Não dormia há mais de vinte e quatro horas. A cabeça já latejava, ainda não parara em casa para descansar desde que chegara de viagem. Mudou-se de vez de seu país natal para a Terra do Sol Nascente, pelo menos por agora. Faye suspirou, a noite estava fria e seu moletom preto e branco parecia não estar dando conta. O vento rugiu gélido, fazendo seus cabelos alaranjados moverem-se com graciosidade, os olhos cor de jade foram ao encontro de pequenas sombras que se moviam pelo chão. Uma família de ratazanas, pensou e as seguiu, adentrando na densa escuridão de um beco que lhe serviria como atalho.
Naquela escuridão Faye perdera os ratos de vista, ela poderia iluminar facilmente o local, mas... chamaria atenção demais. Apressou o passo, as coisas guardadas em sua mochila chacoalhavam de um lado para o outro enquanto andava, inclusive seu precioso Krishma. Sorriu ao lembrar de seu tão valioso pertence. Krishma fora o nome que dera ao ursinho de pelúcia que ganhara de sua avó materna ainda na infância e até hoje era seu bem mais querido. Faye chutou algumas pedrinhas que estavam em seu caminho ao sair do beco, estava quase correndo, o coração acelerado fazia seu sangue fervente pulsar loucamente.
Uma lufada de vento frio beijou-lhe a face e ela sorriu ao sentir o choque térmico, apreciando as maravilhas da noite ao olhar para o véu estrelado do céu negro.
Apesar disso não parou, estava com muita pressa e apenas desejava resolver seus próprios assuntos o mais rápido possível a fim de sentar a bunda numa cadeira e descansar, se possível dormir por uma semana inteirinha. Estava tão cansada e distraída que quase não reparou nas pessoas que passaram ao seu lado. Se não fosse aquela tênue sensação de agitação interna e formigamento na pele ela facilmente teria ignorado aqueles dois e seguido o seu caminho sem dirigir-lhes sequer um olhar.
A ruiva continuou andando sem parar, estava com pressa, mas não conseguiu resistir a dar uma olhada naquilo que emitia um chamado mágico. Ergueu a cabeça momentaneamente, embora estivesse escuro, três olhos brilhavam de forma intensa ao luar.
Verdes. Ah, e dourado.
Quando seus olhares se cruzaram, ela foi capaz de sentir com toda a força as vibrações que vinham do homem mais alto, eram tão fortes e profundas, porém ao mesmo tempo tão delicadas e confusas... A princípio, não conseguiu sentir nada de extraordinário na figura mais baixa. Piscou e desviou o olhar, incrédula em cruzar com um ser tão elevado como aquele de olhos verdejantes.
Estava tão absorta na aura intensa do mais alto que quase não ouviu...
Faye arregalou os olhos de jade, o que diabos era aquilo? Olhou para trás, porém os jovens não estavam mais em seu campo de visão.
Sacudiu a cabeça negativamente e seguiu adiante, deixando aquilo de lado. Precisava terminar tudo até o meio-dia.
Seguiu pela noite até uma parte ligeiramente movimentada e iluminada que contrastava com a escuridão ao redor, ali as luzes brilhavam até se perder no espaço acima dos prédios. Faye conhecia bem aquela rua, muitos a julgavam como local de promiscuidade, o que não estava totalmente errado. Dependendo do ponto de vista, as pessoas que frequentavam aqueles estabelecimentos seriam as piores possíveis. Se algo assim existisse abertamente sua cidade natal, era provável que não durasse sequer uma semana devido a quantidade de denúncias que seriam feitas pela população, fosse pelos motivos verdadeiros, fosse pelas invencionices dos desinformados.
A jovem passava os olhos pelos nomes nos letreiros cegantes de néon, muitos lugares tinham nomes sugestivos propositalmente para manter as pessoas que não faziam parte do público alvo afastadas. Conforme andava, subiu o capuz do casaco para esconder seu rosto das luzes incandescentes, desejava permanecer incógnita, mas também todos aqueles leds e neons faziam seus olhos arderem.
Parou de frente para um bar cujo letreiro vermelho, laranja e amarelo dizia Monge Fanfarrão e começou a vasculhar sua carteira em busca do cartãozinho que dava acesso ao interior. Somente pessoas afiliadas poderiam entrar ali e talvez por isso nunca houvesse fila.
Rapidamente Faye chegou até o balcão na entrada e exibiu um cartão negro com seus dados pessoais gravados em vermelho. O recepcionista, após conferir a autenticidade do cartão e das informações, levantou-se e removeu a fita vermelha que cruzava a porta de entrada, fazendo um gesto para que a garota prosseguisse. Faye curvou-se ligeiramente enquanto agradecia e penetrou na escuridão do pequeno corredor, perfumes distintos brigavam no ar, causando um odor meio enjoativo. Ela atravessou uma cortina de contas vermelhas e finalmente seus olhos encontraram luzes confortáveis que não incomodavam a visão.
O espaço de recepção do bar era pequeno e cúbico, todas as paredes eram negras e iluminadas com lanternas de papel coloridas espalhadas, havia dois portais cobertos com cortinas de contas coloridas e no meio estava um balcão no qual os visitantes deveriam novamente se apresentar. Depois de passar por todo o processo de novo e informar para qual lado do estabelecimento desejava ir, Faye suspirou, andando até a cortina do lado direito, as contas arrastaram-se pela sua silhueta por um instante até que se viu num espaço maior com ambientação aconchegante e simples, porém elegante.
Num dos cantos da parede estava outro balcão com dezenas de prateleiras cobertas de garrafas de vidro que brilhavam com as luzes das lanternas. Uma suave melodia podia ser ouvida em baixo tom e o agradável aroma de incenso de camomila fez os lábios de Faye curvarem-se num sorriso. Esse era o lado monge do bar, calmo e reservado, perfeito para encontros casuais. O outro lado, o esquerdo, era o fanfarrão e ela sinceramente não apreciava nem um pouco.
Passou os olhos pelas mesas arredondadas e pousou o olhar sobre a que continha uma lanterna vermelha, duas mulheres conversavam enquanto bebiam coquetéis escarlates em taças de formato triangular. Conforme se aproximava Faye pôde ver os guarda-chuvas de papel flutuando no líquido.
Ao notar a proximidade da jovem, as duas mulheres sorriram gentilmente e o gesto foi retribuído pela ruiva, que sentou-se à mesa com elas. As duas na mesa eram parecidas em quase tudo, cabelos longos e negros e pele pálida e perfumada, um cheiro extremamente doce emanava de seus corpos, que talvez fosse o aspecto mais diferencial entre elas.
Uma era mais alta e possuía uma silhueta mais sensual e avolumada ao passo que a outra tinha baixa estatura e apresentava um corpo magricelo de aparência quase infantil como quem acaba de entrar na puberdade, no entanto Faye as conhecia e sabia que nenhuma tinha a idade que aparentava ter.
— Fujitsubo-san, Hanako-san — cumprimentou a ruiva com uma expressão amigável. — Quanto tempo! Como vocês têm passado?
A mulher mais alta, Fujitsubo, abriu um grande sorriso, seus caninos proeminentes brilhavam na luz vermelha.
— Fico feliz que pareça estar bem, Faye-chan. Graças aos céus, eu e Hanako também vamos bem — Hanako mexeu a cabeça para cima e para baixo enfaticamente a fim de demonstrar que concordava com o que a outra falava. — É verdade que vai ficar de vez aqui?
Faye assentiu e suspirou, mas terminou por sorrir.
— A vida é mais fácil quando não preciso fugir dia sim, dia não. Me parece que consegui enganá-los, desde que fui cremada ninguém mais veio atrás de mim.
— Ora, você diz estar morta, mas ouço seu coração — Fujitsubo comentou de modo casual, levando sua taça aos lábios.
— Para as autoridades, Faye Koury está mortinha da silva — a ruiva fez sinal para uma garçonete bem vestida em trajes formais que caminhava pelo salão. Rapidamente pediu uma bebida energética e tornou a conversar com as duas mulheres à mesa.
— Agora sou Natsuno Faye.
— Tenho certeza que ninguém notará a diferença — havia um traço de ironia na voz de Fujitsubo.
— Esse é o nome da família do seu pai? — Perguntou Hanako, falando pela primeira vez desde que Faye juntara-se a elas.
A ruiva sorriu de maneira gentil e concordou. Apesar de a garota ter centenas de anos na conta, sua mente continuava meio juvenil, parada na idade em que fora transformada num ser imutável.
Fujitsubo e Hanako eram um pequeno clã de kyuuketsuki, em outras palavras, vampiros. Estavam juntas desde o período Kamakura, o que significava uma quantidade enorme de anos, no entanto a líder, Fujitsubo, era ainda mais velha: havia nascido durante o período Heian.
As duas vampiras já haviam visto e vivido todo tipo de coisa e agora levavam uma vida boa e confortável com um luxo considerável graças ao tempo que passaram acumulando recursos aqui e ali. Mesmo que aos olhos da sociedade fossem consideradas monstruosidades, Faye mantinha uma boa e afetuosa relação com o pequenino clã vampiresco, conheciam-se há alguns poucos anos, mas tratavam-se como amigas de longa data.
Depois de tanto tempo fora, a ruiva quis reencontrar-se com as conhecidas tanto para revê-las como para obter informações preciosas acerca da situação dos caminhos ocultos em Tóquio e redondezas, precisava ter certeza de que estava segura, não queria colocar ninguém em risco por sua causa outra vez.
— Garanto que não vejo nenhuma ameaça faz tempo — afirmou a vampira mais velha, apoiando o rosto em uma das mãos. — As coisas têm estado calmas pro nosso lado faz alguns anos, então se algo acontecer...
Faye desviou o olhar, incapaz de encarar as amigas. A frase inacabada de Fujitsubo perdeu-se para sempre entre o perfume adocicado que a pele das duas kyuuketsuki exalava, no entanto a ruiva captou a mensagem. Não era intenção da vampira ofendê-la de qualquer maneira, Faye sabia. Mas também sabia que onde ela ia, somente a infelicidade a seguia.
Se algo acontecer... será por minha causa.
A jovem bebeu o resto do seu energético e respirou fundo, reunindo coragem para tornar a encarar as íris de vermelho profundo e sanguinolento. Um sorriso confiante ergueu-se para as vampiresas, sabia o que Hanako e Fujitsubo comiam, eram ambas monstruosidades, aberrações indesejadas pela sociedade, mas Faye não poderia se importar menos com isso, afinal era igual a elas. Uma monstruosidade indesejada.
— Eu decidi viver em paz — proclamou. — Se vierem atrás de mim... Bem, a gente colhe o que a gente planta.
Fujitsubo assentiu, seus lábios ligeiramente inclinados para cima.
— Rezo para que Faye-chan colha somente flores bonitas — a pequenina Hanako disse, seu semblante demonstrava tamanha compaixão e empatia que seria capaz de fazer qualquer monge chorar. Não era diferente com Faye, seus olhos ardiam enquanto se forçava a segurar o choro e sorrir.
— Obrigada, Hanako. Também rezo para que vocês colham somente flores bonitas.
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