AVISO DE CONTEÚDO: Tentativa de suicídio.
Foi um erro sair sem um guarda-chuva, mas uma vez que estava decidido a ir, eu queria encontrá-lo imediatamente. Chuva pesada caía sobre meus ombros, mas a jaqueta impermeável era o suficiente para me proteger. Era aparentemente perto o bastante para que eu não me cansasse apenas por andar, e meu “futuro namorado”, nas palavras de Dave, estaria me esperando em sua casa.
Nada poderia dar errado, não é mesmo?
Ser brutalmente assassinado não estava em meus planos para aquela noite, por exemplo. Um carro solitário passou velozmente por mim, jorrando água suja da rua. Fiquei encharcado e encardido.
— Filho da p…
Olhei para meu estado. Eu não poderia ir para um encontro daquela forma. Pensei em desistir completamente da “oportunidade incrível” que Dave me arranjara ou ir para casa me trocar antes. Mais atrasado do que eu já estava, impossível. Meu possível amante poderia esperar mais alguns minutos em minha indecisão.
Qualquer que fosse a minha escolha, teria que atravessar aquela ponte.
O rio que corria por debaixo dos meus pés desembocava no mar, e com o rugido da tempestade, os respingos de água alcançavam as pedras que formavam os pilares da ponte, a qual sacudia em resposta. Eu tremia do vento frio que balançava as cordas de suspensão e que bramava com vontade em meus ouvidos, trovoando em algum lugar ao longe. Ao mar, relampejos. Francamente, a noite poderia terminar bem ali. Algum ser superior poderia resetar o dia, me fazer não perder a corrida do Mario Kart e assim não perder a aposta maldita.
Quando, de todas as vezes que jogamos, Dave ficara tão bom naquele jogo? Eu provavelmente assustaria meu encontro com meu mau humor e estado lamentável.
Não me recordo o motivo, mas peguei o telefone, talvez para cancelar, ou para ver as horas. Lembro de dar o primeiro passo naquela ponte, e de puxar o aparelho. Lembro do vento forte nos cabelos, e de levantar a cabeça. Lembro de o capuz cair, e a chuva molhar minhas pálpebras.
A luz amarela sobre a jaqueta vermelha.
Quando encontrei Dave pela primeira vez, não imaginava que ocuparia uma parte tão grande do meu coração. Ali, naquela ponte, eu estava cruzando meu caminho com o Destino.
A cena de um filme em câmera lenta. Vi-o, a jaqueta vermelha e os tênis xadrez sobre o parapeito da ponte. O ofegar de esforço, o olhar vermelho e decidido. Uma memória tão revirada que poderia nova gritou:
— Alex, a culpa é sua!
e era, era, era
E antes que percebesse, o telefone escorrendo das mãos molhadas, corri.
Foi com uma força que eu não sabia possuir que meus braços alcançaram os seus que caíam, e como duas bonecas, despencamos com um estrondo de trovão no chão molhado, a dor nos lembrando da vida que quase escapou no rio selvagem abaixo. Respirei pesadamente, como se tivesse me afogado. Mas era isso que acontecera. Afoguei-me em memórias, e continuava vivo em uma. Não via o homem em meu colo. Era outra pessoa, uma outra noite.
Apenas notei que o erro quando senti sua mão pesada em meu peito.
— Ei! Me larga!
Arfei, tentando me situar. Pois eu estava no presente, não no passado, com água a molhar as mãos, e não sangue. Ajeitei os cabelos de qualquer modo, e finalmente vi quem eu salvara.
— Desculpe… — comecei, a voz fraca e rouca. Tremia. Mãos longas e alinhadas me empurraram e ficamos distantes um do outro, mas ainda sentados debaixo da chuva, com a respiração desencontrada.
Estávamos vivos.
Comecei a analisar você. Não mais que um rapazote magricela. Seus olhos impossivelmente azuis me encaravam com raiva e então para o céu acima de nós, como se pela primeira vez notasse a chuva. Os cabelos rebeldes loiros recebiam as gotas aleatórias e correu uma mão por eles, afastando-os da testa. Era como se fosse a primeira vez que percebesse onde estava, e como estava. Você era uma confusão de casacos vermelhos, jeans apertados e olhos assustados. Havia um machucado em seu rosto, acima do olho esquerdo. Um hematoma que começava a arroxear e parecia ter sido um golpe bem feio.
— Está tudo bem…? — foi a minha primeira pergunta. Eu tinha tantas. Centenas. Milhares. Mas a verdade era só que eu queria ouvir a sua voz. Queria quebrar o feitiço que você pusera em mim, da aura etérea que se formava à minha frente do espelho d’água da miragem feita pela chuva e pela luz amarelada do poste. Eu queria saber se você existia, mesmo.
Você, é claro, foi bastante eloquente.
— Vai se foder.
— Olha, eu posso ligar para a polícia… — Foi quando notei a falta do celular, e percebi que o havia largado há alguns metros de nós. Levantei-me e fui em sua direção para pegá-lo. Você permaneceu parado, quieto, olhando para o céu. — … Ou para um hospital, se for necessário. — Acrescentei.
— Não precisa. Me deixe em paz.
Meu celular estava com parte da tela rachada, e havia se desligado. Eu esperaria chegar em casa para cumprir a promessa de ligar para algum daqueles lugares. Rezava para que o menos o aparelho ligasse de novo depois de passar a noite no arroz… Suspirei, e olhei de novo para você.
Parecia um animal ferido. Perdido em sua dor, abandonado à própria sorte.
— Você vai ficar aí? Não tem para onde ir?
Um dar de ombros. Era a sua resposta para tudo. Como se não ligasse para mais nada, como se o destino não importasse. Meu coração pesou, culpado. Eu não poderia abandoná-lo ali, depois de tirá-lo das garras do rio, e deixá-lo seguir seu caminho. Simplesmente virar as costas. Não era do meu feitio.
E por isso sempre me fodia.
Já esquecido completamente do encontro, sentei-me ao seu lado no meio-fio.
— Qual é o seu nome?
Seu olhar ríspido e feroz quase me fez correr, mas não me daria por vencido tão facilmente. Um animal ferido precisando de resgate.
— Por que você se importa?
— Eu não me importo. Qual é o seu nome?
Você me olhou com uma expressão confusa, mas algo em seu interior quebrou. Os seus ombros baixaram, e as barreiras cuidadosamente erguidas contra todas as pessoas ao seu redor não importavam mais.
Ainda assim, você não derramou uma lágrima.
Você estava cansado de chorar.
— Jesse — murmurou, tão baixo que sua voz quase foi roubada pelo ronco da tempestade, mas eu a ouvi. Eu juro pelo túmulo da minha mãe que a ouvi. Baixinho, e perdido.
— Meu nome é Alex Morris — tentei transmitir confiança. — Você quer ir para o meu apartamento?
Você pareceu surpreso, mas que alternativa você tinha? Seus olhos se arregalaram surpresos e volveram de mim para o parapeito, e de lá, para o horizonte.
Você se levantou, mais uma vez.
Eu o segui, e tomei a sua mão, o guiando em direção à minha casa.
Dizer não me importar foi a maior mentira que contei na vida.
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