A única luz visível estava na extremidade contrária, uma ratazana saiu correndo de dentro do beco, embrenhando-se num bueiro qualquer, suas pequenas crias a seguiram. O mais baixo chegou mais para junto de Yamano, ele achava aqueles bichos nojentos e imundos, portanto Chihiro passou a mão por cima do ombro do outro para confortá-lo, imaginando a expressão engraçada de nojinho que Hide deveria ter feito ao ver os ratos.
Avançavam com cuidado, pois mesmo que conhecessem aquele atalho ainda assim poderia haver algum vidro quebrado ou coisa parecida ali. Gradativamente vozes tornavam-se mais altas vindas da rua para a qual os rapazes se dirigiam, vários passos pesados as acompanhavam. Yamano parou, consequentemente fazendo Hide parar também. Fechou os olhos para contar melhor os passos, um, dois... quatro pessoas. Por algum motivo que o jovem desconhecia, seus sentidos eram muito mais aguçados do que os de todas as outras pessoas que ele já havia tido contato, sendo capaz de enxergar a longas distâncias ou ouvir até mesmo um simples alfinete cair no chão. Ainda que não soubesse a causa, sentia-se agraciado por ser assim, pois dessa forma seria capaz de ajudar Hideyoshi sempre que o mais velho necessitasse.
As passadas ficavam mais altas à medida que se aproximavam, agora devia ser possível que até mesmo Hide ouvisse com clareza as risadas e a gritaria vulgar. Yamano franziu a testa, um grupo de desocupados. O rapaz olhou para o mais baixo, que rapidamente chegou para mais junto e baixou o olhar, andando praticamente na sombra de Chihiro.
Confirmando suas suspeitas, um grupo de quatro homens barulhentos lentamente adentrou no beco, fazendo uma algazarra sem fim. Yamano revirou os olhos verdes e torceu o nariz ao sentir o forte cheiro de bebida barata, como era possível que ninguém tivesse ainda chamado a polícia para dar conta desses perturbadores da paz?
De maneira rápida, os dois jovens prosseguiram até a outra extremidade do beco, em direção à rua iluminada, entretanto um dos desordeiros pendeu para o lado enquanto caminhava de forma trôpega, esbarrando em Hideyoshi, que apenas sacudiu a cabeça negativamente e continuou andando. Inesperadamente Yamano ouviu o mais baixo pisar errado e virou-se bem a tempo se segurar Hide enquanto procurava o motivo de sua queda, os olhos esmeralda vasculhavam de um canto a outro até perceber que um dos homens estava com a perna estirada justamente para o lado no qual a visão de Hide era limitada.
No mesmo instante Chihiro Yamano cuidadosamente empurrou Takashi para trás de si, sentindo um arrepio raivoso percorrer seu corpo, seu rosto bonito contorcendo-se numa carranca furiosa. Sentia-se a ponto de literalmente sacar uma arma e atirar na cabeça de cada um daqueles bebuns.
O grupo de desordeiros danou-se a rir, fazendo o corpo de Yamano fervilhar.
Não que o jovem fosse agressivo, na verdade era uma pessoa bastante agradável de conviver, porém quando se tratava de Hideyoshi a coisa mudava de figura.
Uma vez, quando ainda tinham uns treze anos, ele quase foi expulso da escola que frequentavam. Segundo o próprio Yamano a culpa não era dele e sim do filho de uma puta do Futaba, que insistia em provocar Hideyoshi, o apelidando de nomes vulgares e indizíveis para uma criatura tão perfeita, escondendo suas coisas e implicando até não poder mais, até que certo dia o tal Futaba excedeu-se, empurrando Hide contra uma parede.
Yamano jamais tivera um acesso de raiva tão grande quanto naquela ocasião, jogou-se contra o garoto e o surrou tanto que Futaba caiu inconsciente, sangrando por todos os orifícios da cabeça e repleto de hematomas coloridos e inchados. Esse foi o último dia que Futaba dirigiu o olhar para Takashi Hideyoshi ou Chihiro Yamano e certamente até hoje deveria ser assombrado pelas memórias das agressões. Somente a grande influência (e dinheiro) da família Takashi foi capaz de abafar o caso, não deixando que fosse exposto na mídia e salvando Chihiro da expulsão do colégio.
Bem, até hoje Yamano odiava aquele cara e o surraria dez vezes mais se necessário.
Sentiu o peso da mão do mais velho sobre seu ombro e sua mente clareando novamente, não cometeria crime nenhum essa noite. Sorriu sem perceber ao pensar em como Hideyoshi era benéfico para si, lhe dera um lar, uma boa educação, nunca deixara lhe faltar uma tigela de arroz que fosse e, mais do que tudo isso, lhe dera um amor sem igual, tão profundo quanto o oceano e tão infinito quanto o céu. Era imensamente grato, jamais seria capaz de sanar a dívida que tinha para com Takashi Hideyoshi, mas esforçava-se ao máximo para tentar retribuir tudo que lhe fora dado.
Yamano quedou-se a bufar e rolar os olhos, coçando a cabeça e balançando sua cabeleira negra muito bem cuidada ao virar-se para Hide, juntos os dois prosseguiram com sua marcha em direção à alvorada. Ou teriam prosseguido, se os delinquentes estivessem satisfeitos.
— Ei, bonecas — disse um dos homens com a voz arrastada, visivelmente bêbado, seus cabelos eram descoloridos e, se não estivesse tão nervoso, facilmente Yamano o apelidado de vadia mamba. — Vocês estão passando pela nossa área.
Os outros concordaram de maneira barulhenta, fazendo Yamano estalar a língua ao passo que revirava mais uma vez seus próprios olhos, desconfiava que um dia eles virariam para dentro de vez de tanto que realizava essa ação. O rapaz estava incrédulo de que aquilo estava acontecendo justamente com eles e os atrasando para seu compromisso, fazendo-os permanecer ali naquela passagem escura e mal cheirosa por mais tempo do que gostariam.
— Oh, é mesmo? — Respondeu, sua voz polida repleta de uma falsa simpatia. — Incrível — comentou, sacudindo as mãos como se estivesse ouvindo a maior novidade de todos os tempos.
Em seguida virou-se para Hideyoshi, o incentivando a seguir caminhando.
Gracejos e risadas iniciaram-se, sendo rapidamente cortados pelo som de vidro estraçalhando-se, o rapaz de cabelos pretos suspirou, era realmente surreal a insistência de bêbados atrás de bebidas grátis. Não conseguiriam arrancar um iene sequer dos dois jovens.
Yamano tornou a fitar o quarteto, seu semblante demonstrava impaciência, apenas queria chegar logo na bendita praça e sentar-se ao lado de Hideyoshi para apreciar o nascer do sol! Mas que saco! Onde está a polícia quando se precisa dela?
O rapaz inspirou lentamente, sentindo o ar preencher seus pulmões devagar, bastava somente uma palavra, um ato, uma afirmação. E ela veio, por meio de um leve meneio de cabeça de Takashi. Yamano sorriu consigo mesmo, fazia bastante tempo que não convocava Dragão ou Trovão.
O líder daquela gangue correu em sua direção, investindo contra ele enquanto brandia uma garrafa de bebida quebrada, os outros o instigavam com gracejos e troças e proferiam zombarias desrespeitosas para os dois jovens.
Com todo o cuidado do mundo para não deixar que o bebum por acaso ferisse Hide, Yamano desviou-se para a esquerda, indo para longe de seu amado e atraindo a atenção do agressor, que novamente jogou-se em sua direção de maneira trôpega por conta da embriaguez. Um ruído metálico foi ouvido, seguido do alto som de vidro quebrando, Chihiro pressionava o cano negro e reluzente de uma de suas pistolas contra a testa do delinquente bêbado, que por susto deixou que a garrafa caísse no chão e se despedaçasse por completo.
— E-ei! — Gaguejou o bêbado, tremendo dos pés à cabeça. Yamano era capaz de sentir o desagradável odor de urina vindo do homem. — I-isso é ilegal!
O jovem de cabelos negros sorriu, não sendo capaz de conter uma risada.
— Ora, não me diga — engatilhou a arma de forma rápida, seus olhos esmeraldas encaravam os escuros e enevoados olhos do homem desconhecido, eram como um mar revolto.
Pressionou um pouco mais a pistola contra a testa suada do baderneiro e sacou a outra arma, idêntica à primeira, apontando-a para o restante do grupo.
Os homens ergueram as mãos e deram início a uma gritaria desordenada e jocosa enquanto corriam para fora do beco, temendo por suas vidas e cada um desejando ser o primeiro a sair da mira daquele jovem. O líder lentamente desvencilhou-se de Yamano e também saiu em disparada assim que teve chance, rezando aos céus para jamais encontrar aquele diabo em pele de homem outra vez.
Yamano guardou Dragão e Trovão e encaminhou-se para perto de Hideyoshi, que assistira a tudo com uma expressão de tédio.
— Não fui exibicionista o suficiente? — Inquiriu Chihiro para Takashi, finalmente arrancando um sorriso do mais baixo.
— Não mesmo! — Hide respondeu, sua risada era como o som de milhares de sininhos dourados. De forma graciosa, o rapaz pôs-se na ponta dos pés a fim de depositar um leve beijo na bochecha de Yamano. — Em todo caso, obrigado, meu herói — o cinismo estava escancarado em seu tom de voz.
— Sério? É só isso que ganho? Um beijo na bochecha? — Queixou-se o rapaz de cabelos negros, fazendo bico e envolvendo o outro em seus braços.
— Você é surdo? Eu agradeci.
Hide mostrou-lhe um sorriso ao sentir seus pés deixarem o chão, agora Yamano o suspendia no ar sem problemas. O mais alto sentiu o menor envolver seu tronco com as pernas para firmar o abraço, o habitual e inebriante cheiro de morango, ainda que fraco, estava impregnado nos cabelos castanhos e aquilo fazia Yamano delirar.
Ali, naquele breu, estavam seguros, ninguém os veria.
Dessa maneira, Hideyoshi levou as mãos ao rosto de Yamano, seu pequeno e brilhante olhinho cor de mel fitava os desejosos e intensos olhos esmeralda, delicadamente ele inclinou-se sobre o mais alto, selando seus lábios com um beijo vigoroso. Apesar do desejo de ambas as partes, eles não demoraram muito, afinal o céu oriental já começava a clarear e não queriam perder a hora.
Seguiram para a saída do beco, onde a luz fraca de um poste brilhava com uma piscadela ou outra. O mais baixo dos dois fungou e soltou o ar lentamente para se libertar daquela atmosfera pesada, Yamano o viu tatear os bolsos em busca do vício de longa data. Logo Hideyoshi encontrou um cigarro e seu isqueiro preferido. Enquanto tragava lentamente, uma fumaça cinzenta subia aos céus, guiando o olhar de Hide para lá.
Os olhos verdes o acompanharam e foram capazes de divisar algumas estrelas ainda brilhando no céu meio claro, meio escuro. Aceitou o cigarro oferecido pelo outro e deu um trago lento e profundo, sentindo o habitual calor tomá-lo por dentro, causando uma sensação engraçada, sentia como se pudesse entrar em combustão a qualquer instante. Soltou o ar com uma baforada igualmente lenta, perguntando-se quanto tempo fazia que aderiram àquele vício tão maléfico. Teria sido antes ou depois do saquê? Não saberia mais dizer.
Continuaram a caminhar sem pressa pela calçada de concreto até que enfim foram capazes de ver o tão esperado ponto de destino: uma pequena praça arborizada que frequentemente iam para ver a alvorada. O céu a leste já estava bastante claro em termos de madrugada, devia ser quase hora daquele espetáculo natural tão esplendoroso.
A rua ainda estava vazia, o ar frio da antemanhã deixava tudo mais sereno e austero, continuaram andando devagar até um banco de madeira no qual sentaram. Não demorou muito, logo nascer do sol avançava. O céu estava maravilhosa e definitivamente belo. Seus tons claros misturados aos seus tons escuros, suas nuvens em tons pastéis se dissolviam em um céu que parecia a obra de arte renascentista mais bela e bem trabalhada de todas e no meio de tudo isso havia um sol. Um lindo sol com raios ainda fracos que iluminavam a cidade e refletiam nos imensos arranha-céus cobertos de vidro que pareciam tentar tocar as nuvens que, por sua vez, tentavam tocar o chão.
Nos lábios de Chihiro Yamano havia um sorriso discreto, certamente a alvorada era um belíssimo espetáculo, no entanto a verdadeira atração não era o show de luzes e cores, mas sim o jovem de cabelos castanhos ao seu lado, o sorriso de Hideyoshi era tão radiante que faria com que a própria Amaterasu o invejasse.
De repente algo atraiu sua atenção, ouviu uma voz o chamar e virou a cabeça na direção que julgou ter ouvido, mas não havia ninguém. Suspirou e olhou novamente para Hide, não conseguindo conter-se e o abraçando com força, rindo em conjunto com o menor. Cara, como ele amava Takashi Hideyoshi.
A luz do sol incidiu sobre os cabelos de Takashi, fazendo-os parecer dourados como ouro puro, Yamano não conseguiu conter um suspiro apaixonado, era tão perfeito!
Uma brisa fria soprou de forma arrastada, lembrando-o que o outono avançava pesarosamente e ficava mais e mais frio a cada amanhecer, logo começaria a nevar, também. O garoto deu por si pensando em dias nevados, eu gosto do frio, ele me lembra... Lembrava o quê? Uma fria e gostosa manhã de inverno? Uma noite negra e gélida na qual se protegera do frio embaixo dos lençóis de Hide enquanto partilhavam o calor de um abraço? Uma rajada de vento que o fez congelar até os ossos?
Não saberia dizer ao certo, tantas eram as memórias...
Tantas, tantas...
Que ficaram confusas e embaralhadas, constantemente confundidas com sonhos ou pensamentos fantasiosos e enevoados. A menos que fossem sobre Hideyoshi. Ele era a única pessoa certa em sua memória e os acontecimentos que diziam a respeito dele eram os únicos claros e livres daquela névoa que assolava os demais momentos de sua vida.
Lembrava-se bem de quando Hide chorou uma vez quando caiu enquanto brincavam no jardim, da primeira vez quando dividiram um mega sundae via-láctea na lanchonete preferida de ambos. Lembrava-se do primeiro beijo, do primeiro abraço... de uma infinidade de outras coisas.
Olhou para o mais baixo e sorriu ao ver o outro corado por conta do frio, era um garoto adorável, esse Takashi. Havia cerca de vinte e cinco centímetros de diferença de altura entre os dois, portanto Yamano sempre precisava abaixar-se para olhar Hideyoshi nos olhos, embora isso nunca tivesse sido um problema. Para Yamano tudo era exatamente da forma como tinha que ser, graças a diferença de altura, o abraço deles encaixava perfeitamente, também era capaz de segurar Hideyoshi nos braços com facilidade. Na realidade Chihiro não mudaria absolutamente nada na vida e na relação deles, tudo estava em seu devido lugar e assim deveria permanecer.
Ele sorriu novamente ao encontrar o olhar de Hideyoshi, desejava ficar ao seu lado para sempre.
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