O sol avançava, trazendo consigo um manto azul celeste debruado de nuvens brancas como pérolas amontoadas para se sobrepor ao rosado alvorecer. A manhã despertava e com ela despertava toda Tóquio, as ruas aos poucos iam-se enchendo de gente até ficarem apinhadas, Yamano correu os olhos pela multidão, tentando adivinhar qual seria o destino de cada pessoa. Alguns iam ao trabalho, por seus trajes formais, outros à escola em seus seifuku[1]. O garoto reconheceu alguns uniformes.
Lentamente o piar dos pássaros deu lugar aos passos apressados de uma centena de pessoas indo e vindo, isso pouco deveria importar para os dois sentados no banco da praça, que apenas desejavam encontrar a paz interior, entretanto Chihiro sentia-se inquieto, sempre percorrendo o perímetro com seus verdes olhos sagazes. Alguém o chamava.
Ele tinha absoluta certeza de que uma voz estranha ecoava em sua cabeça, não era exatamente uma voz, era mais como um chamado, não entendia com clareza o que dizia, apenas sabia que o chamava.
Hideyoshi devia ter notado seu comportamento anormal, pois tocou sua perna de leve, Chihiro apenas acenou negativamente, como que para dizer que estava tudo bem, e focou em relaxar e apreciar a manhã.
Deitou a cabeça no ombro do mais baixo e assim ficou por um tempo, seus lábios curvados num sorriso.
Alguns instantes depois Hideyoshi espreguiçou-se, levantando-se em seguida.
— Já vimos o que viemos ver — ele disse, estendendo a mão com um sorriso. — O que acha de comprarmos comida na volta?
Yamano aceitou a mão que lhe foi oferecida, deixando que Hideyoshi o impulsionasse para cima.
— Sim, acho bom — agora foi a vez dele mesmo espreguiçar-se, estralou-se todo, os dedos, os braços, o pescoço, a coluna... tudo fez o habitual croc quando o garoto os alongou.
Sorriu satisfeito.
— Me daria a honra? — Indagou, estendendo o braço para Hideyoshi, que riu e deu-lhe um soco leve no ombro, o chamando de bobo.
Apesar de todo o desejo de demonstrar seu afeto publicamente, infelizmente eles somente podiam se conter, o mundo real não era um lugar gentil para os que fugiam do padrão. Caminharam lado a lado até o meio-fio, parando para conferir se era seguro atravessar, afinal já eram quase seis da manhã e as ruas logo tornavam-se cheias de gente tentando resolver as próprias vidas.
Yamano vislumbrou entre os pedestres alguém usando o uniforme da escola que ele e Hide costumavam frequentar e fez uma careta, nunca gostou muito de ir à escola, mas não era um mau aluno, no entanto. Apesar de tudo, Chihiro sempre tirava boas notas e era bom tanto nos estudos como nos esportes, além de ser bastante popular entre as garotas por conta de seu rosto agradável e seus incomuns olhos esmeralda. Nada disso importava. A única coisa importante para Chihiro Yamano era Takashi Hideyoshi.
O jovem abruptamente virou-se para trás, assustando o mais velho. Novamente aquela voz o chamava, mas de onde vinha? Balançou negativamente a cabeça, talvez devesse dormir um pouco quando retornasse ao lar. Suspirou e apressou-se em dizer a Hide que estava bem, apenas um pouco cansado, não desejava perturbar o outro com suas loucuras. Quando estavam prestes a atravessar a rua, novamente Yamano virou-se para trás, dessa vez acompanhado por Hideyoshi, agora a voz tornara-se real.
— Irmão — dizia a bela figura de cabelos negros —, por favor, retorne conosco.
Eram três as moças que o fitavam com olhares curiosos e levemente desesperados. A que falou possuía uma estatura média e era incrivelmente bonita, os traços do rosto finos e delicados e os olhos dourados, os cabelos eram de negrume mais negro que a noite e caíam sobre as costas presos numa longa trança adornada com enfeites vermelhos e dourados.
As roupas eram ao estilo tradicional japonês, uma espécie de yukata[2] curto com a parte superior vermelha enquanto a parte inferior era branca. As mangas eram grandiosas. Do obi[3] pendia uma borla dourada com fios vermelhos, no entanto o que mais chamava atenção nela eram suas orelhas, que ficavam no topo da cabeça. Semelhantes a orelhas felinas, as pontudas orelhas peludas a coroavam como a uma princesa.
Ao lado desta bela dama estava outra tão bela quanto, talvez fossem as duas mulheres mais bonitas que Yamano já vira na vida, ambas de uma aparência tão irreal que jurava que poderiam muito bem ser encarnações de deusas da beleza.
Esta segunda dama era a mais alta das três e vestia-se de forma mais contemporânea, trajava um casaco preto com vermelho aberto e uma camisa branca com flores bordadas na gola, a pele era numa tonalidade escura semelhante a terracota e reluzia à luz do sol. Tanto seus cabelos quanto seus olhos eram da mesma cor: vermelho sangue.
Tinha uma expressão deveras enigmática estampada em sua face.
A última não era nem de longe tão bonita quanto as duas outras, embora também não fosse feia, Yamano a julgou com uma beleza mediana. Era a mais baixa das três, porém ainda era mais alta que Hide, e assemelhava-se a alguém nascido e crescido no norte da Europa, pele exorbitantemente pálida e cabelos quase brancos de tão loiros presos num alto rabo de cavalo. Um adorno azul prendia uma madeixa da franja. Quanto às roupas, tipicamente normais como uma típica garota jovem, nada muito especial ou diferente.
Tanto Hideyoshi quanto Yamano se entreolharam, irmão? Do que diabos aquela garota estava falando?
— Sinto muito, mas acho que houve um engano — Chihiro respondeu, logo desviando o olhar e preparando-se para virar para o lado da rua novamente e ignorar aquele trio, definitivamente não lembrava de ter irmã nenhuma!
— Sen, por favor! — Suplicou a dama de cabelos escuros, dando um passo à frente. — Não é hora para brincadeiras, nosso lar precisa de você!
Yamano bufou ao passo que Hideyoshi franziu o cenho, que papo era aquele? Sen? Será que eram stalkers que haviam descoberto a real identidade sentochihiro, um dos cinco Imperadores do Higure? Não, não podia ser isso, afinal, apesar de Hide também fazer parte dos cinco, elas não o incomodaram em momento algum.
Pela primeira vez a mulher ruiva falou, mesmo com toda a beleza, sua voz era austera e fez com que Yamano se sentisse desconfortável, pois passava uma sensação gélida, quase podia sentir a lâmina de mil espadas transpassando sua pele. Seus pelos se eriçaram.
— Detesto dizer isso, mas somente você pode nos ajudar agora — ela fez uma pausa, cruzando os braços e trocando o peso do corpo de uma perna para a outra. — Por favor, não dificulte as coisas.
O jovem sentiu um aperto em seu braço, era Takashi Hideyoshi, que já começara a ficar desconfortável a essa altura. Yamano suspirou outra vez, com certeza o estavam confundindo com outra pessoa ou então tudo não passava de uma pegadinha de câmeras escondidas, daquelas que passavam na TV aos fins de semana. Só pode ser! Alguma emissora de televisão devia estar gravando por ali e infelizmente eles dois acabaram por ser pegos nisso.
Por algum motivo um nervosismo crescia em seu peito e sua cabeça doía com aquela sensação esquisita de ser chamado, havia algo naquelas mulheres que o atraía e o enchia de curiosidade ao mesmo tempo que deixava sua mente enevoada e os pensamentos turvos, desejava ir embora, porém não sentia-se capaz disso, seus pés não moviam-se um centímetro sequer.
Um sentimento de perigo começava a tomar lugar entre os outros, mesmo que a rua se tornasse cada vez mais cheia, ninguém dirigia nem um olhar para aquelas moças ou para eles, o que era bem dizer impossível. Numa sociedade homogênea como a japonesa, pessoas com aquela aparência chamariam atenção e atrairiam olhares e burburinhos.
Novamente Hideyoshi o apertou, só que dessa vez o outro segurou a sua mão, apertando-a delicadamente e demonstrando o desconforto e o nervosismo que sentia. Chihiro balançou a cabeça negativamente, dando-se um tapa mentalmente, o que raios ainda estava fazendo parado ali?
— Olha, realmente não sei nada sobre isso — disse Yamano com seriedade. — Agora estou indo embora.
Enfim, viraram-se ele e Hide para o lado da pista, caminhando de novo até o meio fio enquanto esperavam o semáforo fechar. Bem a tempo! Uma lâmina passou de raspão pelos cabelos negros de Yamano, cortando-lhe alguns fios e em seguida desaparecendo no ar. O sangue do rapaz gelou. Mas que porra era aquela?
— Não ouviu? Nós precisamos de você.
Chihiro Yamano jamais ouvira uma voz tão letal. Girou o corpo para o trio, fulminando a dona da voz com o olhar, a ruiva estreitou os olhos. Estava prestes a tirar satisfações com aquela maluca quando Hideyoshi se pôs entre eles.
— Qual é a de vocês? — Seu tom não soava nada polido ou educado, sequer usava as palavras da forma adequada para se comunicar com desconhecidos. Yamano pôde perceber que Hide estava totalmente impaciente com a inconveniência alheia, ele apertou os punhos, só desejava retornar ao lar. — Vão embora ou serei obrigado a chamar a polícia!
A morena e a ruiva trocaram olhares, intrigadas. Dessa vez, a loira falou.
— Por favor, não interfira nos assuntos divinos — sua voz era calma e a moça fez uma leve reverência ao concluir. Chihiro não gostou nem um pouco da forma como ela falou com Hideyoshi.
— Obrigada, Mynea — agradeceu a dama de cabelos negros com um sorriso gentil, mas logo seus olhos verteram um olhar desesperado. — Sen, não torne as coisas mais difíceis — ela aproximou-se calmamente, seus passos tão plenos e silenciosos quanto era possível ser. Estendeu a mão para Yamano, os olhos verdes saltaram em espanto. — Irmão, sabe porque estamos aqui, não desceríamos a este mundo fadado à ruína somente para matar tempo. Venha conosco, é tudo o que pedimos.
Yamano engoliu em seco, mais uma vez a hesitação tomava conta de si, não era do seu feitio sentir-se inseguro, mas por alguma razão seus pensamentos conflitavam, tinha certeza que nunca as vira em toda sua vida, então como era possível que elas agissem como se o conhecessem e fossem próximos, até mesmo o chamando de irmão? Seus punhos estavam tão cerrados quanto possível, os nós dos dedos tornando-se gradativamente brancos, não sabia o que deveria fazer. Olhou para elas e em seguida para Hide, por que sentia-se tão perturbado por uma brincadeira de mau gosto dessas?
— Nem mais um passo — ouviu sua voz preferida no mundo inteiro dizer.
Finalmente levantou a cabeça, retornando ao presente e reparando que agora a mulher de cabelos vermelhos também se aproximava. Ela ignorou completamente Takashi e caminhou até estar ao lado da que parecia ser a líder do grupo, colocando a mão no ombro da outra como que para apoiá-la e assentindo positivamente enquanto seus olhos carmesim o fitavam.
Chihiro Yamano recuou, havia algo naquelas duas Afrodites encarnadas que o chamava, que derretia seus miolos e o deixava incapaz de pensar coerentemente e definitivamente não tinha nada a ver com a beleza de ambas. Sentia como se sua mente e seu corpo chamasse por aquelas duas, assim como sentia elas chamando por ele, todo seu ser vibrava internamente numa frequência que parecia estar em consonância com as duas damas.
Hideyoshi então se colocou novamente entre Yamano e as três jovens, chegava a ser cômico a diferença de altura dele para a dama de pele escura e Yamano sentiu vontade de rir, era tão adorável o seu amor.
— Ele já disse que não conhece vocês!
— É claro que ele nos conhece — a ruiva riu-se, cruzando os braços. — Pode ser que talvez você não o conheça?
Hein?
Takashi Hideyoshi não conhecer Chihiro Yamano?
Mas que piada.
Os dois rapazes trocaram olhares, rindo internamente. Yamano balançou a cabeça, fazendo suas madeixas negras sacudirem suavemente, incapaz de conter um sorriso.
— Foi divertido, mas agora realmente precisamos ir — falou, passando o braço por cima do ombro do mais baixo.
E, acenando, ambos viraram-se para partir.
A última declaração da ruiva fora tão engraçada que conseguiu aliviar toda a tensão dos dois, que agora apenas riam da situação toda enquanto afastavam-se das três excêntricas damas. A cada passo dado Yamano sentia sua respiração normalizar e a mente clarear, inspirou fundo e brincou com os brincos prateados de Hideyoshi, ouvindo o tranquilizante tilintar metálico, finalmente permitindo-se um sorriso aliviado.
Novamente alcançaram o beco, na luz do dia até que não era tão ruim assim, embora o cheiro ainda fosse desagradável. Ali naquele curto caminho desusado e oculto dos olhos da sociedade, os garotos entrelaçaram suas mãos, caminhando juntos por um momento sob a penumbra. Antes que retornassem à luz do sol, Chihiro parou, consequentemente fazendo o outro parar também.
— Que foi? — Quis saber Hide, seu semblante levemente perturbado.
Yamano riu, soltando a mão do mais baixo para que pudesse segurar sua face entre as duas mãos, em seguida beijou-lhe a fronte meio coberta pelos fios castanhos suavemente, inalando o habitual e delicado aroma doce que vinha de Hideyoshi.
— Você — Chihiro respondeu, tomando novamente a mão do outro.
Hideyoshi desviou o olhar, mas Yamano pôde senti-lo segurar sua mão com mais força. Antes que pudesse sequer esboçar mais um sorriso, seus olhos esmeraldas fixaram-se num ponto mais além. A ruiva encontrava-se imóvel, de braços cruzados, na saída do beco.
Rapidamente Hide olhou para lá, sua timidez transformando-se em horror.
Assustados, tentaram sair por onde entraram, no entanto essa passagem também estava bloqueada: a dama de cabelos negros e a loira Mynea se faziam estaticamente presentes, as três jovens facilmente poderiam ser confundidas com esculturas modernas.
Acuados e sem saber para onde ir, os rapazes quedaram-se onde estavam e apreensivamente esperaram, a mente de Chihiro novamente envolta numa névoa escura e sem fim, todo seu interior pulsando energeticamente. A única coisa que o mantinha são era o calor emanado da mão de Hideyoshi, que ainda estava em conjunto com a sua própria.
Ela, a líder, aproximou-se, sua postura altiva e seus olhos dourados faziam-na parecer tão imponente e cativante como o sol, a própria Amaterasu encarnada. Hide tentou se interpor entre Chihiro e a mulher, entretanto ela apenas estendeu a mão em sua direção, fazendo Yamano arregalar os olhos tomado por um temor jamais antes presenciado. Seu amor fora arremessado e desapareceu no ar antes mesmo que tivesse a oportunidade de chocar-se contra a parede cinzenta, não havia mais nada entre ele e a jovem dama.
Vendo-se sozinho, sem o auxílio de Takashi e largado à própria sorte diante das desconhecidas que o perseguiam loucamente, o rapaz prendeu a respiração e cerrou os punhos ao passo que sentia seu interior fervilhar.
Essa foi a primeira vez em toda sua vida que Chihiro Yamano realmente sentiu medo.
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[1] - Uniforme escolar japonês;
[2] - quimono de verão;
[3] - cinto do quimono.
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