Não demorou muito para chegarem na casa de Leo, era na esquina logo após a parada. Não falaram mais nada naquele curto caminho. O portão da casa de Leo arrastava um pouco no chão, era preciso segurar uma das grades e levantar um pouco para que não emperrasse sem deixar espaço para qualquer um passar. O leve nervosismo que se alastrava por Leo fez com que ele não lembrasse desse detalhe e acabou tomando um susto quando o portão parou de ir para trás, arranhando o chão de cimento. Leo sentiu um pouco de vergonha, mesmo sem ter necessidade.
Logo que Leo apertou o interruptor e as luzes da sala se acenderam, Kaio fez uma varredura total do local, tentou absorver todos os detalhes em fração de segundos. A primeira impressão que a casa de Leo deixou em Kaio é que de aquilo era realmente uma casa, nada como a imitação de consultório odontológico que ele morava desde os 12 anos. Embora as paredes fossem brancas, elas não estavam vazias, quadros, cabideiros, ganchos e prateleiras podiam ser encontrados pendurados. Uma manta amarelo mostarda cobria o sofá marrom e combinava com o tapete. As cores variavam e faziam sentido, Kaio tinha pavor de coisas monocromáticas, mesmo que quase só usasse branco e preto. A casa tinha um ar tão confortável, Kaio quase se sentiu abraçado.
Enquanto Kaio observava a casa, percebeu que Leo já estava do outro lado do cômodo, abrindo uma porta, e andou rápido até lá. Presumiu que fosse o quarto de Leo. Ao entrar, se deparou com um beliche que definitivamente não tinha sido produzido na última década, um guarda-roupa de MDF preto com várias fotos coladas nas portas e uma estante cheia de tranqueiras. Tinha a mesma sensação da sala. Era habitado, vivo.
Leo fuçou um pouco no guarda-roupa e voltou-se para Kaio segurando algumas coisas.
— Vai tomar um banho primeiro. — Leo disse quase como uma ordem enquanto entregava as coisas para Kaio.
“As coisas” eram uma toalha e uma muda de roupa. Kaio encarou as coisas em suas mãos por alguns instantes.
— Me consegue um sabonete novo? Acho que não seria legal se eu usasse o teu e tal…
— Claro, vem cá. — Leo gesticulou na direção da porta e Kaio abriu espaço para que ele passasse, meio desequilibrado porque seus braços estavam cheios de coisas.
Kaio seguiu Leo até o banheiro, e um sabonete foi adicionado à pilha em seus braços. Eles se encararam por um momento e Kaio achou que Leo ia dizer alguma coisa, mas ele apenas saiu, fechando a porta. Quando se viu sozinho, Kaio respirou fundo duas vezes até conseguir processar aquele momento. Ele precisava ser objetivo, ou ficaria para sempre parado no banheiro da casa de Leo, em pé sobre um tapete de crochê. Antes de tudo, ele tinha que tomar banho.
Quando Leo voltou ao quarto, achou que teria o primeiro ataque de asma em dez anos. De tudo que ele tinha para pensar, a primeira coisa foi que tinha que trocar os lençóis do beliche de cima. Ele fez isso e depois encontrou um travesseiro no armário e começou a se preocupar com a possibilidade de que Kaio tivesse rinite. Ele jogou para dentro do guarda-roupa algumas roupas que estavam jogadas sobre a cadeira, juntou seus tênis e organizou-os na sapateira e, finalmente, pensou que, apesar do surto, ele ficava aliviado em saber que Kaio estava ali e seria bem cuidado.
No banheiro, Kaio terminava seu banho. Tentou não pensar em nada além do banho, mas era difícil, a água que caía em seu corpo fazia os arranhões e raspões arderem um pouco e a lembrança da existência daqueles machucados ali levava Kaio a pensar na conversa com Leo que viria logo em seguida. Será que Leo o acharia ridículo demais? Tinha até considerado inventar alguma história, mas rapidamente jogou esse pensamento fora, péssima ideia mentir para Leo.
Saiu do box e se secou com bastante descuido, ignorando os ferimentos. Não lavou o cabelo, mas algumas partes acabaram molhando de qualquer jeito e grudavam no seu rosto e pescoço, mas Kaio nem prestou atenção nisso, se ocupava encarando as roupas que Leo tinha entregado para ele. No fundo, sentia que não devolveria aquelas roupas nunca mais.
Se vestiu com bastante pressa e tomou coragem de voltar para o quarto. Ao entrar no cômodo, se deparou com Leo sentado na cama de baixo do beliche mexendo em uma caixa de plástico. Percebendo presença de Kaio, Leo levantou a cabeça para olhar para ele, raciocinou um pouco e apontou para o lugar ao lado dele no colchão.
— Senta aqui — indicou. — Vou dar um jeito na tua cara.
E mais uma vez naquele dia, Kaio apenas obedeceu. Leo colocou a caixa entre os dois, Kaio conseguiu ver que era uma caixa de primeiros socorros e remédios.
— Posso tocar em ti? — Leo pediu.
— Claro. — Kaio conseguiu falar ao invés de apenar emitir um dos seus sons incompreensíveis.
Leo segurou o rosto de Kaio para dar uma olhada nos machucados da sobrancelha e do lábio. Na verdade, não precisava segurar, mas ele queria e tinha permissão. Acabou que Kaio estava certo o tempo todo, não era nada muito grave, mas de qualquer forma era necessário limpar e fazer curativo, coisas que ele provavelmente faria de qualquer jeito sozinho em casa.
Enquanto Leo cuidava das suas feridas, Kaio sentia como se estivesse entrando em transe, uma sensação parecida com a de quando assistia um vídeo de ASMR muito bom. Talvez ele caísse de sono e não precisasse fazer mais nada, aquele beliche parecia tão confortável. Mas seus planos foram por água abaixo quando Leo passou pomada no corte do lábio, Kaio despertou completamente, sentiu uma necessidade de abrir a boca, mas se segurou. Torceu para que Leo não tivesse percebido o seu colapso.
— Pronto. — Leo anunciou. — Tá feito!
— Obrigado por me remendar! — Kaio disse, meio exasperado. Levou os dedos ao curativo em sua testa, sentindo a textura da bandagem. Leo ainda olhava para ele, as sobrancelhas franzidas, tentando descobrir o que mais poderia fazer para ajudar. — Acho que eu já vou indo, então…
Kaio começou a se levantar devagar, tomando cuidado para não bater a cabeça no beliche de cima, mas Leo colocou a mão em seu ombro e ele voltou a sentar.
— Como assim indo?
— Indo embora, ué. — Kaio respondeu como se fosse óbvio. — os curativos já tão feitos.
— É, mas tá tarde, tu pode dormir aqui, inclusive eu estava considerando o tempo todo que tu dormiria aqui. — Leo se esticou para colocar a caixa de plástico sobre a mesa. Ele tinha os olhos voltados para Kaio, esperando uma resposta, um sinal ou qualquer coisa do tipo.
— Ah!
— Mas tu pode ir se quiser, óbvio, não vou te prender aqui. — Leo adicionou.
— Eu quero ficar! — Kaio respondeu em um tom um pouco desesperado — Só achei não era a intenção.
Ele quase pediu desculpas, porque de repente sentiu um pouco de vergonha, mesmo sem precisar. Olhou para Leo, mas ele sorria. Kaio pensou que quando saiu de casa naquela noite, jamais imaginou que terminaria ali.
— Eu até arrumei a cama de cima pra ti. — Leo informou apontando para cima.
Kaio mal tinha registrado que tinha uma cama feita no beliche de cima, já fazia um tempo que não reparava em quase nada.
— Além disso, tu não vai se livrar de me explicar o que aconteceu. — Leo comunicou.
— Eu preciso mesmo? — disse Kaio em um tom quase de manha. — É uma história bem merda.
— Que que foi? Tu tropeçou e caiu de cara no chão? — tentou adivinhar.
Leo tirou os tênis e jogou as pernas para cima da cama. Ainda que estivesse tentando acreditar em Kaio que tudo estava bem e que não tinha acontecido nada demais, ele sabia que não era bem assim. Conseguia sentir que havia hesitação nele.
— Não, eu apanhei na rua. — Kaio admitiu dando um sorrisinho envergonhado.
— QUE? COMO ASSIM TU APANHOU? — Todo o nervosismo e preocupação voltaram para Leo.
— Não foi nada de mais, inclusive fui eu quem começou a briga. — Kaio continuou contando tirando forças do além para colocar para fora cada palavra. — Tô dizendo que a história é uma merda.
Leo sentiu vontade de segurar Kaio pelos ombros e sacudir, mas não era o melhor momento para fazer isso. Enquanto isso, Kaio já tinha se arrependido de ter aberto a boca e se perguntava se era tarde demais para inventar uma mentira.
— Kaio, por favor, conta isso direito e de uma vez só. — Leo pediu, certo de que teria que procurar a bombinha de asma. — Eu vou ter um treco.
— Ok, ok — respirou fundo. — Lembra que eu disse que me distraí assistindo k-drama? Era verdade. Eu acabei ficando estressado comigo mesmo por conta disso.
— Aí tu pediu pra alguém bater em ti? — Leo interrompeu.
Kaio quase soltou uma risada de puro desespero.
— Não, calma! — Kaio fez um gesto indicando para Leo se acalmar. — O negócio é que desde aquela hora eu fiquei irritado. Foi por um motivo bem besta, mas às vezes isso acontece, sabe?
— Sei, continua.
— Então, eu tive que deixar o carro um pouco longe do lugar de costume já que tava tudo meio cheio e eu tenho um pouco de dificuldade de fazer baliza — continuou — aí quando eu tava subindo a Tupy, passei por uns caras sentados nuns degraus de uma casa e ouvi um deles falando umas merdas.
Kaio deu uma pausa, pensando bem se deveria seguir com a história ou não, estudando o rosto de Leo, tentando imaginar uma possível reação. Leo o encarava de volta, com os olhos arregalados. Tudo que conseguia sentir nele era uma curiosidade e uma ansiedade quase palpáveis.
— Ele disse algo tipo “aquela mulher lá do trailer perto da URCAMP dá troco pra menos” e como eu já tava irritado, inventei de ir discutir e tentei dar um chute no cara. — Kaio colocou para fora. — Só que o cara se levantou e ele era do tamanho de uma geladeira, ele me deu só um soco na cara e eu caí na calçada. Foi isso. Uma baita bosta, né?
Os dois se encararam em silêncio por alguns segundos, até que Leo começou a rir desesperadamente. Ele gargalhava, lágrimas escorriam dos seus olhos, chegou a se atirar para trás para rir mais. Kaio não entendeu muito bem o motivo das risadas, era só a história estupida de como ele tinha levado um soco.
Leo foi tentando se acalmar aos poucos, levantou as costas da cama voltando a ficar sentado ao lado de Kaio. Leo segurou as duas mãos de Kaio.
— Cara, tu tentou bater num homem aleatório pra defender alguém que tu nem tem certeza se era minha mãe?
— Sim… — Kaio disse baixinho.
— Nossa, eu te adoro — disse rindo. — Mas não faz isso de novo! Tu poderia ter te machucado muito mais ou, sei lá, arrumado problema com a polícia.
Kaio considerou contar para Leo que já tinha arrumado problema com a polícia antes, mas sua cogitação foi interrompida por um abraço repentino. Quando deu por si, dois braços o envolviam e o apertavam. Kaio conseguia sentir o cheiro de Leo entrando pelas suas narinas, mesmo que ele tivesse feito pancho a noite inteira o perfume permanecia ali. Aquilo era o que ele precisava.
Se afastou um pouco para olhar para o rosto de Leo, sentiu algo apertar dentro de si, como se tivesse tropeçado por dentro. Não sabia muito bem o que estava fazendo, mas se aproximou e beijou Leo. Não processou nada daquilo, nem precisou, não durou muito, Leo se separou dele fazendo uma careta.
Sentiu o rosto aquecer automaticamente, nunca antes sentiu tanta vergonha.
— Desculpa! Puta merda! — começou a dizer um tanto desesperado. — Eu devia ter perguntado antes!
— Kaio…
— E ainda eu não tenho experiência nenhuma, deve ter sido uma merda completa — interrompeu. — Caralho, eu sou muito estupido.
— KAIO! — Leo falou mais alto.
— QUÊ?
— Eu fiz careta porque tu tá com pomada na boca, infeliz. — Leo explicou.
— Ah! — disse enquanto levava a mão até o lábio e sentia a pomada.
Kaio enfiou as duas mãos no próprio rosto tentando se esconder. Leo sentia vontade de rir, sentia vontade apertar Kaio, sentia tudo.
— Sem beijinhos até a ferida cicatrizar — informou fingindo um tom sério.
Um barulhinho incompreensível saiu de Kaio, que foi ficando mais vermelho ainda. Leo riu.
— Sei que é uma tarefa difícil — disse Leo, apoiando a não no pescoço de Kaio. — Imagina ter que resistir a tentação de me beijar.
Kaio tirou as mãos do rosto e encarou Leo como se fosse atacá-lo a dentadas a qualquer momento, parecia furioso, embora fosse tudo vergonha.
— Tu não vê o estado que eu tô? — Kaio perguntou com a voz trêmula. — Ainda fica brincando comigo?
Leo segurou o queixo de Kaio com os dedos e chegou mais perto.
— Brincando contigo? Tu não faz ideia de como eu queria realmente brincar contigo — Leo falou suavemente. — Mas ainda não é a hora.
E ali naquele momento, num beliche no meio do Prado Velho, foi decretado o fim de Kaio Pinto Fernandes. Simplesmente derreteu, desmanchou, não era nada além de um poço de sentimentos desconhecidos, não sabia o que fazer com nada daquilo, era tudo muito novo.
Leo levantou do beliche e puxou o travesseiro que tinha posto na cama de cima.
— Quer saber? Tu vai dormir comigo aqui embaixo — disse enquanto largava o travesseiro perto do seu. — Não tem como eu desgrudar de ti hoje depois disso.
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