Simplesmente não era capaz de acreditar no que estava acontecendo, por que diabos aquilo tinha que acontecer justo com eles? Tudo parecia uma pegadinha de muito mau gosto, a qualquer momento sentia que câmeras apareceriam e a staff de um programa televisivo sairia de lugares inusitados anunciando que a partir de agora ele e Yamano iriam contribuir para o entretenimento nacional. O jovem esfregou a ruga de expressão entre seus olhos tentando lembrar o que raios fizera para merecer aquilo.
⌘⌘⌘
Ainda era noite quando acordou, o quarto estava estranhamente frio e o rapaz enrolou-se mais nas cobertas da cama. Apesar de aquela época de sua vida estar enevoada em sua mente, ainda lhe era desconfortável quando esses sonhos cinzentos o visitavam em seu sono. Hideyoshi suspirou, remexendo-se de um lado para o outro e por fim levantando-se, resignado de que não dormiria mais essa noite. Foi até o banheiro, sequer acendeu a luz, apenas jogou um pouco de água em sua face e permaneceu de frente para o espelho, fitando o próprio reflexo na escassa luz prateada que derramava-se sobre seus aposentos vinda da janela.
Cara de shoyu era como ele poderia ser descrito, um típico japonês com uma típica cara de japonês, não tinha nada de muito diferente ou exuberante em sua aparência, talvez seus olhos pudessem ser uma atração e tanto, porém o jovem não apreciava ser o centro das atenções e deixava que a franja castanha caísse sobre seu olho direito, ocultando a exótica tonalidade azul de sua íris e a grande cicatriz fria ao toque. Não lembrava de como acabara desse jeito, apenas tinha ciência de que tinha algo a ver com a morte dos pais.
Apesar de tudo, não era feio, na verdade era até consideravelmente bonitinho. O olho esquerdo possuía uma cor semelhante a mel e, quando iluminado pela luz do sol, quase parecia dourado da cor do sol poente.
Hide apanhou uma madeixa castanha e fungou os fios a fim de verificar o cheiro, deixou um suspiro escapar, o aroma de morango de seu shampoo preferido já estava fraco, deveria lavar o cabelo novamente em breve. O rapaz encarou o espelho um pouco mais até perceber que estava irritado consigo mesmo por motivo nenhum. Bufou, fazendo uma careta para o espelho, e virou-se para retornar ao quarto, no entanto a irritação logo se mostrou passageira, indo embora num piscar de olhos ao ver sua pessoa preferida no mundo inteiro fechar a janela de forma silenciosa.
— Se você esquecê-la aberta, vai pegar um resfriado — Yamano enfim virou-se para ele, o brilho dos olhos verdes oculto pela escuridão. Hide bateu em sua própria testa, afinal realmente havia esquecido a janela aberta naquela noite.
— Achei que estivesse dormindo — disse, aproximando-se do outro com passos suaves até que estivesse perto o suficiente para que os dedos fossem capazes de tocar a pele quente de Yamano. Deixou que a ponta de seus dedos delgados deslizassem pelo abdômen do mais alto antes de puxá-lo para si.
— Eu ouvi você — sussurrou Yamano, envolvendo Hideyoshi num abraço carinhoso.
Nesse instante o mundo ao redor de Hideyoshi desapareceu, só existia ele e seu parceiro, como se nada jamais pudesse intrometer-se entre eles e aquela paz calorosa que irradiava de Yamano. Hideyoshi ergueu uma das mãos para que pudesse ser capaz de afagar a cascata negra que caía até os ombros do mais alto, aquele rapaz era seu porto seguro, seu lar, sua vida. Mesmo que parecesse dramático à primeira vista era exatamente assim que Hide se sentia e não envergonhava-se disso, na verdade estava plenamente contente com esses sentimentos que nutriam um pelo outro, ao longo dos anos, isso o salvara incontáveis vezes de si mesmo.
Na ponta dos pés, Hide fitou os olhos esmeralda por um momento, ponderando seu próximo ato.
— Ei, Yano, vamos sair — era uma afirmação, não uma pergunta. Estava decidido.
— Tipo, agora?
Hideyoshi assentiu, fazendo o outro suspirar com um sorriso.
— Vou buscar um casaco, tá bem frio lá fora — Yamano bagunçou os cabelos castanhos do menor antes de encaminhar-se para a porta. — Pega um também.
Vendo-se sozinho, Hideyoshi pôs-se a procurar um surrado moletom cinzento com auxílio da luz proveniente da lua, que continuava a iluminar parcamente o quarto através das cortinas abertas, no entanto ainda assim não foi capaz de encontrá-lo. Às vezes ter somente metade da visão que deveria ter era um pé no saco, principalmente quando precisava fazer coisas como procurar coisas e isso o deixava irritado além da conta, não gostava de parecer incapaz.
Quando estava prestes a bufar, o rapaz sentiu um peso chocando-se contra sua cabeça e apanhou a vestimenta, era Yano, que retornara e encontrara seu casaco. Hide não pôde evitar um sorriso, era tão incrível, aquele Chihiro Yamano.
Percorreram o corredor dos quartos em silêncio, em parte porque estava demasiado tarde, em parte porque não sentiam necessidade de fala constante entre eles, já eram tão habituados com a presença um do outro que muitas vezes somente a troca de olhares era necessária para entender o que se passava. Moravam juntos há mais de dez anos, quando a antiga governanta da casa trouxe Chihiro, seu netinho órfão, pedindo permissão para criá-lo ali, na mansão dos Takashi.
Hide abafou uma risada, aquela época tão irritante agora lhe parecia engraçada e nostálgica.
— Tá com você! — Declarou ele, dando um tapinha no ombro do mais alto e correndo aos risinhos na direção das escadas. Pôde ouvir Yamano soltando algum xingamento enquanto se preparava para acompanhá-lo.
Hide correu até o lance de degraus para o primeiro andar e, olhando rapidamente para trás, começou a pular vários degraus para que pudesse descer mais rápido e não dar chance do outro alcançá-lo. Riu sinceramente ao passo que pensava como deveria ser infantil, estar com Yamano sempre deixava tudo melhor.
Ouvia Yano sussurrar xingamentos e maldições atrás de si, mas sabia que ele não estava bravo de verdade, olhou para trás novamente e viu o jovem de cabelos negros pronto para pular uma quantidade considerável de degraus apenas para alcançá-lo e, vendo-se sem saída, Hide sentou-se no corrimão do lance de escadas que levava ao térreo, deslizando pela barra de mogno.
Sentia o ar em movimento em sua pele e a adrenalina em seu corpo, Yano muito provavelmente ficaria puto da vida, mas no fim tudo isso valia a pena, afinal era justamente o fato de estar em risco que o fazia sentir-se vivo. A tentação de abrir os braços e deixar-se levar pela força da gravidade sem importar-se com a queda era imensa e por um momento Hide pegou-se desejando fazer isso de fato, porque mesmo que algo desse errado, ele ainda teria aquilo para ajudá-lo. No entanto, ficou com pena do pobre Yamano, não desejava que seu amado tivesse um fim prematuro causado por ataque cardíaco.
Enfim alcançou o andar inferior, seus pés chocando-se levemente contra o piso de madeira fizeram ecoar o som do impacto por toda a sala. Os lábios de Hideyoshi ergueram-se num sorriso ao encostar-se na parede enquanto esperava que Yamano descesse as escadas de forma devida e lhe mostrasse sua habitual expressão de desaprovação.
Dito e feito, alguns segundos depois lá estava ele, o homem mais lindo de todo o Japão o encarava com um semblante carrancudo.
Hide riu-se, pois sabia o quanto o mais novo odiava quando ele se punha em situações arriscadas de forma deliberada. Apesar disso a carranca logo desfez-se, dando lugar a uma expressão mais branda e tenra, Chihiro Yamano sacudiu a cabeça negativamente, seus lábios curvados num sorriso inconsciente. Hideyoshi sabia exatamente o que ele estava a pensar, mesmo sendo alguns meses mais novo, Yano precisava tomar conta do outro como se fosse um irmão mais velho já que muito constantemente Hide agia como uma criança de cinco anos de idade.
O jovem de cabelos castanhos deu de ombros e murmurou um pedido de desculpas qualquer. Apesar de se esforçar para não sorrir, os lábios de Yamano o traíam, era impossível ficar realmente bravo com Takashi Hideyoshi.
Hide sentiu o peso da mão de Yamano sobre seus cabelos, fazendo uma completa bagunça nos fios antes cuidadosamente arrumados.
— Te peguei — sussurrou Yano, próximo ao ouvido do menor. Hideyoshi sentiu uma onda de arrepio percorrer seu corpo, erguendo cada pelinho, e não foi capaz de evitar olhar para o chão. A presença de Yano assim, tão perto, era simplesmente esmagadora. — Você é impossível, Takashi Hideyoshi. Impossível.
E pousou os lábios delicadamente sobre a testa meio coberta por cabelo do mais baixo, fazendo-o corar de orelha a orelha.
A porta de saída principal da casa levava até um imenso jardim com os mais diversos tipos de flores coloridas e árvores arvorescas. Entre as faias japonesas, pinheiros e carvalhos podiam ser encontradas algumas cerejeiras e cedros, embora, naquela época do ano, grande parte das folhas das árvores houvesse abandonado os galhos para deitar-se no solo. Algumas flores ainda floresciam mesmo fora de época, aqui e ali podiam ser encontrado um ou outro girassol, um ou dois ramos de lavanda e até mesmo uma ou outra hortênsia de pétalas azuladas. No entanto se tinha uma flor que sempre haveria naquele jardim era a Lycoris radiata em seu esplendor de vermelho sangue.
Eram as preferidas de Hide desde que se entendia por gente apesar de não haver motivo especial para tal coisa, ele somente as achava belas e isso era suficiente para desejar mantê-las no jardim.
Não se demoraram na espaçosa sala ricamente mobiliada com móveis sofisticados, que já estavam ali há tantos anos quanto Hideyoshi era capaz de lembrar, e logo chegaram até o genkan[1], onde pararam somente para calçar os sapatos. Yamano tomou a frente e abriu a porta, uma fria rajada de vento sacudiu seus cabelos escuros de maneira graciosa, o jovem sorriu ao sentir aquela habitual e tão singela saudação da madrugada, de fato aquela era a melhor hora para passear, pois não havia nenhuma multidão sufocante como era noutras partes do dia.
A lua estava alta no céu e as estrelas milagrosamente visíveis, era uma noite perfeita. Com um sorriso, Yamano virou-se para Hide, tomando-lhe as mãos cuidadosamente e o guiando para fora. Hide riu de forma genuína ao sentir o corpo girar com a pirueta conduzida por Yamano, bailaram seguindo o curso do vento por todo o jardim até atingir o portão prateado que reluzia com a luz da lua. Novamente o mais alto abriu o portão e o fechou delicadamente quando ambos o atravessaram, encostando-se no muro cinzento da propriedade e fitando o mais baixo, esperando que dissesse para onde estavam indo.
Hideyoshi enfiou a mão num dos bolsos do moletom e apanhou um cigarro e um isqueiro preto como obsidiana, rapidamente acendeu e levou aos lábios, sentindo o familiar e mortífero calor preenchendo seu interior e expelindo uma baforada antes de oferecer um trago para Yamano, que aceitou.
— O sol logo vai nascer — Takashi disse, começando a caminhar para uma direção. Yano o seguiu, agora sabendo plenamente para onde se dirigiam.
Era um ritual interno dos dois, ir até uma praça nas redondezas e apreciar a chegada da alvorada.
Caminhavam em silêncio, o som de seus passos ecoando nas ruas vazias. Não havia coisa melhor do que passear no meio da madrugada! Tão bom não ter toda aquela gente e todas aquelas luzes e barulhos perturbadores da paz! Hide sorriu ao ver com seu olho bom uma pequena sombra preta correr e, com um miado soturno, pular o muro de tijolos avermelhados de uma casa para desaparecer na escuridão. Ele amava gatos.
Vez ou outra a luz dos faróis de um carro passava pelos jovens, iluminando-os com uma tonalidade incandescente de laranja esbranquiçado por um breve lapso de tempo. E dessa forma ambos seguiram avançando sem pressa por atalhos conhecidos, entravam em beco aqui, cruzavam uma rua escura acolá, somente acompanhados pelo som de seus pés. Não havia sequer um resquício de medo ou temor na mente de Hide, sentia-se plenamente em paz na serenidade noturna.
Estavam prestes a atravessar o último beco quando uma figura encapuzada saiu apressada das sombras, uma rajada de vento frio fez os cabelos alaranjados esvoaçarem-se para fora do capuz negro de seu moletom preto e branco, uma garota. Ela estava com tanta pressa que sequer notou que os rapazes estavam ali, apenas seguiu com seu caminho, indo na direção oposta à deles e desaparecendo na noite como o gato que Hideyoshi vira pulando o muro mais cedo.
O olho cor de mel encontrou os olhos intensamente verdes por um instante, que hora estranha de alguém estar na rua! Ainda por cima uma garota desacompanhada! Será que não temia os perigos da madrugada? Por fim deram de ombros, quem eram eles para dizer ou questionar alguma coisa sobre a vida de alguém? Ambos sorriram um para o outro e adentraram naquele pequeno espaço escuro e mal cheiroso, logo seria a hora da aurora.
________________________________________
[1] - Pequeno espaço na entrada da casa que há em residências japonesas, serve para deixar sapatos, guarda-chuvas, pendurar casacos, etc. Sua função é impedir que sujeiras exteriores entrem no interior do local.
Comments (2)
See all