A primavera tinha chegado, mas o calor não, Leo ainda usava moletom nos seus turnos no trailer. Naquela noite, particularmente, usava um moletom verde acinzentado que um dia já foi de Pietro e por um curto período já foi da mãe dele também.
Torcia para que o tempo passasse rápido, queria ir logo para casa e passar a madrugada assistindo os episódios de House of the Dragon que estrearam até então. Afinal, não precisava levantar cedo na manhã seguinte, recebeu um e-mail da professora avisando que não haveria aula, ela iria dar uma palestra em outra cidade ou coisa assim, Leo não tinha prestado muita atenção no resto depois do “não haverá aula semana que vem”.
Também queria saber onde estava Kaio, o desgraçado não lia as mensagens de Leo desde às 17h. Aliás, a confirmação de leitura do WhatsApp de Kaio só estava ligada depois de Leo ter feito um discurso bastante persuasivo de por quais motivos ele deveria deixar ativado. Leo inventou todos os motivos na hora, na verdade, só queria saber quando suas mensagens eram lidas mesmo, Kaio sabia disso.
Era estranho que Kaio não estivesse ali ainda, ele costumava matar a aula de quarta-feira para ficar por ali com Leo (que não sabia se aprovava ou não a atitude). Será que tinha acontecido algo? Será que tinha finalmente cansado de ter Leo enchendo seu saco? Leo tentou não surtar, se surtasse começaria a errar nos panchos de novo e traria problemas para sua mãe.
Tentou se concentrar nas músicas da sua playlist, mas depois de um tempinho passou a achar todas estressantes. Ligou a TV de 14 polegadas do trailer, de repente o Jornal Nacional trazia algum entretimento para aquela noite. Acabou funcionando, se distraiu com as notícias.
O movimento da noite estava meio parado, mesmo para uma quarta, Leo tinha recém acabado de entregar um dos poucos panchos da noite, cortado no meio para ser dividido entre duas crianças, quando enxergou de canto de olho seu emo preferido chegando. O capuz da corta-vento preta de Kaio escondia o rosto, mas era inegável que era ele, Leo teria reconhecido de longe.
— Chegou tarde — comentou Leo enquanto se virava para pegar o controle da TV. — Foi pra aula hoje? Talvez eu me sinta trocado.
Kaio soltou uma risadinha abafada.
— Me distraí assistindo um k-drama, quando vi já era tarde — respondeu baixinho. — Até parece que eu te trocaria por aula.
— Que que tu tá todo escondidinho nesse capuz?
Leo inclinou o corpo para fora do trailer, se debruçando sobre a bancada de metal, mas Kaio estava fora do seu alcance. Ele tinha as mãos no bolso da jaqueta e, hoje mais do que nunca, evitava a luz fraca que iluminava a rua e o trailer.
— Só não faz um escândalo, tá?
Kaio abaixou o capuz revelando um corte acima da sobrancelha direita e outro no lábio inferior. O rosto estava sujo de sangue como se ele tivesse tentado limpar de um jeito atrapalhado com as mãos ou a manga da jaqueta, o que ele provavelmente tinha realmente feito. Ainda escorria um pouco de sangue do corte perto da sobrancelha. Obviamente, o pedido de Kaio foi ignorado.
— POR QUE CARALHOS TU TÁ COM A CARA TODA FODIDA? — gritou.
— Eu disse pra não fazer escândalo, merda!
Leo gostaria de ter continuado a gritar com ele, mas respirou fundo e tentou organizar seus pensamentos. Largou tudo que estava fazendo e desceu do trailer, tropeçando nas escadas de metal. Kaio tentava se esconder nas sombras, dando um passo para longe da luz do poste, mas Leo sabia ser teimoso também, e o puxou para perto até conseguir ver seu rosto com clareza. Alguns fios loiros estavam grudados na testa, endurecidos pelo sangue, e Leo chegou a erguer a mão para afastá-los, mas viu nos olhos de Kaio alguma coisa como hesitação ou até medo, e desistiu.
— Olha o estado que tu tá! Como que eu não vou fazer escândalo? — Leo perguntou enquanto revisava o rosto de Kaio. — Como tu ficou desse jeito?
— Bobagem! Nem te preocupada, daqui a pouco eu vou pra casa, lavo a cara e fica tudo certo. — Kaio respondeu como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.
— Bobagem o caralho, acha mesmo que eu vou te deixar ir pra casa assim? Dormir com essas feridas abertas? — Leo segurava o rosto de Kaio com as duas mãos. — Tem que ir na UPA ver se isso precisa de uns pontos!
A menção das palavras “UPA” e “pontos”, Kaio se afastou de novo. Leo olhou pra ele, tentando se acalmar o suficiente para enxergá-lo, mesmo que ele continuasse tentando se esconder. Por um momento, Leo teve medo que ele fosse embora.
— Não é tão grave assim! É sério, não te preocupa.
Leo mudou de expressão várias vezes em poucos segundos, a cabeça funcionando a mil decidindo o que iria fazer. Realmente não eram cortes muito graves, não pareciam fundos, mas também não podia deixar daquele jeito. Tentou não ficar desesperado, respirou fundo, avaliou a situação toda.
A expressão no rosto de Kaio era a mesma de sempre, mas Leo conhecia ele a tempo suficiente para saber que o quanto Kaio se importava consigo mesmo dependia do dia. Considerando a forma que ele estava agindo, Leo sabia que ainda que estivesse doendo, Kaio não falaria nada. Mas ele tinha ido até ali por algum motivo, ele sabia que Leo faria um escarcéu, talvez fosse a forma dele de pedir ajuda.
Foi aí que Leo chegou a conclusão do que faria.
— Tá, não vai pra UPA, mas vai pra minha casa, eu dou um jeito nisso. — Leo anunciou sem abrir espaço para contestações.
Kaio fez um gesto com as mãos, entre rendição e indiferença, qualquer coisa para fazer Leo parar de gritar, antes que algum coitado querendo comprar pancho aparecesse e visse aquela cena. Foi só então que Leo percebeu o estado de suas mãos, que sangravam, sujas e machucadas.
— Puta merda, Kaio! Tem mais algum lugar machucado além do rosto e das mãos?
— Não, não — fez não com a cabeça. — Acho que vou ficar com uns roxos em outros lugares, mas não tem mais nada cortado.
Leo suspirou. Não queria ser grosso com Kaio, não fazia sentido ficar bravo sendo que o outro que estava machucado, não queria ser como aquelas mães sem noção que brigam com os filhos por caírem enquanto brincam. Não era uma situação tão terrível, até ele onde sabia, já que Kaio não havia explicado nada até então, precisava se acalmar.
Soltou Kaio e caminhou de volta para o trailer.
— Senta aqui — apontou para a escadinha do trailer. — Eu vou arrumar as coisas aqui, fecho e te levo para uma mágica aventura no ônibus do Prado Velho.
— Eu posso dirigir, não tô tão mal assim!
— Com as mãos assim? Nem fudendo.
— Só tão raspadas!
— Mesmo assim, aposto que tá doendo, não vai ficar apertando elas contra a direção. — Leo indicou de novo as escadas do trailer. — Vai, senta aqui.
Kaio desistiu, sentou na escadinha e abraçou os joelhos, se encolheu ali.
Tudo acontecia muito rápido, nenhum dos dois tinha processado os últimos momentos muito bem, nem sabiam se tinham tomado as decisões corretas, falado o que deveriam ter falado. As coisas apenas iam, Leo organizava o trailer em velocidade recorde, Kaio tentava ignorar a ardência dos ferimentos, principalmente a coceira nas mãos.
Já fazia algum tempo que Kaio imaginava como seria conhecer a casa de Leo, passar um tempo sozinho com ele em algum lugar confortável, o que seria impossível na própria casa. Só não imaginava que seria em uma situação dessas, não iriam assistir algum filme bobo, ficar enrolados em edredons e tomar um café. Kaio seria remendado e depois, provavelmente, mandado embora.
Kaio gostava de fingir que não tinha essas ideias.
Um estrondo fez Kaio quase dar um pulo, Leo fechou a frente do trailer meio sem jeito e acabou batendo, se dona Regina estivesse aqui ela diria “Issooo, quebra!”. Leo murmurou uma tentativa de desculpas, sentindo-se mal pelo susto, contendo a vontade de repetir, desculpa, desculpa, desculpa. Ver Kaio naquele estado provocava algo nele, uma espécie de tristeza e preocupação. Havia algo nele que pedia por isso, um cuidado, uma atenção. Catou a mochila e as chaves de um canto do trailer e foi saindo.
— Bora, Kaio. — Leo tocou, bem de leve, as costas do outro, indicando que ele se levantasse. — Se a gente for rapidinho ainda deve dar pra pegar o ônibus das dez.
Kaio levantou devagar e meio torto. Ele ainda sentia dor, por mais que tentasse se convencer, e com sorte, convencer Leo, do contrário. Kaio assistiu enquanto ele revisou várias vezes a tranca do trailer e depois tirou da mochila uma garrafa de água de dois litros, que estendeu em sua direção.
— Lava as mãos com isso aqui, não é uma boa ir até lá com as mãos nesse estado. — Leo insistiu, porque Kaio não pegou a garrafa que ele oferecia.
Ele pensou em não aceitar, mas não conseguiu reunir nem um motivo para isso, exceto o de contrariar Leo. Jogou água sobre as mãos e tentou limpar a terra dos arranhões.
Em um certo silêncio não anunciado e não solicitado, eles desceram a Tupy que logo se transformou na Sete de Setembro. Aquele ventinho gelado das noites de primavera batia nos dois, mas nenhum deles prestava atenção, só continuavam em frente em passos rápidos com medo de perder o ônibus. Mas obviamente pensavam em algo, pensavam até demais.
Talvez Leo fosse ter um ataque. Só agora que as mãos de Kaio estavam limpas e ele estava caminhando ao seu lado sem reclamar que Leo percebeu estar levando Kaio para casa. Seu quarto estava uma bagunça, sua mãe não estava em casa e ele não tinha certeza se ela voltaria hoje ou amanhã de manhã, e, de qualquer forma, mesmo que ele mandasse mensagem, ela provavelmente não iria ler. Por um segundo, ele pensou em cancelar a coisa toda e só mandar Kaio pra casa. Só que no momento seguinte ele se dá conta de que não está vendo as coisas direito. Kaio estava machucado e precisava de ajuda, e só isso era importante agora.
Kaio já estava tendo um ataque, esqueceu completamente de ardência e coceira das feridas, não que ele tenha prestado muita atenção nelas em algum momento. Tentava focar no que acontecia ali naquele momento, mas era difícil, pensava nas perguntas que Leo, com toda certeza, faria. Procurava uma forma, uma desculpa, um jeito de não ser mandado embora logo após ser remendado, queria aproveitar aquela oportunidade da melhor maneira possível. Ao mesmo tempo, ele tinha certeza que se tentasse conversar com Leo não ia conseguir dizer nada e deixar as coisas constrangedoras e ele o acharia estranho e não gostaria mais dele.
Chegaram na parada quase ao mesmo tempo que o ônibus, Kaio pagou a passagem de Leo, que lutou contra essa ideia por alguns segundos, mas desistiu quando Kaio praticamente jogou a nota de dez reais para o cobrador. Estavam tão atordoados que até esqueceram do troco, não teriam buscado aquelas moedinhas se o cobrador não tivesse chamado.
Sentaram nos últimos bancos do ônibus, de vez em quando o cobrador lançava alguns olhares curiosos bastante indiscretos na direção dos dois. Kaio se esforçava para esconder o próprio rosto no capuz, se arrependeu de não ter pegado uma máscara antes de sair de casa, sempre tinha uma por perto e logo naquele dia não trouxe. Em sua defesa, ele não tinha como imaginar que aquilo aconteceria.
A primeira vez que a curva do ônibus jogou Leo contra Kaio ele se arrependeu de não ter avisado que os últimos bancos eram os piores, ainda mais quando o ônibus vinha vazio. Na segunda vez, ele pensou que não era tão ruim assim. Só se Kaio estivesse sentindo dor. Mas como ele não reclamou, nem se encolheu, Leo não disse nada.
Nem que Kaio quisesse ele teria reclamado. Não tinha como.
Quando chegaram no ponto, Leo levantou e apertou o botão. Quase que, de novo, ele esqueceu de descer. Kaio demorou um ou dois segundos para reagir, mas se levantou e passou a frente de Leo para descer, porque, claro, ele tinha total confiança no que estava fazendo. Na pressa, seus tênis quase escorregaram nos degraus, mas antes que ele perdesse o equilíbrio, Leo segurou seu braço. A porta do ônibus fechou e o motorista foi embora e os dois olharam para a mão de Leo no braço de Kaio por um momento antes de se separarem.
— Tu não é acostumado com ônibus, né? — Leo perguntou, procurando no rosto de Kaio por alguma reação, mas ele tinha os olhos baixos.
— Não… — Kaio respondeu baixinho.
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