realizada, mas como a Família Real de Gardemona havia aparecido para uma visita de apoio, um solene chá da tarde foi realizado nos jardins, aproveitando o fim do verão.
O grau de parentesco com a Família de Gardemona é distante, mas, passar por tragédias semelhantes pode aproximar mais do que uma gota de sangue compartilhado. No início daquele ano, o príncipe-herdeiro Jasper havia morrido envenenado com sementes de gardemona — uma planta prolífica no reino, que leva seu nome — e o príncipe Sirius foi o condenado. De acordo com os boatos, eles haviam tido uma briga feia dias antes e o príncipe tinha bastante conhecimento em botânica. Mas, por ser príncipe, em vez de receber a pena de morte, foi mandado para o manicômio fortificado Sadnil. E a coroa passou para Escórpio.
Apesar de ser um evento minúsculo e simples em comparação aos padrões da corte, o jardim parecia lotado demais. Barulhento demais. Ouvi uns cochichos sobre as “coincidências curiosas” entre as mortes recentes de dois herdeiros ao trono, mas não fiquei para ouvir.
Na época, eu não passava de estilhaços orbitando ao redor de um enorme vazio. Vaguei pelo jardim até encontrar um canto mais calmo, aos pés de uma glicínia, a ponto de as vozes da reunião se misturarem ao zumbido de insetos. Dificilmente me encontrariam… a menos que tivessem me visto ir para lá.
Como Escórpio.
— Tá se escondendo por quê? — A voz era carregada de arrogância, como se eu lhe devesse alguma resposta.
— Não é da sua conta. Sai daqui — resmunguei, mais interessada em arrancar tufos de grama do que nele.
— Saio se quiser. Não manda em mim, prima. Eu sou o mais velho.
Nós compartilhamos trisavós. Mesmo que aos nove anos eu não soubesse quão distante era isso, me irritou ser chamada de “prima” por Escórpio. Era raro nos encontrarmos, mas a aversão sempre foi instintiva. As perturbações dele eram diferentes das que eu trocava com Hector e, sempre que ele estava perto, Alexander conseguia impedir por pouco que eu atirasse algo no infeliz… porque Escórpio certamente não iria apenas se defender.
Mas Alexander não estava mais presente. Nem para me impedir de fazer uma besteira, nem para me defender das consequências.
E justamente pela ausência dele, eu não estava com energia para entrar em nenhum jogo de Escórpio. Sem uma palavra, mas a muito contragosto, levantei para procurar outro esconderijo.
Escórpio agarrou meu pulso assim que passei por ele.
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